
Depois dos tradicionais repastos conjuntos para celebrar a matança do porco, dá-se início à tarefa, entregue às mulheres, de lavar as tripas e migar para os alguidares as carnes destinadas aos enchidos: paios, chouriços, linguiças, farinheiras e morcelas grossas e finas, picado esse que, em Aljezur, continua a ser benzido e marcado («sulcado») com uma cruz e depois bem tapado até ao dia seguinte.
Mais recuadamente, por essas aldeias, cada família criava o seu porco para a matança anual e, por vezes, dois suínos. A manter hábitos antigos, de norte a sul do País, os animais são criados junto da casa dos donos, em pocilgas ou «furdões», e alimentados «à pia»: restos de comida, «farinha da saca» (a chamada «ração») a substituir os farelos cozidos (parte grosseira da farinha de milho depois de peneirada, que dá mais gordura ao porco, hoje pouco utilizada), frutos sorvados ou tocados, hortaliças, etc., pois de tudo o suíno se alimenta.
Outra praxe mantida na Beira Baixa, consiste em oferecer aos familiares, amigos e vizinhos, que não estiveram presentes na matança, uma «fritada», constituída por um pedaço de fígado, outro do lombo, uma morcela e outros pedaços de partes do porco, tudo em cru, levado num prato, presente retribuído depois por quem o recebe, quando, por sua vez, mata o seu suíno.
Em Aljezur e noutras localidades do Algarve oferece-se a «moleja», outrora sangue e pedacinhos das miudezas do porco, cozidos em água, a que se juntava arroz, hoje constituída pelos mesmos pedacinhos das miudezas e um naco de carne (crus), uma morcela, uma farinheira e um pouco do caldo onde se cozeram as morcelas, destinado às «papas mouras», para «serem feitas na casa de cada um».
Outro uso da Beira Baixa, que já não se verifica, consistia na chamada «adua», podendo os animais pertencer a um ou a vários donos. A pastagem principiava no dia 20 de Janeiro (dia de São Sebastião), quando os sobreirais eram «largados» pelos respectivos proprietários, depois de colhida a «lande» (bolota) da azinheira e dos sobreiros, terminando o pastoreio dois meses depois.
O pagamento ao guardador fazia-se «por cabeça» (consoante o número de porcos). A prática comunitária deste pastoreio, ou da «adua», exigia que durante esse período de tempo os animais fossem conduzidos apenas pelo mesmo guardador.
Por essa época, localidades havia rodeadas de frondosos sobreirais, caso de Alcains. Por isso se cantava: «Sobreiro que dás bolota/Porque não dás coisa boa?/Cada um dá o que tem/Conforme a sua pessoa.»
Também em terras da Beira Baixa, quando um porco está doente, é costume ainda hoje, o dono do animal prometer ao santo da sua devoção (quase sempre a Santo António) um chouriço do comprimento do porco na altura da matança. Daí, em Sarzedas, os «chouriços das promessas» serem colocados num andor e vendidos depois num leilão que tem lugar no adro da igreja, com o dinheiro a reverter para melhoramentos no templo – antigamente com os chouriços metidos em cestos e entregues a um rapaz encarregado de os vender pelas ruas no dia da festa do santo.
Prática semelhante verificava-se em Mós (Moncorvo, Trás-os-Montes e Alto Douro), onde, dias antes do Natal, tinha lugar uma romaria à Capela do Menino Deus («hoje restaurada, porque nem sequer um altar possuía») para levar um porco, oferecido em promessa pela população.
Soledade Martinho Costa
Do livro «festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores,Vol.VIII