«(…)Tempo antes, tinha morrido o nosso peixinho vermelho, que se chamava Pim-Pim, graças a uma escritora minha amiga que publicou um livro para crianças intitulado «Pim-Pim, o Peixinho Prateado». Os meus filhos acharam que seria o nome indicado para dar ao peixe. Durou alguns anos, tantos, que as escamas vermelhas, aos poucos, começaram a ficar brancas: sinal de velhice nos peixes, informaram-me depois. Certa manhã, encontrei-o morto, fora do aquário. Um salto para a morte a que a velhice o terá obrigado. E chorei pelo peixinho vermelho, que se tornara branco ao longo dos anos. Ficou enterrado dentro de uma caixinha num jardinzito ali perto. Não podia conceber o Pim-pim deitado no lixo.
Veio depois um periquito, ainda bebé, lindo, azul e de raça pequenina, oferecido à minha filha no dia do seu aniversário. Com o passar do tempo, surpreendente, inteligente, uma graça, um esvoaçar de asas sempre em liberdade, o novo Pim-Pim, nome herdado do peixinho falecido – ainda desta vez por decisão dos meus dois filhos.
[…] e o Pim-Pim ia envelhecendo. Começou a cair do poleiro quando entrava na gaiola para dormir um sono. Uma vez, muitas vezes. Reparei, mas sem associar as coisas. Falei então com um veterinário especialista em periquitos, um estudioso destas aves: – Tem de habituar-se à ideia, o seu periquito começa a ter falhas de coração. Sempre são dez anos, o tempo máximo de vida para um periquito! Essas quedas são desmaios. Aí teve início a minha preocupação. À noite tive sempre o cuidado de o levar para outra dependência da casa, com a gaiola tapada e onde não chegasse a luz, o barulho das vozes, o som da televisão. Nem as pessoas sabem o mal que tudo isso faz às pobres aves, dentro de gaiolas, como presos atrás das grades. Havia uma coisa que o Pim-Pim detestava. Acho mesmo que odiava: que o agarrassem. Mesmo a comer à nossa mesa, a debicar no nosso pão, a provar a nossa ementa, da beirinha do nosso prato (gostava de tudo, principalmente de sopa), a beber empoleirado no rebordo dos nossos copos […] mesmo com toda esta familiaridade, apanhá-lo, só à falsa-fé. Metia a mão, devagarinho, pela porta da gaiola, que nunca se fechava, e ele numa gritaria, a dar-me bicadas (o ingrato) na vã tentativa de escapar-se. Mas era tanta a minha vontade de fazer-lhe festinhas (sempre a custo), que não resistia à tentação, mesmo antevendo o burburinho e a sua irritação. De manhã ia buscar a gaiola, destapava-a e colocava-a na cozinha, sobre a pedra mármore, junto da janela. Era a hora de o sol fazer companhia ao Pim-Pim. E lá vinha o banho, umas vezes apenas com a cabecita enfiada na tina, outras, num pulinho ágil, patitas dentro da água, num banho completo, espanejado, num palreio, a salpicar de gotinhas a pedra mármore e o que lhe ficava por perto. Numa dessas manhãs, ao transportar a gaiola para o lugar do costume, no trajecto entre a divisão onde dormia o Pim-Pim e a sala, até chegar à cozinha, caiu do poleiro. Mas dessa vez não se levantou. Não se ergueu para depois, ajudado pelo bico, voltar a trepar, como era seu costume, para ajeitar-se no poleiro. O meu coração bateu mais apressado (ele que raramente bate menos do que noventa pulsações). Pousei a gaiola. Meti a mão, a medo, pela porta. Docilmente, deixou-se apanhar. Nem um grasnado nem uma recusa. Deitado na palma da minha mão, olhinhos postos por uns escassos momentos nos meus, fechou os dele. Ainda senti o coraçãozito a bater. Depois, mais nada. Morreu na minha mão, o Pim-Pim, ele que durante dez anos não se deixou apanhar. Foi como se me pedisse desculpa. Por isso esperou que eu acordasse, que o fosse buscar para se despedir de mim, na minha mão, porque sabia quanto eu gostava de sentir nela o seu corpo pequenino e macio. Chorei dias a fio. […] Ama-se um animal como se ama uma pessoa? Num choro igual? Num desgosto igual? Ficou enterrado num canteiro da piscina, no Algarve. Do Algarve veio como presente, dez anos antes, e ao Algarve voltou. Escrevi um poema: Canto Azul. E choveram os conselhos: – Se fosse a ti, comprava outro, passava-te mais depressa o desgosto. Achei que talvez, quem sabe? Tempos depois, o dono de uma loja de animais, pessoa minha conhecida, foi pôr-me em casa outro periquito. Verde. Antipatizei logo com ele, coitado do bicho. Certamente pelo facto de vê-lo vivo na gaiola do meu Pim-Pim. Devolvi-o ao fim de três dias. Enquanto o Pim-Pim viveu, volta não volta, ia guardando as suas penas azuis, quando lhe caíam, porque eram realmente lindas. Uma a uma, dentro de uma latinha pequena, redonda, com uns arabescos dourados. Estava cheia e guardei-a dentro do cofre da minha escrivaninha, bem lá ao fundo, como se fosse um tesouro. Depois da sua morte, de tempos a tempos dava comigo a abri-la, numa recordação feita daquela tristeza que parece não ter fim. Foi quando alguém me disse: – Não é nada bom guardar penas em casa. Fiquei a pensar. Pelo sim pelo não, certo dia abri a janela, abri também a latinha e soprei-as, lancei-as ao vento. Como se faz no mar, com a cinza dos defuntos. No pensamento, palavras do meu poema: «[…] a certeza de não querer repetir o amor.»
Soledade Martinho Costa
Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»
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