Caríssimo Luíz Pacheco:
Acabei de ouvir na TV a notícia do seu falecimento. E fiquei triste. Uma tristeza calma. Pressentida de há muito. De há muito temida. Por isso, conformada.
E logo escolheu esta altura para nos deixar? Em que me sinto em falta para consigo?
Publiquei aqui, no Sarrabal, no dia 6 de Novembro/2007, a sua foto e o respectivo poema a pensar: “vou telefonar ao Luíz Pacheco”. Mas umas vezes por uma coisa, outras por outra (o lugar-comum de sempre), os dias passaram. Não telefonei. Fica-me esse peso.
Eu sei que teria gostado da foto que escolhi. O poema, esse, já o Luíz o conhecia. Lembra-se do que me escreveu quando o trabalho saiu? Isto:
“Palmela, 1 de Abril, mas sem mentir. Soledade! Veja o que é a glória (a minha): vou ao supermercado e a menina da caixa sorri e diz: - vi o seu retrato…temos ali guardado! Era a Notícias/Magazine – revista de domingo passado. Deixe-me dizer-lhe: gostei daquilo tudo. Mas a Soledade obrigou-me a ir ao dicionário ver que raio era enfiteuses que rimava com deuses. Tenho, tirei aí em 1948 ou 49 a cadeira de História de Portugal na Fac. De Letras de Lisboa. Vaga memória que aquilo se relacionava com alugueres de terras, talvez coisa da lei das sesmarias…”
Falei consigo e disse-lhe que tinha acertado. Eu apenas alarguei a lei às casas e aos quartos alugados (os seus). Foi fácil e rimou. Só para si foram três páginas da revista, com fotos, poema e “pinsamentos”, como você lhe chamava. É natural que a menina da caixa lá do supermercado tenha ficado impressionada. Provavelmente, só o conhecia do saquinho das compras…
Fiquei em falta para consigo também pelo “ritual” que mantinhamos sobre o “Bolo-rei”. Comi uma fatia, mas não me soube a bolo. Soube-me a tristeza. A saudade. De si. De todos os que fazem parte dessa já longa lista de nomes amigos que nos trazem à memória essa ternura estranha vestida de distância. Mas também o privilégio de podermos recordar momentos passados, bons momentos, fraternos, alegres, cúmplices. É certo que não conseguimos contrariar a vida quando a morte resolve fazer-nos a sua inexorável visita. Mas podemos recordar depois aquilo que nem sempre o tempo apaga. É a nossa vitória sobre a morte. É o nosso triunfo sobre a saudade.
Encontrámo-nos pela primeira vez, à noite, numa daquelas “sessões de esclarecimento” (em cima do 25 de Abril) na Soc. Nacional de Belas Artes, lembra-se? Mas já nos tinhamos visto por aí (Lisboa) uma ou outra vez. Eu sabia quem você era. Você, pouco ou nada sabia de mim. Depois, aconteceu aquele encontro na Associação Portuguesa de Escritores, por esse tempo na Rua do Loreto. O Luíz pediu-me um livro meu para ler. Entreguei-lho em mão (nessa altura o único publicado). Prometeu devolver-mo. E cumpriu. Quando me entregou o livro, não lhe perguntei a sua opinião. O Luíz também não se pronunciou. Disse-me apenas: “Permite-me que lhe dê dois beijos?”. Permiti. Foram dois beijos, um em cada face. Como testemunhas tivemos José Gomes Ferreira, à época presidente da APE, e a risonha Maria Seizette, secretária (até hoje) da Associação.
Estávamos no início de 1975. Eu era tão jovem, Luíz Pacheco… E você, feitas as contas, afinal, também bastante novo.
Como sabe, tenho todos os seus livros (mesmo os tais, que só se encontram nos alfarrabistas). E os outros, que foi editando na Contraponto. Em cada um (dos seus) guardo uma carta sua, uma fotografia, um cartão (costumo fazer isso com outros escritores amigos) …Tenho debaixo dos meus olhos o cartão de boas-festas que me enviou o ano passado. Diz assim:
“Porque hoje é um dia muito especial para nós, só para te dizer que…gosto de ti mais que ontem! – Soledade, darling! 29 / XII / 2008”.
Foi um engano seu, eu sei. Por lapso (ou premonição?), antecipou-se na data. Por isso, ao ler agora o cartão, fica-me a vaga sensação de que não nos deu o desgosto de se lembrar de partir. Estas coisas, Luíz, fazem mal ao coração, sabia?
Apesar de me sentir em falta por não ter telefonado no mês de Novembro, por não ter aparecido a visitá-lo nos últimos tempos (lembro as suas palavras numa fotografia: “esta é a porta por onde tenho esperado, há meses, que a Soledade me apareça. O que é feito de si? V. telefona-me do Algarve, do Bom Velho, de Alverca, mas esquece-se de Palmela”), por me ter esquecido da “tradição” do “Bolo-rei”, aqui estou, a despedir-me de si, Luíz Pacheco. Não com lágrimas (essas estão guardadas), mas com o meu sorriso de sempre. Aquele, especial, que dedico só aos meus amigos.
Não sei se estará no Olimpo (como vaticinei), mas que escolheu a véspera de Dia de Reis para nos dizer adeus, é uma verdade. Daí, entre deuses ou reis, no Olímpo ou no Céu (ou no Purgatório), esteja com quem estiver e onde quer que esteja, aqui em baixo, na Terra, caro Luíz, o seu nome, a sua obra e a sua memória (tão discutidos, tão discursivos, tão “amaldiçoados” quanto louvados), cá ficam, para todos nós e para o conhecimento dos vindouros. No lugar reservado apenas aos eleitos. Aos eternos. Aos que não morrem nunca. Isso lhe garanto eu, meu saudoso amigo.
Abraço carinhoso da Soledade Martinho Costa