Não sei se eram os corpos das mulheres
Engolidos pelas grades dos portões
Se das fábricas a estridência dos apitos
Ou as sirenes dos barcos junto ao cais.
Ou talvez fossem os gatos nos telhados
Cegos de fome, de brigas e de cio
Ou os passos incertos, arrastados
Dos bêbedos a roçar pelos portais.
Não sei se era o sossego dos domingos
A repousar nas ruas sonolentas
Se a volúpia que vinha ao fim da tarde
No cesto dos tremoços e pevides.
Ou talvez fossem os pombos dos quintais
Aconchegados ao Sol de Novembro
Arrulhando, amorosos, desenhados
Nos olhos que assomavam dos postigos.
Não sei se eram as vozes se os aromas
A ferrugem, a cortiça e a tabaco
Vindos do tempo como testamento
Agarrados à ganga dos operários.
Ou talvez fosse a mulher a vender fruta
Parada no largo da farmácia
Ou as carroças de machos corpulentos
A escorregarem nas pedras da calçada.
Não sei se era o louco a pedir lume
Por entre as frinchas das tábuas da barraca
Se o chamamento, em gritos, das janelas
Pelos petizes, nas vozes das vizinhas.
Ou talvez fosse o perfume da maresia
A despertar no quintal a velha acácia
Ou o silvo do comboio sobre a ponte
A deixar pelo céu corcéis de fumo.
Não sei se era a noite a pôr de luto
As cores das casas, dos muros e dos vultos
Se era o cansaço, a fome, a impotência
O silêncio das palavras gastas
A insónia do medo em nome oculto.
Sei apenas
Que o triciclo corria
Sobre a face puída do passeio
E as tardes eram brancas e azuis.
Soledade Martinho Costa