Assim se dizia dos homens alentejanos que a falta de trabalho e a fome obrigavam a esmolar pelas vilas e cidades afastadas das suas terras, por lá andando, por vezes 15 dias e mais, regressando a casa quase sempre de mãos vazias.
Lembro-me
De os ver passar na minha rua
Em grupo
Grupo pequeno
Três a quatro homens
A capa alentejana pelos ombros.
Vinham
Do “alto” da vila
Hoje cidade
Dividida como dantes
Em parte nova e parte antiga.
Na memória dos olhos
Guardo
As suas capas
Castanhas
Cor da terra.
As cabeças cobertas
Com o lustro dos chapéus
A bota grossa
São imagens
Que ficaram na distância do olhar.
Quem seriam esses homens
A deambular pelas ruas?
E tinha medo
Um medo
Que me subia até aos ombros
E se sentava neles.
Espreitava-os
Pela cortina da janela
Falava-se de assaltos
De crimes e outras histórias
Tão falsas
Como a mentira do meu País de então.
Quando surgiam de uma esquina
Era o silêncio que lhes fazia escolta
Ninguém os conhecia
Quais seriam os seus nomes
Teriam casa
Mulher, filhos, pais, família?
Circulavam de porta em porta
A subir
A descer escadas
De mão estendida
Num acanhamento
Onde eu não percebia
A mágoa e a revolta.
E nunca vi um gesto
Ouvi uma palavra
Dei por ninguém
Que se tivesse aproximado
Daquele grupo de homens
Sem alternativa
Sem outra condição
A não ser a de pedir
Estender a mão
A quem por vezes nada tinha.
Caminheiros do desamparo
Da solidão
Oh! donos de tão grande pobreza
Estais, por acaso, ainda vivos?
Passaram tantos anos…
Tempo que me pesa demais no coração
E só hoje acordei neste poema.
Porque hoje sei
Que a desventura
A falta de trabalho
A fome
A miséria
Os fazia surgir como a formiga
Em tempo (in)certo.
Com que abandono, meu Deus
Com que tristeza
Aqueles passos
Soam de novo aos meus ouvidos.
Nesta hora eu os ouvisse
Pressentisse
Pedir-vos-ia perdão
Pela fartura do pão
De tão sobejo para a minha fome
Demasiado para a minha mesa.
Pela bênção de não ter
Como vós
De depender da caridade alheia
De não sentir
Como vós
O infortúnio de regressar um dia a casa
Ao ponto de partida
À mesma fonte de dor e de destino
Sem nada levar na algibeira
Além do pó da estrada
Do cansaço dos dias
Das horas de lonjura
Das saudades a pulsar nas veias.
Da longa
Da inútil caminhada
Com o fracasso
O receio e a mesma fome
A roer os ossos e as ideias.
Oh! Alentejo
Que não voltes mais
A meter medo
Às crianças das vilas
Das cidades
Ao deixares partir os teus homens
Dos lugares que amam.
Soledade Martinho Costa
De garatujando a 8 de Fevereiro de 2009 às 17:30
Três notas a propósito da minha visita de hoje ao SARRABAL:
1 - O poema descritivo "IR À 'PIDA' " que, numa linguagem rica até ao pormenor, nos faz ver, como num filme, a vida de extrema pobreza no Alentejo. Apreciei, também, por apropriada e sugestiva, a imagem com que o ilustra.
O poema termina com um comovente apelo:
Oh! Alentejo
Que não voltes mais
A meter medo
Às crianças das vilas
Das cidades
Ao deixares partir os teus homens
Dos lugares que amam.
Receio bem que esse sentido apelo não encontre correspondência, dadas actuais circunstâncias que lançaram o mundo num desnorte generalizado.
2 - Referência, também, para o "Prémio Dardos" atribuído ao SARRABAL e que traduz o merecimento do seu trabalho.
3 - Por fim, agradecimento pelo link que no seu blog fez para o Garatujando, incluindo-o nos seus "BLOGUES A VISITAR", o que muito me desvanece.
Foi, desta feita, uma visita um tanto rápida (a anterior tinha sido bem mais minuciosa por então dispor de mais tempo).
Mas deu para sentir o costumado prazer, idêntico ao se experimenta numa casa amiga, acolhedora e muito bem "posta".
O agrado já não constitui surpresa.
Resto de bom Domingo e
Abraço amigo
Carlos Ferreira
De
sarrabal a 10 de Fevereiro de 2009 às 01:59
Amigo Carlos Ferreira:
Já não é novidade para si dizer-lhe que muito prezo as suas visitas ao Sarrrabal. Ainda por cima com o pormenor com que faz os seus comentários.
Sim, é verdade que o poema »Ir à "Pida"» (termo usado no Alentejo quando os homens se ausentavam para pedir esmola), tem muito a ver com a crise actual que atravessamos. Lembrei-me dele (não está em livro como muios dos outros), por sentir que seria oportuno publicá-lo. Certamente que o meu apelo não vai encontrar eco, mas talvez seja uma chamada de atenção. Bom seria que não mais se repetisse o deambular daqueles vultos pelas ruas de Alverca do Ribatejo (era lá que os via), vultos que nunca mais poderei esquecer, embora só hoje me aperceba, verdadeiramente, do seu dramático significado.
Hoje já é demasiado tarde, mas amanhã irei ao Garatujando à «cata» de novidades!
Abraço amigo da Sol
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