
Valpaços, Vila Real, Trás-os-Montes
Em diversas zonas do País, Novembro não significa apenas os «magustos» e a prova do vinho novo, com o abrir dos tonéis e das pipas. Simboliza também um acontecimento da maior relevância no conjunto das tarefas cíclicas do nosso calendário rural: a matança do porco – pretexto para a reunião da família, dos amigos e vizinhos e motivo para os repastos conjuntos, onde a fartura da carne não impede o vinho de ser rei.
A matança do porco pode ir até inícios de Fevereiro – na ilha da Madeira começa a partir do dia 8 de Dezembro, sempre de madrugada – beneficiando do tempo mais frio e a constituir, na grande parte das aldeias portuguesas, uma das mais tradicionais celebrações familiares rurais.
Ocasião festiva e acontecimento que se reveste de particular importância do ponto de vista económico, uma vez que as carnes, os enchidos, o toucinho e a banha representam alimentos fundamentais da família ao longo do ano, a matança do porco encontra-se associada a algumas praxes e rituais mantidos até hoje no seio da comunidade rural.
Ficamos a saber que as mulheres, durante o período menstrual, «não devem aproximar-se da carne», nem mesmo «do lugar onde decorre a matança», segundo o povo «porque podem, sem querer, estragar a carne». Outro costume consiste em colocar sobre a carne, depois de temperada com sal e pimentão, algumas rodelas de laranja «sempre em número ímpar».
Em certas localidades da Beira Baixa, antes do suíno ser agarrado, continua a observar-se a praxe dos donos do porco oferecerem a quem toma parte na matança (ou «matação») figos secos, vinho e aguardente. No Algarve mantém-se a oferta de filhoses, café e aguardente de medronho, oferta que continua a estender-se às pessoas conhecidas que passam na rua.
Depois de morto e chamuscado, o porco é pendurado pelo «chambaril» (antigamente um pau curvo, hoje um ferro, que se enfia nos «jarretes», parte posterior da articulação do joelho do animal), num local apropriado, de cabeça para baixo, tarefa nem sempre fácil quando se trata de um cevado de grande porte, ocasião que obriga, na Beira Baixa, a que os presentes digam bem alto: «Porco acima, vinho abaixo!», a dar motivo para se beberem mais uns copos…
Nessa posição é feita a «abertura», ou seja, é aberto pela barriga, sendo-lhe retirada em primeiro lugar a tira de gordura («barrigueira»), com febra no interior (há quem lhe chame toucinho), que vai da parte inferior do pescoço até entre as pernas traseiras, e de seguida as vísceras (miudezas) e as tripas. O toucinho ou entremeada encontra-se agarrado, de lado, à costela baixa.
O sangue do animal é recolhido num alguidar, onde se deitou sal e vinagre (ou vinho), que se vai mexendo com uma colher de pau para não coalhar, só parando esta operação quando o sangue se encontra completamente frio.
O porco fica no «chambaril» até ao dia seguinte, para arrefecer, altura em que a carne é «desmanchada», separando-se as «peças» destinadas ao fumeiro (enchidos) e as que vão ser guardadas nas arcas frigoríficas – outrora nas salgadeiras, embora o toucinho continue a ser conservado no sal.
Os paios, as morcelas, as farinheiras e os chouriços só devem permanecer no fumeiro no máximo oito dias «para não azedarem». Anteriormente os enchidos eram conservados submersos em azeite, dentro de potes de barro, chamados, na aldeia do Bom Velho de Cima (Condeixa, Beira Litoral), «açucareiros».
Segue-se o «almoço da matança», mantendo-se o costume, na Beira Baixa, conquanto mais raramente, de servir-se a tradicional sopa de pão e ovos, introduzidos no caldo onde se cozeram os nabos, a hortaliça e o feijão. Da ementa fazem igualmente parte a carne de carneiro assada no forno com batatas, o arroz com miudezas de porco, o guisado de galinha e outros acepipes, comidos ao jantar desse dia e no dia seguinte – ou não seja o dia da matança aquele em que se fazem convites «como se fosse uma boda», visto marcar-se a matança quase sempre para um fim-de-semana.
Em Cafede (mesma região) era servido antigamente ao almoço um caldo de castanhas piladas com arroz e «laburdo». Desaparecido o caldo, mantém-se o «laburdo»: um guisado feito com as miudezas do porco (fressura, fígado, coração, bofe), toucinho da barriga (a «barrigueira») e sangue, ao qual se acrescenta, no final, ainda durante a fervura, algumas rodelas de laranja.
No Bom Velho de Cima faz-se uma sopa, já com a «queixada» do porco (carne magra das bochechas do suino), batatas, cenouras e hortaliça, sendo a carne da «queixada» servida à parte, acompanhada com arroz cozido no caldo da sopa. Saboreia-se também o «guisado de torresmos», feito com a «barrigueira» e miudezas, umas vezes com batatas já misturadas, ou apresentadas separadamente. Ao jantar fazem honras ao repasto as febras assadas na brasa.
Em Vila Alva e noutros locais do Baixo Alentejo serve-se a «rechina», uma espécie de guisado confeccionado com o sangue e as miudezas do porco, a que se junta sopas de pão.
Em Aljezur (Algarve) ao almoço come-se polvo ou bacalhau cozido com batatas, galinha de cabidela ou galinha de molho (apenas refogada com cebola e temperos) e ao jantar pedacinhos de carne de porco frita e sopa de couve branca («coração»), «que leva miudezas, chispe, orelha, toucinho, chouriço e morcela». No segundo dia da matança, como manda a tradição, servem-se as «papas mouras», que se fazem juntando ao caldo onde se cozeram as morcelas a farinha de milho grossa e o sangue do porco.
Actualmente, é hábito generalizado petiscar-se assim que termina a matança, antes mesmo do porco arrefecer, retirando-lhe umas febras, a «cachola» e pedaços de entrecosto e de orelha, assados depois na brasa. Em Alcains (Beira Baixa) a «cachola» e o entrecosto são condimentados com alho e vinagre e regados com vinho novo tirado da pipa, quase sempre aberta nesse dia.
Soledade Martinho Costa
Fumeiro
Do livro «festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores, Vol. VIII