Parte I – Origens e Tradições
Parte II – Origens e Tradições
Parte III – As «Brincas» (Évora)
A sua origem pode remontar ao século XVIII, ou, mais recuadamente, ao século XVI, a fazer lembrar os autos ou farsas de Gil Vicente, quer pelo estilo de linguagem utilizada, quer pelas situações criadas ao longo das «brincas», dirigidas, principalmente, a um tipo de público popular ou marcadamente rural.
Ainda hoje os locais escolhidos para a realização desta função se confinam aos bairros populares e às freguesias rurais. Locais havia, onde, por tradição, as «brincas» se deslocavam ciclicamente: a Quinta da Rafaela, a Quinta do Ourives, a Quinta dos Apóstolos e o lugar da Machoca. Mais recentemente, são escolhidos lugares como o Bairro do Frei Aleixo, o Bairro de Santa Maria, o Bairro de Santo António, a Venda das Pinas, a Venda da Alface e Valverde, entre outros.
No sentido de se continuar a transmitir aos vindouros as raízes de um património cultural cheio de sabedoria e conhecimento populares, esta remota tradição das «brincas» de Évora integra-se na categoria do teatro feito ao ar livre, esse singelo e humilde espectáculo de rua (semelhante ao trabalho dos saltimbancos, dos fantocheiros, das troupes, dos circos ambulantes pobres, hoje praticamente inexistentes), que fazia, por vilas, aldeias e lugarejos – e mesmo nas ruas das grandes cidades, particularmente nas periferias – a delícia e o deslumbramento de quem a ele assistia.
Daí, que a tradição das «brincas» (que chegaram a ser proibidas) se entenda e aceite como a festa do povo ou a festa da praça pública, tanto no que respeita a quem a realiza como a quem se torna seu destinatário, numa espécie de partilha entre aquele que oferece e aquele que recebe, neste caso as populações que aderem, participam e brincam, fazendo valer a confraternização, a cumplicidade e o riso.
Das «brincas», nome que designa o grupo formado para representar um drama popular em rimas durante os dias de Carnaval, constam as seguintes personagens:
Os actores: a quem cabe o desempenho do «fundamento» (texto em rima, ao gosto do seu autor, que conta uma história com princípio, meio e fim), baseado em episódios da Bíblia, da História de Portugal, em contos tradicionais, em factos da realidade social alentejana ou nacionais, etc.
O palhaço: um «faz-tudo» que tenta (e consegue) subverter as situações criadas no «fundamento», transmitindo a graça, a ironia e a irreverência, no intuito de quebrar a emoção criada nos espectadores face ao «enredo», obrigando ao riso e ao desanuviamento perante a dramatização da «peça». Intervém ao longo de toda a representação, sempre como elemento desorganizador entre a cena e o público, servindo-se da comicidade, a criar situações de hilariedade, pelo absurdo e a brincadeira, salpicando de comédia a narração do drama. Esta personagem faz também de «ponto».
Os músicos: que utilizam instrumentos tradicionais: acordeão, concertina, pandeireta, bombo, «caixa», «ronca», ferrinhos e guitarra. É-lhes atribuído um papel importante no início do «fundamento» e no seu encerramento. Na maioria dos casos, além de executantes, são ainda os autores das músicas.
O mestre: que representa a autoridade, reconhecido como tal, e como tal responsável pelo grupo. Nos espectáculos é ele o «mandador» e, geralmente, o ensaiador. Cabe-lhe orientar a entrada da música e a própria «brinca», fazer as apresentações, dar as necessárias explicações no início do «fundamento» e agradecer, no final, ao povo e ao «dono do lugar», ou «dono da rua», isto é, à pessoa que acolheu as «brincas» durante o tempo de permanência do grupo na localidade. Costuma segurar na mão algumas fitas coloridas e movimenta-se como um mestre-de-cerimónias, um maestro ou um chefe de banda. É igualmente ao mestre que compete pedir autorização ao «dono do lugar» para dar começo ao «fundamento». É ele ainda que, ao som de um apito, orienta as execuções coreográficas e as diversas marcações e contradanças. As coreografias representam, quase sempre, quadrados, estrelas ou meias-luas, considerados símbolos mágico-propiciatórios.
Multifacetados, mestre e restantes elementos das «brincas» desdobram-se realizando outras tarefas: são encenadores, ensaiadores, coreógrafos, artistas plásticos de cariz popular e poetas-autores dos «fundamentos».
No caso de duas «brincas» se cruzarem na mesma localidade e não se chegar à conclusão de qual irá actuar em primeiro lugar, cabe aos mestres, de acordo com o preceito, iniciarem um despique em verso (décimas) para se decidir a questão.
O «fundamento», como a palavra indica e foi referido, orienta-se pelo fio narrativo de uma história a que não fica alheia a crítica de índole satírica à vida social ou política da província, do País e até do Mundo, pela condenação pública dos desmandos, da injustiça ou da inoperância inerente às estruturas políticas e sociais – que o Carnaval, por esse País fora, se permite julgar e «punir».
O «círculo» representa o local, marcado no chão, onde a «brinca» se desenvolve. O espaço delimitado pelo «círculo» é reservado ao espectáculo (simbolicamente, o «espaço sagrado ou mágico da festa»), o espaço exterior, ao povo. Por regra, o centro do «círculo» é assinalado com um mastro, estandarte ou bandeira, mesmo a nacional, enfeitado com fitas de seda, papel de cor e outros adornos, além do nome da «brinca».
Os próprios actores, para lá das indumentárias, apresentam-se com fitas de várias cores cruzadas no peito, flores de papel colorido e chapéus enfeitados da mesma forma, por vezes com rosas de papel. Utilizam ainda, para gáudio popular (e porque a época o permite), vários adereços maliciosos e mesmo obscenos.
O «fundamento» começa com os actores dentro do espaço que lhes está reservado (o «círculo»), desenrolando-se depois o protocolo, a música, o ritual, a acção. Évora revê-se, assim, na tradição ancestral das «brincas», a devolverem ao povo o que ao povo pertence: a ruralidade, a oralidade e a singeleza das coisas que só o povo entende e sabe amar.
Quando termina a função, como despedida, a «brinca» é convidada pelo «dono do lugar» a deslocar-se a sua casa, ou a um café ou taberna, onde lhe é oferecido algo para comer e beber. Antes disso, mal acaba o «fundamento», procede-se ao respectivo peditório, revertendo o dinheiro para as despesas com os adereços e o restante (se o houver) para um pequeno convívio entre o grupo. Os contratos para a deslocação das «brincas» iniciam-se, conforme as regras, nos bailes do Ano Novo.
Os grupos usam também de grande sigilo em relação ao «levantamento do fundamento» (construção e escrita do texto rimado) e aos trajos que vão apresentar, uma vez que o despique entre as diferentes «brincas» faz, igualmente, parte da tradição. Os ensaios têm lugar dois ou três dias por semana, visto os actores e os «fundamentos» não serem os mesmos todos os anos. As deslocações, essas, são constantes nos dias de Carnaval.
A estreia das «brincas», ou do «fundamento», a respeitar a praxe, ocorre, primeiramente, no seu lugar de origem: a localidade a que pertence o grupo durante o baile de sábado de Carnaval. Na Quarta-Feira de Cinzas, no tradicional «enterro do Entrudo», as «brincas» dão-se por terminadas, para voltarem no Carnaval do ano seguinte.
Antigamente, só os homens tomavam parte no ritual das «brincas». Desde o Carnaval de 1997 as mulheres começaram também a participar. São pioneiras as mulheres dos bairros de Santo António e de Nossa senhora de Tourega (Valverde).
A seguir: Parte IV – Da «Fama» aos «Quadros Vivos»
Soledade Martinho Costa