
O domingo tinha acordado chuvoso. Dia frio o suficiente. Um vento irritante, numa teima de quem pode e manda, fazia dançar a rama das laranjeiras de laranja amarga que se lembraram de plantar ao longo dos passeios. Fevereiro não tem por costume ser um mês ameno.
A campainha tocou. «Quem será?», pensei. Espreitei pelo ralo da porta. Vi apenas o cimo de uma cabeça, sinal de que o visitante era de estatura pequena. Não me enganei. Na minha frente estava uma criança. Uma menina. Olhos grandes de um azul pardo a fitarem-me embaraçados e um pouco temerosos: «A senhora precisa de mulher-a-dias?» Ouvi-lhe a voz quase de repelão, rápida e trémula, sem me dar tempo de lhe perguntar ao que vinha.
«Mulher?! Mulher aquela criança que não aparentava mais do que uns onze anos de idade?!» Não consegui responder. Entre as ombreiras da porta, agora era eu, de olhar embaraçado, que lhe mirava o rosto magro, os cabelos loiros, húmidos da chuva, e as roupas gastas que lhe vestiam o roer do frio no corpo franzino.
Disse-me chamar-se Filomena. Tinha treze anos (quem diria?!). Na escola andou até à terceira classe. Não continuou. Não pôde. O pai morreu no trabalho. Caiu de um andaime, numa obra. Além dela, a mãe ficou com mais quatro filhos; tinha quatro irmãos, todos rapazes. «Somos muitos, temos que fazer pela vida…», acrescentou, num encolher de ombros, entre resignado e triste.
Enquanto conversávamos a dona Mariana subia a escada. Parou a meio do lance, antes do patamar. Olhou a menina. E logo a pergunta, entre surpresa e curiosa: «Tu não és a Filomena? Não foste minha aluna?» E a resposta: «Sou sim, minha senhora. Fui sim minha senhora.» Confirmação dada a custo, voz sumida, ar envergonhado de quem, apanhado em falta, deseja enfiar-se num buraco, olhos presos na ponta das botas largas e velhas, mãos nervosas a rodar nos dedos o cabo do chapéu-de-chuva de cor vermelho vivo – como se a pobreza fosse um crime.
A professora subiu o resto dos degraus. Nova pergunta, desnecessária: «E o que andas tu a fazer por aqui?» Nova resposta: «À procura de trabalho.» Dona Mariana abanou a cabeça. Entrou em casa, mas não fechou a porta. Reapareceu com alguns pedaços de pão e uma laranja. «Toma lá.» Disse, e estendeu a oferta à Filomena.
Fiquei de novo a sós com ela. A minha filha era um pouco mais velha. Havia sempre roupas que deixava de vestir. Arranjei dois sacos. Meti neles o que pude. «Não são muito pesados?», que não, não eram, podia bem com eles. «Afinal, onde moras, Filomena?» Precisava da informação. Explicou-me. Lá para o «choupal», passando a Formigueira, depois da ponte. Prometi procurá-la, enquanto ela descia as escadas. «Os meus irmãos vão ficar contentes.» foram as suas últimas palavras.
Passou algum tempo. Sem custo consegui localizar o local onde morava. Um amontoado de casas, onde a privacidade de cada um era apenas a de um passo entre uma e outra porta. As cores das tintas demasiado garridas, desajustadas. Um mural de desencanto a vestir o labirinto das paredes mal rebocadas.
Uma vizinha assomou à estreiteza da janela. Perguntei pela Filomena. «É ali, onde estão aqueles gaiatos à porta.» Informou. Dirigi-me às crianças. Dois rapazinhos de olhos assustadiços, seis, oito anos: «É aqui que mora a Filomena?» Perguntei. Olharam um para o outro. O mais velhito, ar medroso, acabou por dizer: «É.» Insisti: «Ela está?» Que não, não estava. «E a tua mãe?» Também não estava.
A vizinha aproximou-se, numa curiosidade aceitável e natural: «Precisa de alguma coisa?» Sim, precisava de saber da Filomena. «Ah, essa já cá não está!», foi a informação. Completa logo a seguir: «Uma senhora veio buscá-la e levou-a para Lisboa.» Entrei no carro. Voltei para casa.
Ainda hoje penso naquele rosto magro, naqueles cabelos loiros, húmidos de chuva, nos olhos da Filomena, grandes, de um azul pardo, onde apenas cabia o segredo dos seus sonhos mal sonhados. «Uma senhora tinha-a levado para Lisboa». Menos uma boca a comer naquela casa pobre. Para quê indagar junto da mãe?
Ao fim destes anos, não resisto a perguntar: alguém viu a Filomena?
Soledade Martinho Costa