Domingo, 15 de Maio de 2022

HISTORINHA - O GAIO E O CAMALEÃO (inédito neste blog)

 

30_best_birds_to_watch_for_in_utah_16.jpg.webp

Chamäleon1.jpg

O gaio, a descansar do voo, pousa, por instantes, no ramo de uma alfarrobeira. Olha em redor, primeiro. Depois, atento, fica-se a mirar o verde mimoso das copas das árvores que lhe fazem companhia. «Se houvesse por aqui algum carvalho, mudava-me para estas bandas», pensa para consigo. E logo se demora num outro pensamento, que o enche de alegria. Durante o mês de Maio, os seus filhotes hão-de romper a casca dos ovos que a companheira chocou no ninho. Um ninho um pouco tosco, é certo, feito de folhas secas, de raízes e raminhos, que servirá de casa aos seus filhos, que vão nascer.Três semanas depois, os gaios, pequeninos, aprendem a voar. Nessa altura, já são capazes de sobreviver sozinhos — embora a família se mantenha unida até à chegada do Outono.

Mas, de pronto, o gaio interrompe o fio aos pensamentos. Repara que a seu lado, imóvel e silencioso, se encontra o Sr. Camaleão.

Por um pouco, levantava voo sem notar a sua presença, mestre Camaleão! - exclama ele. - Tão quieto está e de tal forma se confunde a sua cor com a cor das folhas do ramo onde se agarra, que nem dava por si!

O camaleão, olhos de pálpebra redonda, salientes, na direcção do gaio, responde:

É o costume, amigo Gaio, é o costume. Já estou habituado. Quantas vezes acontece passarem por mim e não darem por isso…

Que aborrecimento. - comenta o gaio.

Olhe que nem sempre. – contrapõe o outro - Às vezes, é melhor assim. Livro-me dos importunos e dos falsos amigos, que também os há. Isto, sem falar nos inimigos, que se pudessem deitar-me os dentes ou o bico…

O gaio dá um pulinho no ramo, pouco à vontade

Espero não estar incluído nessa lista… - diz.

Oh!, não! Nem pense nisso! - sossega-o o companheiro - A si, tenho-o em boa conta. - E logo, alcoviteiro: - Embora se comente por aí umas certas coisas a seu respeito...

A meu respeito? Umas coisas? Que coisas?! - empertiga-se o gaio no cimo do ramo.

Ora, que coisas… Que o meu amigo retira dos ninhos alheios os ovos e as pequenas aves indefesas, para com eles alimentar os seus filhotes…

O gaio, mais sereno, responde:

Boatos, mestre Camaleão, boatos. O que procuro são larvas e insectos, isso sim: aranhas, zangãos, vespas… Umas lagartas, umas lesmas, uns caracóis… E não calcula o trabalho que me dão os meus filhos quando ainda estão no ninho. Comilões, não há outros! Só depois de saírem de casa é que começam a alimentar-se sozinhos; de bolotas, bagas, grãos, frutos silvestres… Mas, até lá…

O camaleão dá uma passada lenta na direcção do gaio.

Pois nós, os camaleões, também nos alimentamos de vermes e insectos: gafanhotos, moscas, borboletas, aranhas… E se temos oportunidade e somos robustos, não nos escapam os anfíbios, sapos e rãs, e um ou outro roedor.

É a lei da Natureza, meu amigo, para que o equilíbrio se mantenha… argumenta o gaio.

Tem toda a razão. - concorda o camaleão de imediato.

Agora o que me falta, compadre Camaleão – diz o gaio – é a sua língua comprida e viscosa, bem melhor do que o meu bico para apanhar a caça…

E a mim falta-me a sua agilidade, e o seu grasnar alegre, principalmente, agora, que estamos na Primavera. Repare que sou um bicho silencioso e muitíssimo lento…

Não se queixe, caro Camaleão, não se queixe. Já reparou, porventura, na sua sorte? Além de mudar constantemente a cor do fato que veste, ainda consegue ver, ao mesmo tempo, com um dos olhos o que se passa à sua frente e, com o outro, o que acontece nas suas costas!

Pois é, amigo Gaio, mas que quer? - responde o camaleão – Ninguém está satisfeito com aquilo que tem… E depois, sabe, vivo muito isolado, muito sozinho. Raramente desço desta amendoeira onde moro. A não ser quando vou matar a sede…

Comigo sucede um pouco a mesma coisa. Também não saio muito das redondezas onde vivo nem sou dado a grandes companhias. - conta o gaio, numa confidência – Apenas mudo os meus hábitos na Primavera. Fora disso… - e num outro tom, agora curioso:

E os seus filhos amigo Camaleão?

Os meus filhos nascem dos ovos, tal como os seus. Ainda que alguns familiares meus sejam vivíparos. Mas não chocamos os ovos como vocês as aves. As nossas fêmeas enterram-nos no chão, em pequenos buracos, bem escondidos, para serem chocados depois ao calor ambiente, até que os nossos filhos nasçam.

O gaio, pescoço estendido, arrisca outra pergunta:

E o segredo que o faz mudar de cor, mestre Camaleão?Já agora, gostava de saber...

Segredo? Mas não há nenhum segredo! - surpreende-se o outro. - Mudo de cor, devido, sobretudo, à minha disposição: se estou zangado, inquieto, medroso, sonolento… As células do meu corpo contraem-se ou dilatam-se, e lá me visto eu de rosado, de azul, de amarelo, de alaranjado ou de cinzento, depende do lugar onde me encontre. Mas a humidade do ar, a luz e o calor também contribuem para essa alteração. Além de tornarem mais claro ou mais escuro o castanho-esverdeado que, afinal, é a minha cor de sempre…

O gaio repara, então, que o réptil possui cinco dedos separados em cada mão, uma cauda prênsil, que o ajuda a segurar-se aos ramos, e uma fieira de espinhos que lhe vão da cauda até à nuca. «É, realmente, um animal patusco», pensa. «Mas simpático, sem dúvida!»

O camaleão, por sua vez, sabe que o gaio, no Outono, costuma enterrar em sítios certos as bolotas que vai depois buscar no Inverno, quando a fome aperta. Sabe também que ele é capaz de imitar na perfeição o canto das outras aves e de pronunciar, até, uma ou outra palavra, se for ensinado pelo Homem. Recorda-se, ainda, de uma história a seu respeito, de uma lenda. E não resiste à tentação de perguntar:

Diga-me uma coisa, amigo Gaio: sempre é verdade que pinta o azul das penas das suas asas com um diamante roubado, numa noite de Primavera, às serpentes, que o fabricaram com o próprio veneno?

O gaio, poupinha levantada no alto da cabeça, não se desconcerta. Responde:

Ora, ora, mestre Camaleão, a minha resposta só pode ser uma: nunca ouviu dizer «quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto»? E sem dar tempo ao camaleão para abrir a boca, acrescenta, enquanto se prepara para o voo:

Bom, amigo, adeusinho! O relógio da torre da igreja deu agora duas badaladas. Na conversa, a manhã já lá vai e nem dei por isso. Está na hora de regressar a casa, ao carvalho onde vivo…

Pois que regresse em paz e até à próxima! - responde o camaleão, a pensar de si para consigo: «Esperto, este Gaio. Da lenda, nem resposta!». E mal o outro se perde por entre as copas das árvores, distende a língua, num comprimento que ultrapassa o do seu próprio corpo, sobre um moscardo distraído que passou a sua beira.

 

Soledade Martinho Costa

Do livro Histórias que a Primavera me Contou

Ed. Publicações Europa-América

publicado por sarrabal às 01:04
link | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Novembro 2025

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1

2
3
4
5
6
7
8

9
10
11
12
13
14
15

16
17
18
19
20
21
22

23
24
25
26
27
28
29

30


.posts recentes

. ESPERAR

. 2 DE NOVEMBRO - DIA DOS F...

. CALENDÁRIO - NOVEMBRO

. DEDICATÓRIA

. A FLOR E A NUVEM - OU O C...

. AINDA SOBRE A ATRIBUIÇÂO ...

. AS CRIANÇAS HOJE - UM ALE...

. A PROPÓSITO DE CÃES E DE ...

. HiSTORINHA - A LAGARTIXA ...

. O CHORO DAS PALAVRAS

. RECORDAR AMÁLIA NO ANIVER...

. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...

. E CONTINUAMOS NO ALENTEJO...

. «IR À «PIDA»

. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...

. A TODAS AS MULHERES AFEGÃ...

. A ABELHA E O LÍRIO BRAVO ...

. SEGREDOS

. PORTUGAL DESCONHECIDO - O...

. E VOLTAMOS AOS AVIÕES - O...

.arquivos

. Novembro 2025

. Outubro 2025

. Setembro 2025

. Agosto 2025

. Julho 2025

. Junho 2025

. Maio 2025

. Abril 2025

. Março 2025

. Fevereiro 2025

. Janeiro 2025

. Dezembro 2024

. Novembro 2024

. Outubro 2024

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Julho 2024

. Junho 2024

. Maio 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Março 2020

. Novembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Dezembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

.links

blogs SAPO
Em destaque no SAPO Blogs
pub