Segunda-feira, 29 de Setembro de 2025

«IR À «PIDA»

514377743_23880441004950474_2025282764150804637_n.

Foi o meu saudoso amigo, o escritor Manuel da Fonseca, natural e a residir em Santiago do Cacém ( Alentejo e sub-região do Alentejo Litoral) ao ler este meu poema, que me explicou o nome certo para ele, e que eu desconhecia: «ir à «pida».Termo usado no Alentejo, quando os homens se ausentavam para pedir esmola, sempre que a falta de trabalho e a fome os obrigava a percorrer vilas e cidades afastadas das suas terras, por lá andando, por vezes semanas, regressando a casa quase sempre de mãos vazias.

Por essa altura, reli toda a obra de Manuel da Fonseca, grande nome da nossa literatura, que nos faz um relato fiel dessa época. Época de que muitos ainda estão bem lembrados, enquanto outros, que não viveram esses tempos, parece quererem agora, de maneira leviana e imprudente, que voltem ao Alentejo.

«IR À «PIDA»

Lembro-me

De os ver passar na minha rua

Em grupo, grupo pequeno

Três a quatro homens

A capa alentejana pelos ombros.

 

Vinham do “alto” da vila

Hoje cidade

Dividida como dantes

Em parte nova e parte antiga.

 

Na memória dos olhos

Guardo as suas capas

Castanhas, cor da terra

As cabeças cobertas

Com o lustro dos chapéus

A bota grossa

São imagens

Que ficaram na distância do olhar.

 

Quem seriam esses homens

A deambular pelas ruas?

E tinha medo

Um medo

Que me subia até aos ombros

E se sentava neles.

 

Espreitava-os

Pela cortina da janela

Falava-se de assaltos

De crimes e outras histórias

Tão falsas

Como a mentira do meu País de então.

 

Quando surgiam de uma esquina

Era o silêncio que lhes fazia escolta

Ninguém os conhecia

Quais seriam os seus nomes

Teriam mulher

Filhos, pais, família?

 

Circulavam de porta em porta

A subir, a descer escadas

De mão estendida, num acanhamento

Onde eu não percebia a mágoa e a revolta.

 

E nunca vi um gesto, ouvi uma palavra

Dei por alguém que se tivesse aproximado

Daquele grupo de homens

Sem alternativa, sem outra condição

A não ser a de pedir, estender a mão

A quem por vezes nada tinha.

 

Caminheiros do desamparo, da solidão

Oh! donos de tão grande pobreza

Passaram tantos anos…

Tempo que me pesa demais no coração

E só hoje acordei neste poema.

Porque hoje sei que a desventura

A falta de trabalho, a fome, a miséria

Os fazia surgir como a formiga

Em tempo (in)certo.

 

Com que abandono, meu Deus

Com que tristeza

Aqueles passos

Soam de novo aos meus ouvidos.

 

Nesta hora eu os ouvisse, pressentisse

Pedir-vos-ia perdão

Pela fartura do pão

De tão sobejo para a minha fome

Demasiado para a minha mesa.

 

Pela bênção de não ter, como vós

De depender da caridade alheia

De não sentir, como vós

O infortúnio de regressar um dia a casa

Ao ponto de partida

À mesma fonte de dor e de destino

Sem nada levar na algibeira

Além do pó da estrada

Do cansaço dos dias

Das horas de lonjura

Das saudades a pulsar nas veias.

 

Da longa

Da inútil caminhada

Com o fracasso

O receio e a mesma fome

A roer os ossos e as ideias.

 

Oh! Alentejo

Que não voltes mais

A meter medo

Às crianças das vilas

Das cidades

Ao deixares partir os teus homens

Dos lugares que amam.

 

Soledade Martinho Costa

 

Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde»

Edições Sarrabal

 

Tela: Jaime Martins Barata (pintor alentejano)

 

(«Ir à «Pida», publicado no meu blogue Sarrabal, recebeu em 2008 o Prémio Dardos, prémio virtual atribuído entre blogueiros, como reconhecimento por transmitir valores culturais, éticos, literários e pessoais,)

publicado por sarrabal às 00:30
link | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Novembro 2025

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30


.posts recentes

. ESPERAR

. 2 DE NOVEMBRO - DIA DOS F...

. CALENDÁRIO - NOVEMBRO

. DEDICATÓRIA

. A FLOR E A NUVEM - OU O C...

. AINDA SOBRE A ATRIBUIÇÂO ...

. AS CRIANÇAS HOJE - UM ALE...

. A PROPÓSITO DE CÃES E DE ...

. HiSTORINHA - A LAGARTIXA ...

. O CHORO DAS PALAVRAS

. RECORDAR AMÁLIA NO ANIVER...

. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...

. E CONTINUAMOS NO ALENTEJO...

. «IR À «PIDA»

. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...

. A TODAS AS MULHERES AFEGÃ...

. A ABELHA E O LÍRIO BRAVO ...

. SEGREDOS

. PORTUGAL DESCONHECIDO - O...

. E VOLTAMOS AOS AVIÕES - O...

.arquivos

. Novembro 2025

. Outubro 2025

. Setembro 2025

. Agosto 2025

. Julho 2025

. Junho 2025

. Maio 2025

. Abril 2025

. Março 2025

. Fevereiro 2025

. Janeiro 2025

. Dezembro 2024

. Novembro 2024

. Outubro 2024

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Julho 2024

. Junho 2024

. Maio 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Março 2020

. Novembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Dezembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

.links

blogs SAPO
Em destaque no SAPO Blogs
pub