

O gaio, a descansar do voo, pousa, por instantes, no ramo de uma alfarrobeira. Olha em redor, primeiro. Depois, atento, fica-se a mirar o verde mimoso das copas das árvores que lhe fazem companhia. «Se houvesse por aqui algum carvalho, mudava-me para estas bandas», pensa para consigo. E logo se demora num outro pensamento, que o enche de alegria. Durante o mês de Maio, os seus filhotes hão-de romper a casca dos ovos que a companheira chocou no ninho. Um ninho um pouco tosco, é certo, feito de folhas secas, de raízes e raminhos, que servirá de casa aos seus filhos, que vão nascer.Três semanas depois, os gaios, pequeninos, aprendem a voar. Nessa altura, já são capazes de sobreviver sozinhos — embora a família se mantenha unida até à chegada do Outono.
Mas, de pronto, o gaio interrompe o fio aos pensamentos. Repara que a seu lado, imóvel e silencioso, se encontra o Sr. Camaleão.
— Por um pouco, levantava voo sem notar a sua presença, mestre Camaleão! - exclama ele. - Tão quieto está e de tal forma se confunde a sua cor com a cor das folhas do ramo onde se agarra, que nem dava por si!
O camaleão, olhos de pálpebra redonda, salientes, na direcção do gaio, responde:
— É o costume, amigo Gaio, é o costume. Já estou habituado. Quantas vezes acontece passarem por mim e não darem por isso…
— Que aborrecimento. - comenta o gaio.
— Olhe que nem sempre. – contrapõe o outro - Às vezes, é melhor assim. Livro-me dos importunos e dos falsos amigos, que também os há. Isto, sem falar nos inimigos, que se pudessem deitar-me os dentes ou o bico…
O gaio dá um pulinho no ramo, pouco à vontade
— Espero não estar incluído nessa lista… - diz.
— Oh!, não! Nem pense nisso! - sossega-o o companheiro - A si, tenho-o em boa conta. - E logo, alcoviteiro: - Embora se comente por aí umas certas coisas a seu respeito...
— A meu respeito? Umas coisas? Que coisas?! - empertiga-se o gaio no cimo do ramo.
— Ora, que coisas… Que o meu amigo retira dos ninhos alheios os ovos e as pequenas aves indefesas, para com eles alimentar os seus filhotes…
O gaio, mais sereno, responde:
— Boatos, mestre Camaleão, boatos. O que procuro são larvas e insectos, isso sim: aranhas, zangãos, vespas… Umas lagartas, umas lesmas, uns caracóis… E não calcula o trabalho que me dão os meus filhos quando ainda estão no ninho. Comilões, não há outros! Só depois de saírem de casa é que começam a alimentar-se sozinhos; de bolotas, bagas, grãos, frutos silvestres… Mas, até lá…
O camaleão dá uma passada lenta na direcção do gaio.
— Pois nós, os camaleões, também nos alimentamos de vermes e insectos: gafanhotos, moscas, borboletas, aranhas… E se temos oportunidade e somos robustos, não nos escapam os anfíbios, sapos e rãs, e um ou outro roedor.
— É a lei da Natureza, meu amigo, para que o equilíbrio se mantenha… argumenta o gaio.
— Tem toda a razão. - concorda o camaleão de imediato.
— Agora o que me falta, compadre Camaleão – diz o gaio – é a sua língua comprida e viscosa, bem melhor do que o meu bico para apanhar a caça…
— E a mim falta-me a sua agilidade, e o seu grasnar alegre, principalmente, agora, que estamos na Primavera. Repare que sou um bicho silencioso e muitíssimo lento…
— Não se queixe, caro Camaleão, não se queixe. Já reparou, porventura, na sua sorte? Além de mudar constantemente a cor do fato que veste, ainda consegue ver, ao mesmo tempo, com um dos olhos o que se passa à sua frente e, com o outro, o que acontece nas suas costas!
— Pois é, amigo Gaio, mas que quer? - responde o camaleão – Ninguém está satisfeito com aquilo que tem… E depois, sabe, vivo muito isolado, muito sozinho. Raramente desço desta amendoeira onde moro. A não ser quando vou matar a sede…
— Comigo sucede um pouco a mesma coisa. Também não saio muito das redondezas onde vivo nem sou dado a grandes companhias. - conta o gaio, numa confidência – Apenas mudo os meus hábitos na Primavera. Fora disso… - e num outro tom, agora curioso:
— E os seus filhos amigo Camaleão?
— Os meus filhos nascem dos ovos, tal como os seus. Ainda que alguns familiares meus sejam vivíparos. Mas não chocamos os ovos como vocês as aves. As nossas fêmeas enterram-nos no chão, em pequenos buracos, bem escondidos, para serem chocados depois ao calor ambiente, até que os nossos filhos nasçam.
O gaio, pescoço estendido, arrisca outra pergunta:
— E o segredo que o faz mudar de cor, mestre Camaleão?Já agora, gostava de saber...
— Segredo? Mas não há nenhum segredo! - surpreende-se o outro. - Mudo de cor, devido, sobretudo, à minha disposição: se estou zangado, inquieto, medroso, sonolento… As células do meu corpo contraem-se ou dilatam-se, e lá me visto eu de rosado, de azul, de amarelo, de alaranjado ou de cinzento, depende do lugar onde me encontre. Mas a humidade do ar, a luz e o calor também contribuem para essa alteração. Além de tornarem mais claro ou mais escuro o castanho-esverdeado que, afinal, é a minha cor de sempre…
O gaio repara, então, que o réptil possui cinco dedos separados em cada mão, uma cauda prênsil, que o ajuda a segurar-se aos ramos, e uma fieira de espinhos que lhe vão da cauda até à nuca. «É, realmente, um animal patusco», pensa. «Mas simpático, sem dúvida!»
O camaleão, por sua vez, sabe que o gaio, no Outono, costuma enterrar em sítios certos as bolotas que vai depois buscar no Inverno, quando a fome aperta. Sabe também que ele é capaz de imitar na perfeição o canto das outras aves e de pronunciar, até, uma ou outra palavra, se for ensinado pelo Homem. Recorda-se, ainda, de uma história a seu respeito, de uma lenda. E não resiste à tentação de perguntar:
— Diga-me uma coisa, amigo Gaio: sempre é verdade que pinta o azul das penas das suas asas com um diamante roubado, numa noite de Primavera, às serpentes, que o fabricaram com o próprio veneno?
O gaio, poupinha levantada no alto da cabeça, não se desconcerta. Responde:
— Ora, ora, mestre Camaleão, a minha resposta só pode ser uma: nunca ouviu dizer «quem conta um conto, acrescenta-lhe um ponto»? E sem dar tempo ao camaleão para abrir a boca, acrescenta, enquanto se prepara para o voo:
— Bom, amigo, adeusinho! O relógio da torre da igreja deu agora duas badaladas. Na conversa, a manhã já lá vai e nem dei por isso. Está na hora de regressar a casa, ao carvalho onde vivo…
— Pois que regresse em paz e até à próxima! - responde o camaleão, a pensar de si para consigo: «Esperto, este Gaio. Da lenda, nem resposta!». E mal o outro se perde por entre as copas das árvores, distende a língua, num comprimento que ultrapassa o do seu próprio corpo, sobre um moscardo distraído que passou a sua beira.
Soledade Martinho Costa
Do livro Histórias que a Primavera me Contou
Ed. Publicações Europa-América
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