Diz-se dos dias principais da quadra carnavalesca: Sábado Gordo, Domingo Gordo e Terça-Feira Gorda – denominação que ficou dos antigos Domingos Gordos que decorriam entre o Dia de Reis e o Carnaval, assim chamados devido ao excessivo consumo de carnes gordas verificado nestes dias em repastos rituais.
Se a Páscoa ocorre cedo, em meados de Março, uma vez que o Carnaval depende da data da Páscoa (como todas as festas móveis do calendário), os chamados «dias gordos», mais propriamente a Terça-Feira Gorda, último dia de Carnaval (que antecede a Quarta-Feira de Cinzas, primeiro dia da Quaresma), poderão oscilar entre o dia 3 de Fevereiro e o dia 9 de Março, nunca depois desta data. Os «dias magros» são o sábado e o domingo anteriores aos dias «gordos».
É neste universo, onde os procedimentos orais e gestuais – por conseguinte sociais – se invertem, que vamos encontrar diversas práticas específicas do ciclo do Carnaval, algumas mais do passado do que do presente, embora muitas delas continuem a verificar-se, particularmente entre a comunidade rural.
Se o Carnaval actual se transformou numa sombra do Carnaval de outros tempos, talvez não venha a despropósito lembrar algumas das brincadeiras e folguedos que vigoravam outrora, suprimidos que foram uns, ao longo dos anos (proibidos pelas autoridades), outros caídos em desuso e outros ainda por motivo de substituição das praxes, de acordo com a evolução e a mudança de hábitos e conceitos operados no seio da sociedade.
De civilizado o Carnaval não tinha, efectivamente, nada. Quer o Carnaval rural, quer o urbano (particularmente o setecentista e o oitocentista), projectava-se de forma anárquica, suja, irresponsável e até violenta, onde nada nem ninguém escapava ou era respeitado, mesmo que não fosse folião – ou precisamente por isso. De tal modo, que alguns editais publicados em 1817 «proibiam os folguedos de Carnaval» – ressuscitados, entretanto, a partir dos anos do liberalismo.
Por essas épocas vivia-se intensamente o «arremesso» (com força e pontaria certeira), e tudo servia para arremessar ao próximo, fosse um companheiro de folia ou um pacato cidadão avesso a folguedos: tomates, laranjas e ovos goros (podres), farinha, tremoços, cinza, pó-de-sapatos (pó preto), pó de talco, cal, lixo, excrementos, vísceras, ratos, sapos, rãs, lagartos (vivos ou mortos), água, dejectos, etc. (além de pedras e de toda a espécie de objectos velhos ou deteriorados).
As «cacadas», «caqueiradas» ou «paneladas» (recipientes com pedras, pedaços de madeira e toda a espécie de lixo) eram também atiradas para dentro das casas, à força ou à menor distracção, pelas portas e janelas. Ainda hoje, no Nordeste Transmontano, se usa o termo «deixar cacadas», que corresponde ao acto, mantido ali (sempre a cargo dos mais novos), de deitar, à noite, para dentro das casas que se descuidam com as janelas ou portas abertas, sacos ou mãos cheias de bolhacas que vão apanhar dos carvalhos.
As «pimentoadas» faziam-lhes companhia, arremessadas do mesmo jeito, a originar dentro das casas um cheiro nauseabundo e sufocante, que provocava tosse, obrigando os moradores a saírem para a rua, devido aos trapos velhos a arder dentro de um caco, misturados com malaguetas e estrume dos animais.
Passar por baixo de uma janela, constituía perigo para qualquer um, pois podia-se levar com o despejo de um balde de água ou de outra coisa menos limpa. Por isso, os precavidos, vestiam nos dias de Carnaval os fatos mais usados, munindo-se ainda de chapéus-de-chuva, para evitar males maiores.
Colavam-se rabos de papel (os «rabos leva») com legendas irreverentes a quem passava ao alcance da mão (costume ainda hoje mantido pelas crianças) e amarravam-se utensílios velhos (tampas, panelas, caçarolas ou latas) aos rabos dos gatos e dos cães, que corriam tresloucados por ruas e travessas, causando o pânico, o riso e um barulho insuportável.
Em muitas casas os vidros chegavam a ser retirados das janelas. Quando assim não acontecia, vidros, pedras e outros objectos cortantes ou contundentes constituíam as armas utilizadas (mesmo navalhas de ponta e mola) em desacatos e pancadaria, que culminavam, por vezes, com ferimentos nos intervenientes e até em mortes, nalguns casos.
Tudo isto, além de uma lista infindável de tropelias divertidas e inofensivas (algumas ainda hoje mantidas), em que quase todos participavam, uns como causadores directos, outros como suas «vítimas»: a dentada numa apetitosa «azevia» recheada com estopa ou algodão ou tremendamente picante; a aranha gigante que se descobria entre as dobras do lençol ao abrir a cama; a «osga» colada numa parede ou a carteira ou moeda coladas ao chão, que o transeunte tentava apanhar sem dar nas vistas – motivo para gargalhadas ante o embaraço dos mais desprevenidos.
Figuras populares do Carnaval de rua eram também os «Entrudos», homens mascarados apresentando ventres descomunais e munidos de bengalas, que se dirigiam a quem passava para lhes aplicar as tradicionais «pançadas», a causar um certo receio aos importunados.
No meio rural os divertimentos eram idênticos, apenas lhe acrescentavam as «roncas do Entrudo», sempre durante a noite, para que o incómodo fosse maior. As «roncas» eram (e são) feitas com a bexiga do porco, cozida no bocal de um cântaro de barro ou num cortiço de abelhas vazio, com um buraco no meio por onde sai um cordel que, ao ser puxado, emite um som barulhento, monótono e desagradável.
No Nordeste Transmontano, onde o costume se mantém, dão-lhe o nome de «pandorreiras», feitas igualmente com um cântaro de barro, mas com uma palha introduzida no buraco, a causar, ao ser puxada, o mesmo som incomodativo.
Estas musicatas percorrem as aldeias e os seus arredores, indo por vezes à entrada das aldeias vizinhas, num acto de provocação, produzindo o maior barulho possível, munidos, ainda, com buzinas, bombos, tambores, cornetas e latas, estas zurzidas por paus, fazendo assim a festa até noite avançada, a incomodar meio mundo, pois essa era (e é), fundamentalmente, a intenção dos «músicos».
Todavia, aos poucos, o Carnaval truculento e desordeiro substituiu os «arremessos» abrutalhados e sujos, pelos papelinhos e serpentinas multicores e pelos saquinhos de pano cheios com arroz, alpista ou serradura – ou também com feijão ou grão, a torná-los, talvez para matar saudades, um pouco mais pesados. Os baldes de água reduziram-se à dimensão das bisnagas, por vezes cheias com água perfumada ou mesmo só com perfume, e o barulho provocado pelos cães e gatos, ao dos «estalinhos», «bichas-de-rabear» e «bombinhas», que permanecem até aos nossos dias.
Em Lisboa, na noite de Carnaval, realiza-se o primeiro baile de máscaras no Real Teatro de São Carlos (1809) e organiza-se pela primeira vez (1887) um Cortejo de Flores, com carros enfeitados e a respectiva «batalha», evento considerado na época um autêntico êxito e uma verdadeira inovação.
Iniciava-se uma nova era do Carnaval português.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol.II
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