
(Da série que escrevi «AMÁLIA – 100 anos»)
AMÁLIA: CONVÍVIO, RECORDAÇÕES, SAUDADES
BOATOS
Numa das noites em que estive em casa de Amália, disse-me mal entrei: «Tenho uma coisa linda para mostrar-lhe!» Era um presépio artesanal concebido com pequeninas pedras e minúsculas conchinhas, feito, segundo me contou, por uma «rapariguinha lá da Herdade do Brejão», que apanhou as pedras e as conchinhas na praia e lho ofereceu: «Veja bem o trabalho que está aqui. É uma perfeição. Fiquei tão feliz! Como não sabia onde colocá-lo, achei que o melhor lugar seria em cima do piano. Está num lugar de honra!» E lá ficou. (A Herdade do Brejão era a sua casa de férias no litoral alentejano, hoje destinada ao turismo rural)
Durante os anos em que frequentei a sua casa nunca me encontrei, em nenhum dos serões em que participei, ou fora destes, com um escritor, um poeta, um artista de teatro, de cinema, da canção, nem mesmo com um fadista ou cara conhecida da Televisão.
É possível que anos antes, com Amália mais nova e com saúde, as tertúlias tivessem a participação de outros convivas. Quando «cheguei» as coisas haviam mudado um pouco. Sendo uma pessoa simples (embora erudita) sentia-se bem rodeada de pessoas simples como ela. «No meu tempo» eram quase sempre as pessoas da casa que se juntavam na grande sala, uma ou outra vizinha que aparecia, e algumas pessoas mais antigas na lista das suas amizades e intimidade – não sendo, porém, figuras públicas.
Mas foi em sua casa que conheci os guitarristas Mário Pacheco e Jorge Fernando (que também canta, e deixou de frequentar a casa da Artista por decisão desta). Conheci também um irmão seu e o marido de Amália, o Engenheiro luso-brasileiro César de Seabra, com quem casou em 1961, no Rio de Janeiro, casamento que se manteve durante 36 anos.
César Seabra morre em 1997 (dois anos antes de Amália). Um excelente anfitrião, sempre com uma palavra amável para oferecer a quem chegava e uma graça a despontar-lhe no sorriso – que me tratou sempre muitíssimo bem. Só não fazia parte dos famosos serões!
Certa vez, ao vê-lo preparar-se para sair, Amália recomendou-lhe: «Leve o cachecol, Seabra. A noite está amena mas pode refrescar. Não esqueça!» Cuidados de uma boa esposa. E a resposta: «Fique descansada querida. Eu levo!»
Disse-se sempre e escreveu-se na comunicação social (até por pessoas responsáveis e conhecidas do nosso meio artístico) muita coisa falsa sobre a Artista. Uma delas, posta a circular, foi a de que bebia. Bebia, sim, mas apenas chá! Nunca nesses 9 anos do nosso convívio eu vi Amália de copo na mão. Nem a outro dos seus convidados. Nunca! O álcool não fazia parte dos serões! A inveja é assim. Faz sofrer, quase sempre em silêncio, aquele que serve de alvo à sua má-fé e à sua má-língua. Talvez por isso não quero deixar de referir um outro episódio bem elucidativo da maldade alheia.
Convidada para um programa de entretenimento na Televisão, da responsabilidade de dois conhecidos cantores, Amália esquece-se de levar o seu tranquilizante. Lili (a secretária) apronta-se a ir a casa buscá-lo.
Antes de Lili chegar, alguém (eu sei quem foi) lhe oferece um comprimido, que diz ser um calmante. Amália, confiando na pessoa que lho oferecia, aceita. Já com o programa a decorrer, é cada vez mais estranho o seu comportamento perante as câmaras. Facto que não passa despercebido aos telespectadores. Eu própria, que vi o programa em casa, achei estranhíssima a sua compostura e fiquei preocupada.
A sua agitação era notória, a vivacidade excessiva no falar, a sua desinquietude. O comprimido, de calmante nada tinha. Seria sim, um excitante. Quem lho deu soube o que fez. E mais se reforçou a hipótese de estar alcoolizada. Uma rasteira ignóbil! No dia seguinte, prostrada e triste com a situação, Amália foi, mais uma vez, a vítima daqueles que não lhe queriam bem: «Não sabia o que tinha. Sentia-me esquisita, mas não conseguia parar!», disse-me.
Vitima de torpes boatos (sobretudo logo após o 25 de Abril), no auge da sua gloriosa carreira internacional, sofreu falsas e indignas atoardas. Uma delas, a de ter tido ligações com o Estado Novo. Muito pelo contrário, o antigo Regime é que lhe censurou alguns dos seus fados! Letras de poetas considerados perseguidos ou que não concordavam com a Ditadura, tiveram os seus temas proibidos na voz de Amália. Caso de David Mourão-Ferreira e do seu tema «Abandono», também conhecido por «Fado de Peniche», por ser visto como alusivo aos presos políticos da Fortaleza de Peniche.
Em entrevista dada ao jornal El Paíz, José Saramago revelou que Amália, clandestinamente, deu dinheiro ao Partido Comunista Português. Esta afirmação de Saramago é confirmada na bem documentada biografia do jornalista Miguel Carvalho (Amália – Ditadura e Revolução), onde se lê: «… Amália Rodrigues não só esteve nos arquivos da polícia política como também, além disso, apoiou financeiramente a resistência comunista ao longo da sua carreira. E nunca se valeu disso para se defender das acusações de fascismo.» E o seu biógrafo salienta mais adiante: «Para Amália era muito importante a defesa da dignidade humana.»
Passados esses conturbados tempos de amargura e desgosto, Amália volta a conquistar a sua popularidade, a confiança, o respeito e o amor do povo português. Cantou o a canção Grândola Vila Morena (o hino do 25 de Abril), que gravou em Junho de 1974, e andou pelas ruas de Lisboa junto do povo a festejar Abril.
Sempre de cabeça erguida, a Voz do Fado esforçou-se para que as mágoas deixassem de lhe fazer companhia. Só não conseguiu apagar as nódoas negras que lhe ficaram no coração.
Os versos que dedicou a Salazar? Sem dúvida uma infantilidade e ingenuidade, a pôr em evidência a sua incultura política. Para Amália, Portugal era a sua casa, os seus poetas, os seus músicos, os seus amigos, os seus serões, o Brejão, os necessitados que lhe batiam diariamente à porta, e que nunca deixavam de ser atendidos. Era levar o nosso país, na sua voz, ao mundo inteiro. Não se lhe podia exigir mais.
Mas quantos nomes ligados à música, às artes e às letras, tendo, ou não, consciência política, fizeram o seu percurso durante o Antigo Regime? Não pretendo ser a advogada de Amália, mas esta é a verdade que muitos parecem ter esquecido.
Soledade Martinho Costa
Foto: «Amália, 25 de Abril», José Luís Pinto
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