Parte I – Origens e Tradições
Parte II – Origens e Tradições
Parte III – As «Brincas» (Évora)
Parte IV – Da «Fama» aos «Quadros Vivos»
Parte V – «Presépios Vivos» (Estremoz)
Parte VI – «Autos Pastoris» (Figueira da Foz)
Não é, com certeza, errado afirmar que os «autos pastoris» ou «presépios vivos» da Figueira da Foz foram os mais famosos e apreciados do País. De grande nomeada, além de servirem de ponto de encontro das famílias figueirenses, os autos chamavam à Figueira durante a quadra natalícia gentes das localidades vizinhas e mesmo outras vindas de longe para apreciar a arte do teatro popular, dizendo-se por essa época que, «para ver os «presépios vivos» caía meio mundo na Figueira».
Ricos e pobres, irmanados na mesma expectativa, aguardavam o mês de Dezembro para assistirem à representação dos autos, a cargo de grupos de actores amadores, pertencentes a todas as classes sociais, desempenhando, também, as mais diversas profissões. Alguns desses nomes ainda hoje são recordados em escritos datados desse tempo, devido às excelentes interpretações por si desempenhadas.
Nos finais de Novembro iniciavam-se os ensaios, a decorrerem diariamente nas noites de Inverno até à véspera de Natal, dia da primeira representação. As récitas tinham lugar nos chamados «palheiros» ou «cardenhos» (armazéns), escolhidos entre os mais amplos, de modo a albergar o maior número de espectadores. A iluminação era feita com velas, candeias e lanternas de azeite. Posteriormente a acetileno, só mais tarde as representações começaram a ser efectuadas em locais dispondo já de luz eléctrica.
Com o passar dos anos vários teatros se foram construindo, a par de salões nas colectividades recreativas, sempre munidos do respectivo palco, o que nos leva a pensar no grande amor, interesse e enraizado hábito cultural que os Figueirenses nutrem pelo teatro, constituindo, a nível do País, um caso absolutamente invulgar.
Entre 1885 a 1905 existiam na Figueira da Foz cerca de duas dezenas de associações recreativas que se dedicavam ao teatro «quer em grandes palcos ou em minúsculos teatrinhos». Até mesmo nas casas senhoriais ou apalaçadas, começaram a surgir os denominados «teatros» (salões destinados a récitas), cujos actores, na maioria dos casos, eram constituídos pela própria família dona da casa, com os espectadores, naturalmente, seleccionados.
Nos populares «cardenhos», depois de varridos, limpos, caiados e alindados com festões de verdura e flores, os cenários repetiam-se, invariavelmente, de ano para ano: armava-se um palco ao fundo, onde os elementos cénicos principais apresentavam uma gruta ou «lapinha» ao centro, sendo o restante espaço de cena ocupado por uma espécie de colina revestida com musgo, por onde subiam e desciam pastores, pastoras, romeiros e toda uma diversidade de personagens que tomavam parte na encenação do nascimento de Cristo, levando-lhe as suas oferendas: cestinhos com queijos, «rosários» de pinhões, bolos e mesmo réstias de alhos e de cebolas, além de pequenos objectos para o Menino brincar: apitos, chocalhos, etc.
Na «lapinha» encontravam-se a Virgem Maria, o Menino, São José, o burrinho e a vaquinha – estes sempre de loiça das Caldas. Neste cenário e defronte da «lapinha» decorria toda a acção dos autos: falas, cânticos e bailados. Como pano de fundo, para lá da colina, uma imagem pintada da cidade de Jerusalém, enquanto para pano de boca era utilizada, geralmente, uma cortina de chita florida.
A «lapinha» encontrava-se oculta por um taipal de madeira, a dar ensejo às diversas e singelas interpretações dos actores e ao seu espanto e alegria sempre que descobriam, no seu vai-e-vem, onde se encontrava o Deus Menino, após corrido o respectivo taipal.
O guarda-roupa era também diversificado e deixado ao critério de cada um, desde o trajo de pastor, com a devida «palhoça» às costas, à pastora, de colete vermelho e saia de veludo preto ou de outra cor. Isto, além do ouro, sempre presente nas orelhas ou ao peito das raparigas, seu ou emprestado «para o presépio»: arrecadas, cordões, corações, etc.
Os bancos eram corridos, sem costas, ficando o preço dos bilhetes ao critério do público. Para isso, colocava-se uma mesa na entrada e cada qual depositava ali a quantia que melhor entendesse. Retirado o dinheiro destinado às despesas do «cardenho», se sobejassem algumas moedas, organizava-se, de acordo com a praxe, uma bacalhoada, na qual tomava parte toda a companhia, encerrando, assim, comunitária e fraternalmente, os famosos «autos pastoris» da Figueira da Foz.
Nessa época os autos representavam-se sem a divisão actual, que consiste em quatro actos, durando, desde o começo da noite até alta madrugada. Os próprios actores, a dado passo, interrompiam espontaneamente as suas interpretações para descansar, intervalos aproveitados pela assistência para saborear as fartas merendas levadas de casa, principalmente as tradicionais «filhoses» e a apreciada «torta doce» das Alhadas, acompanhados pela garrafinha do vinho ou da geropiga.
Comia-se, bebia-se, conversava-se, as senhoras chegavam mesmo a fazer renda, discutia-se a actuação dos actores, a dar motivo, por vezes, devido a opiniões divergentes, para uma ou outra bordoada, que também as havia por aqueles tempos, desferida à saída do «cardenho» – quando o caso não resultava num verdadeiro tumulto, tomando parte nele toda a assistência, como se de outros actores e de outro auto se tratasse, agora representado na via pública.
Apesar destes imprevistos, os «autos pastoris», vistos e revistos anualmente, sabidos de cor, trauteados e assobiados, mereciam do público sempre a mesma atenção. O importante, afinal, era o respeito pela devoção, o aconchego da amizade, da boa vizinhança, do calor humano que alimentavam o frio do «cardenho» e a alma dos actores.
A seguir: Parte VII – «Autos Pastoris» (Figueira da Foz)
Soledade Martinho Costa