
A minha neta Soli brincava no jardim. Uma outra menina, um pouco mais velhinha, aí para os nove, dez anos, fazia-lhe companhia. De repente a Soli dá uma corrida na minha direcção e informa, entusiasmada:
- Vó, aquela menina, vês? – E aponta a outra criança. – Vai para Angola!
- Ah, sim? – Respondo.
O entusiasmo da Soli devia-se ao facto de ter vivido em Angola alguns dos seus poucos anos de vida. Tudo o que diz respeito a África, sobretudo a Angola, lhe desperta interesse.
A outra criança, interrompida a brincadeira, aproxima-se também. A Soli apresenta:
- É a Filipa, Vó, mora ali. – E aponta, agora, para um dos prédios que circundam o jardim.
- Olá, Filipa! – Digo e acrescento à saudação uma pergunta: - Já sei que estás de partida para Angola, é verdade?
- É. – Confirma a Filipa.
Sem razão aparente, insisto em saber mais, talvez por ter amigos em Angola:
- E para que zona vais, sabes?
A resposta veio, explícita, sem rodeios:
- Sei. Vou para a zona dos ricos!
«Eis a zona de Angola para onde vai a Filipa», penso para mim.
- Como é que sabes? – Intromete-se a Soli, atenta à conversa, pergunta feita num tom entre o curioso e o recriminatório.
- Disse-me o meu pai. Ele é que disse «vamos para a zona dos ricos»! – esclarece a menina.
- Muito bem, Filipa. – Rematei. – Desejo que gostes muito de lá estar, tu e os teus pais. Tens irmãos? – Perguntei, por fim.
- Não. – Foi a resposta.
Pelo aspecto modesto da criança e do prédio onde morava, já antigo, deduzi que a meta da pessoa pobre continua a ser a mesma: chegar a rica.
Para a família da Filipa, suponho que a meta seja Angola. «Lá é que se ganha bem, é que está o dinheiro», diz-se, ultimamente. O objectivo desta família, será, portanto, o de melhorar as condições de vida, porventura difíceis em Alverca do Ribatejo, ou em Portugal, o que vem a ser a mesma coisa.
O que me surpreende pela negativa é que se incuta a uma criança a noção, naturalmente sem grandes explicações, de que existem classes sociais distintas: pobres e ricas. É uma verdade, eu sei. Até sei (e passe o lugar-comum) que os pobres do meu país estão cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Só não aceito que uma criança vá atrás de um sonho que não é seu, mas do pai. Pode ser que o sonho se concretize, ou não. Neste caso, que resposta dará o pai à Filipa? Que têm de mudar para a «zona dos pobres»?
A riqueza devia trazer implicações sociais obrigatórias: ajudar os outros, ser solidário, dar a quem precisa o muito de que não se precisa. Uma utopia? Sem dúvida.
Não raras vezes penso nos ordenados milionários que muita gente recebe em Portugal. Para não destoar, os jogadores de futebol. Mas não apenas esses. Temos os políticos e aqueles que, em diversas áreas da vida nacional, pública e privada, ocupam lugares de destaque. Uma vergonha e um escândalo num país de tantas carências. Sem falar na corrupção que grassa em Portugal, a fazer concorrência à epidemia da gripe A - mas sem esperança de vacinação à vista.
Será que para além das famílias, essas pessoas ajudam alguém? Que pensam um pouco nos desempregados, com dívidas e outras dificuldades? Nos idosos com reformas de fome? Nas crianças com necessidades de toda a ordem? Rodeados do seu bem-estar e gozando da sua milionária qualidade de vida, será que essas pessoas se lembram dos que precisam de ser ajudados? Aceito que achem estas palavras moralistas, simplórias, piegas. Pois é. Às vezes, acontece.
«Zona dos ricos» implica de antemão uma divisória. Um muro. Uma linha invisível (ou não) de separação entre os seres humanos. O pai da Filipa sabe. A Filipa ainda não. Mas com o passar do tempo, a Filipa irá aprender algo tão certo, tão real, quanto cruel: em Angola, como em outros lugares do Mundo, não é só a cor da pele que divide as pessoas. Há outras cores a dividi-las. Uma delas, a cor do dinheiro.
Soledade Martinho Costa