Que graça que tem
o esquilo ladino
no cimo dos ramos
sempre empoleirado.
A descer aqui
a trepar além
a comer as nozes
que parte tão bem.
O esquilo ladino
que graça que tem!
É vê-lo no Verão
quando o Sol abrasa
a brincar contente
à porta de casa.
Mas se o frio aperta
e o Inverno chega
esquilo inteligente
mete-se na toca:
Procura o calor.
E logo apressado
do rabo felpudo
faz um cobertor!
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um-Dó-Li-Tá»
Ed. Figueirinhas
Mestre castor
Quer construir a sua toca.
Pé ante pé
Aproximou-se da beira-rio.
Sentou-se um pouco, pôs-se a pensar.
Pensou, pensou e decidiu:
- Vou construir a minha toca junto do rio.
É bom lugar: tem água fresca
Folhas de choupo e ricos peixes para pescar!
E sem demoras
Como se fosse um arquitecto
Vá de traçar uma planta
Dos alicerces até ao tecto.
Depois, com jeito
Igual à arte dos carpinteiros
Ei-lo a serrar e a cortar troncos inteiros.
Serra que serra
Corta que corta
Coloca aqui
Retira além
Mestre castor
Lá vai, lá vai
Devagarinho
Sem usar pregos
Nem o martelo
Fazendo o ninho
Que até possui
Porta secreta
Como um castelo!
Obra acabada
Mestre castor
Pé ante pé
Aproximou-se da beira-rio.
Sentou-se um pouco, pôs-se a pensar.
Pensou, pensou, olhou a margem e decidiu:
- Vou construir uma barragem!
Mestre castor aqui lhe rendo minha homenagem:
Não vi ainda trabalhador com mais coragem!
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um-Dó-Li-Tá»
Edições Vela Branca
Mais do que uma vez a minha amiga se me havia queixado da empregada doméstica. O serviço andava atrasado, a hora do almoço (há uma) escorregava sempre para mais tarde, as pratas não tinham sido limpas, a roupa por engomar continuava a mostrar algumas peças deixadas para outro dia.
― Não sei o que se passa com a Elvira, mas as coisas não andam bem. – repetira-me, durante uma das minhas visitas. – Calcula que dá agora em levantar-se mais tarde. Sinceramente, não compreendo.
A empregada, fixa, há mais de um ano que trabalhava em casa da minha amiga e não havia, até então, razão de queixa. Pelo contrário. Era cuidadosa, trabalhadora, mantinha a casa em ordem, a comida era bem feita. Nova, vinte e seis anos, simpática, bonitinha, até.
A minha amiga ocupava apenas uma parte da casa, no Bairro Azul. Passava o tempo, quando não saía – e saía muitíssimo – entre o seu quarto, a sala de visitas e a salinha de trabalho. Almoçava na marquise, cheia de luz e de plantas, e mal punha os pés na sala de jantar, no quarto de visitas ou na biblioteca. À cozinha ia de vez em quando. Mas este problema com a Elvira, para ela, pessoa organizada, senhora do seu feitio, começava a originar uma situação incómoda, a pôr em risco (pensei eu) o emprego da rapariga, que adorava a casa e a patroa, apesar do seu carácter impetuoso.
Habituada a receber bem, a sua casa fora lugar de tertúlias, onde escritores e políticos faziam ponto de encontro. Mais tarde, com o marido e o filho no Brasil as coisas mudaram. Ela é que não. Tratava-me por tu, eu tratava-a pelo nome: Alice. A diferença de idades era grande. Eu tinha, exactamente, a idade do filho, na altura vice-reitor da Universidade de São Paulo, no Brasil.
Alice não beijava ninguém. Detestava beijos. Lembro-me de a minha filha ter tentado cumprimentá-la com dois beijinhos. Logo o braço se estendeu a impossibilitar a tentativa, coisa que magoou e hostilizou a garota até bem tarde. Algumas pessoas ficavam escandalizadas. Só quem conhecia a sua aversão aos beijos levava a bom porto a negação ao cumprimento.
Sem vaidade, era eu a única pessoa que usufruía de tal privilégio. Quando nos encontrávamos eu recebia dela dois beijos e ela outros dois dados por mim. Dizia: «Em muitas coisas, vejo em ti a minha continuidade.» E acrescentava: «Depois, sabes, és da idade do meu filho. Só tu é que levas beijos meus. E dás!» E a conversa seguia o seu rumo.
Dinâmica, costumava acordar-me com um telefonema: «Então, preguiçosa, ainda estás deitada? Vê bem o que eu já fiz hoje:» E aí vinha o rol de tarefas cumpridas a menos da manhã chegar a meio.
À noite, invariavelmente, repetiam-se os telefonemas: «Já estás deitada ou ainda não? Eu já estou na cama, mas apetece-me conversar um bocadinho…». E foi assim ao longo dos anos. Para não falar das minhas constantes visitas, e as muitas que me fez, as tardes de compras e os muitos eventos a que fomos juntas.
Familiares seus e alguns amigos surpreendiam-se por me dar optimamente com uma pessoa apontada como difícil no que respeitava ao relacionamento com os outros. Na verdade, sempre me dei bem com pessoas consideradas de índole difícil. Talvez uma táctica que utilizo e dá resultado. Saber ouvir é o primeiro passo. Não contradizer demasiado, mas fazer respeitar a minha opinião, o segundo. Os passos seguintes vêm por acréscimo. Costumo chegar à conclusão de que há nestas pessoas qualidades escondidas que superam os defeitos visíveis à superfície.
Só uma coisa me metia medo. Os convites da minha amiga para almoçar, jantar ou tomar chá. No tempo da Elvira, um mar de rosas. No tempo pós- Elvira, um calafrio. Os ingredientes, as misturas, os condimentos assustavam qualquer um. A minha amiga não era dotada para a cozinha. Mas insistia. Não havia tacho ou panela que resistisse muito tempo em bom estado. A chama dos bicos do gás, sempre altíssima, acabava-lhes rapidamente com as respectivas asas. A comida, a maior parte das vezes, também ficava agarrada ao fundo. Felizmente, nunca me senti indisposta. A indisposição vinha sempre antes da refeição.
Com os chás acontecia o mesmo medo. Era uma tentação para ela experimentá-los, misturá-los, utilizando uma série de chás que tanto podiam vir da Índia, como da China, de Londres (vá lá!) ou do Brasil. Tomar chá em casa da minha amiga, para mim, constituía um risco. Bebia a medo um gole ou dois e ao convite: «Bebes mais?», respondia invariavelmente: «Não, obrigada.» E a Alice, a rir: «Tens medo, é?» À cautela, o meu chá ficava-se pelas torradas e as bolachinhas…
Mulher corajosa, extremamente frontal, inteligente, trabalhadora incansável em prol da Criança e das jovens desprotegidas, esteve presa por antifascista na cadeia do Aljube, em Lisboa, juntamente com o marido, durante dois anos. Costumava dizer-me: «Desse tempo, resta-me a consolação de termos feito o meu filho, o João Paulo.»
Impedidos de exercer a carreira de professores liceais em escolas do Estado, contava-me que tinha sido por intermédio (paradoxal) da poetisa Fernanda de Castro, mulher de António Ferro (ministro de Salazar), que haviam conseguido colocação no Ensino Privado. Até então, limitavam-se ambos a dar explicações em casa. «Tempos difíceis esses, muito difíceis.» Recordava. Mais tarde o divórcio e a ida do filho para o Brasil, para se juntar ao pai. Ficou sozinha. José Régio, padrinho do filho, propôs-lhe casamento, mas Alice rejeitou. Por fim, a doença do irmão mais novo, que foi buscar em fase terminal para lhe morrer em casa, rodeado de carinho e de cuidados.
Esta última provação marcou-a profundamente. Mudou-lhe ideias e ideais. De tal forma, que acabou por sofrer as inevitáveis consequências das suas duas opostas opções políticas. A primeira, levou à sua detenção e à suspensão do exercício da sua profissão A segunda, de que foi vítima, acompanhou-a pela vida fora. Um espinho aqui, outro acolá, o seu nome constava de uma «lista negra» que não lhe dava tréguas. Mas batalhou até ao fim. Comentava muitas vezes que tinha sido marginalizada «antes e depois do 25 de Abril».
É dela uma «carta aberta» que me dirigiu, publicada no extinto Jornal da Educação, do nosso comum e saudoso amigo Afonso Praça. Sim, porque eu própria fiz da caneta (teclado?) lança e andei por aí a lutar, não contra moinhos de vento, mas contra os ventos que sopravam em desfavor da Literatura Portuguesa para a Infância e de muitos autores consagrados. Tão marginalizados quanto o era a minha amiga Alice – acrescidos outros motivos.
Nesses anos encabeçava eu um movimento que fez história. Abaixo-assinado (três dezenas de escritores, menos os que não puderam assinar por razões politico-partidárias, embora por carta, telefone ou pessoalmente se mostrassem solidários com o grupo), reunião com o ministro da Educação da altura. Artigos, muitos, assinados por mim. A começar no “Expresso” e a acabar no extinto “Diário Popular”. Recordo-me de um deles, a duas páginas centrais, no Expresso (ainda no formato grande), com a minha assinatura e o título «Ditadura Cultural Exercida sobre as Crianças» – título da responsabilidade da redacção, exemplarmente escolhido.
Quando a doença chegou, inesperada, brutal, sem nada que a pudesse pressagiar, a minha amiga deixou de me querer ver. Que não, não fosse lá a casa, preferia assim. Fiz-lhe a vontade. A enfermeira permanente à sua cabeceira fazia a ligação. Por fim, pedia ao filho, regressado do Brasil devido ao estado da mãe, para me ligar. A partir de um certo dia o telefone emudeceu. Ficou a recordação. Até hoje. Vítima de doença prolongada, nem sequer o foi. Bastaram-lhe três a quatro meses. Voltei a sua casa para lhe levar dois ramos de flores. Certa vez, vaticinou: «Quando morrer, se calhar, nem vais ao cemitério pôr-me uma florinha!» Protestei. Mas ela acertou. Por mim, tudo em vida, depois…Daí, fazer de conta que estas linhas representam a flor que não lhe levei e prometi.
Num dia em que a visitei, arrastou-me para a salinha de trabalho e num alvoroço segredou-me:
― Já sei o que se passa com a Elvira. Já descobri!
― Então o que é? – perguntei.
― Livros, filha, livros!
― Livros?! Não percebo.
― Já vais perceber. A Elvira vai à biblioteca e é um livro atrás do outro. Por isso é que atrasa o trabalho. É que adormece tarde e acorda tarde de manhã!
― Mas como é que sabe, Alice?
― Porque fui dar com ela sentada na cozinha a ler um livro. Quando me viu escondeu o livro atrás do peitilho do avental. Depois, contou-me. Fiz-lhe perguntas. Sabes que mais? Já estou arrependida de a ter mandado aprender a ler! – rematou.
Ao ouvir estas palavras nem quis acreditar. Vindas de uma escritora e pedagoga, não era caso para menos. Fiquei decepcionada, confesso. Mas logo a luzinha brilhou ao fundo do túnel.
― Bom, como a rapariga descobriu o gosto pelos livros, agora só tenho é de arranjar-lhe um horário compatível para a leitura, não achas? – piscou-me um olho e sorriu.
Lá tinha eu, de volta, a amiga a quem admirava e que muitos conheciam tão mal. Ou não quiseram conhecer.
A minha amiga era a escritora Alice Gomes. O marido, o poeta Adolfo Casais Monteiro e o irmão mais novo o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes.
Soledade Martinho Costa
Do livro Uma Estátua no Meu Coração
Ed. Vela Branca
Tela: «Anjos do Beijo» de William Bouguereau
O olhar alonga-se
Sem pressas no caminho
Rende-se à demora
Vestida de segredos.
O aval
Prende-me no sopé da distância
Como um espelho.
Valeu a pena
Sei.
O nome das coisas
Brilha no silêncio
E a fragrância das flores por abrir
Respiro-a no canto repetido.
Talvez houvesse um outro tempo
Um outro descobrir
Apenas pressentido
Na lonjura dos passos que guardei.
Soledade Martinho Costa
Do livro Um Piano ao Fim da Tarde
Edições Sarrabal.
Pintura de Duy Huynh
A manhã acordou há pouco. Os pássaros, ainda adormecidos nos ramos das árvores, só agora começam a dar conta de que o dia chegou. Ouvem-se os primeiros pios, os primeiros trilos. São os papa-figos, as cotovias, os milharocos, os pintarroxos, os tordos e os pintassilgos, de árvore para árvore, numa saudação de bons vizinhos.
Por entre a folhagem, espreitam o azul do céu. Tão azul a manhã! A sacudir o sono, esticam as pernitas, espreguiçam as asas. E aí começam eles, num chilreio pegado, a contar dos projectos para mais um dia a viver: dos namoros, dos ninhos, dos filhos, da fartura de grãos por esses campos fora. Lembram-se, então, que são horas de abalada em busca do alimento. E não têm de se ralar. Nesta altura do ano é encher o papinho até mais não!
Um hibisco destaca-se lá ao fundo, na empena de uma casa caiada de branco. Está carregado de flores, e empertiga-se, vestido de cor-de-rosa-vivo nas pétalas dobradas. Alto, tão alto, que as últimas flores quase tocam o recorte vermelho do telhado. Uma romãzeira contempla-o do outro lado da casa:
― São lindas as flores do hibisco! – murmura ela, senhora de um reino perdido na lonjura da Ásia.
Pé ante pé, a manhã desliza, como se não quisesse fazer-se notada. A romãzeira, essa, apercebe-se de que nem um arzinho sopra a tocar ao de leve a coroa ainda pequena das suas romãs.
O hibisco espera. Sim, espera que a mão de quem mora na casa deite junto da sua raiz a água de que necessita para se alimentar. E de manhã é a hora mais indicada, enquanto a terra não está ainda quente do calor do Sol. Embora, à tardinha, depois de o Sol abalar, uma rega saiba sempre bem a qualquer planta, para que se revigore e tenha uma noite fresca e descansada.
A entreter a demora, o hibisco põe-se a contar quantas flores enfeitam os seus ramos. São tantas, tantas, que lhe perde a conta. Desiste e começa a contar os botões ainda por abrir. Ele sabe que ao cair da tarde deixará de estar assim, tão florido. O rosa-vivo das suas flores abertas durante a madrugada ficará, então, mais desmaiado. Depois, quando a noite vier, cada uma delas enrugará aos poucos a seda das pétalas, para murchar, roxa de saudades.
O fim da tarde desliza, cor de anil. Tão sereno e tépido desliza, que a noite se adivinha na sua capa de veludo negro salpicada de estrelas. Como se a senhora Lua, cabeça redonda a espreitar lá do céu, vestisse de gala para ir à festa.
― Duram tão pouco as flores do hibisco! – lamenta a romãzeira, enquanto o Sol se põe no horizonte.
― Não tenhas pena. De madrugada outras hão-de florir! – Respondem-lhe as romãs, a crescer, dentro das faces rosadas.
As noites são agora mais pequenas. Os dias, longos, como em nenhuma outra altura do ano. Por isso, o senhor Pirilampo aproveita. Mal começa a escurecer, aparece logo, com a sua candeia, a alumiar os campos. E que bonitas ficam as noites de Verão enfeitadas com a luzinha fosforescentedos pirilampos!Há quem lhes chame vaga-lume, lumeeiro e lança-luz, que também é o seu nome. Mas, nesta história, prefiro chamar-lhe pirilampo:
― Então, senhor Pirilampo, onde vai de passeio? Não fica uma noite em casa, pelo que vejo! E sempre de candeia acesa… Tem medo do escuro, ou de enganar-se no caminho?
Mas ele não responde. Faz-se desentendido. E todas as noites é a mesma coisa: luzinha esverdeada, pisca-que-pisca, e ele, pela noite fora, sem dizer nada a ninguém. Sem dizer onde vai.
― É segredo! - murmura a romãzeira, no ramalhar das suas folhas, antes de adormecer.
Soledade Martinho Costa
Do livro Histórias que o Verão me Contou
Ed. Publicações Europa-América
Desenho do livro: Elisa Bernardo, foto Maria Carmen Movilha
O moinho não sabe há quantos anos passou a estar sozinho, longe do moleiro. Há tantos, que nem recorda o branco dos panos das velas. O tojo invadiu os seus domínios. Do caminho que conduzia à aldeia, nem um sinal. Nem um vestígio dos passos andados Tão isolado vive, que não tem sequer com quem falar. Então, espraia o olhar de pedra pelo monte abaixo e detém-no nas moitas de silvados. Nas estevas em flor. Nas searas a perder de vista. Quando o vento sopra, é o vento, seu amigo de sempre, que lhe faz companhia. É com o vento que desabafa a tristeza do silêncio das suas mós paradas. «O meu amigo vento como tarda em chegar…E eu que tanto desejo perguntar-lhe como vai a ceifa por esses campos fora. Saber do milho, do trigo, do centeio…Quanta lida, quantos braços cansados debaixo do sol em brasa. Quanta farinha a transformar-se em pão nos celeiros e nos fornos onde a lenha arde…». Na quentura do fim da manhã, o moinho adormece. De solidão. De pena. De velhice. Mas no alto do telhado, o talefe, biquinho apontado ao céu, lá fica, de turno, a vigiar o voo raso das poupas, das rolas e das codornizes, sobre os campos a rebentarem de espigas, onde atafulham o papo de grãos e de sementes.
— Olhem além o moinho! – ri uma ceifeira, faces rubras do calor. – Parece uma sentinela, pespegada no alto do monte!
— Faz-nos companhia! – responde-lhe outra.
— Dá valor ao nosso trabalho! – diz uma terceira
— Ora, o que ele tem é saudades. Nunca mais moeu um grão! – grita de longe outra mondadeira.
Fazem uma pausa no trabalho. Endireitam o tronco. Ajeitam nas cabeças os lenços suados e os chapéus de feltro ou de palha. Passam de mão em mão a bilha de barro. A água fresca sabe tão bem! Por momentos, olham o moinho. E logo voltam à lida. O trabalho no campo não pára nunca. Não dá tréguas a ninguém.
É preciso regar, sachar. Mondar. Fazer as «tranças» às résteas dos alhos. Colher as favas, as cebolas, os frutos maduros. Semear legumes – como as alfaces e os rabanetes. E as flores – como as begónias e as prímulas da China. Preparar os celeiros e o terraço às eiras, que a seguir à ceifa é o tempo da seca e da debulha. Depois, mais para o fim do Verão, começar a vindima dos cachos brancos e tintos. E o varejo das avelãs, das amêndoas e das nozes. Tantas tarefas, tantas, à espera do saber das mãos e da força dos braços! E como é altura de colher o milho, à noite, em grupo, porque há ainda quem mantenha o ritual, vão reunir-se numa desfolhada. «Milho-Rei!», Milho-Rei!», gritará, então, quem o achar. E a maçaroca de bagos vermelhos, a espreitar da camisa de palha, obrigará aquele que a encontrar a dar um abraço ou a depor um beijo na face dos companheiros. De acordo com o preceito e a tradição.
Soledade Martinho Costa
Do livro "Histórias que o Verão me Contou"
Ed. Publicações Europa-América
Ilustração do livro: Elisa Bernardo
Estávamos em 2014, no governo de Passos Coelho, quando um familiar meu, muito chegado, teve a oportunidade de conversar, no Algarve (como acontecia frequentemente, por sermos vizinhos), com o pai da ministra da Justiça da altura, Paula Teixeira da Cruz. O assunto versava os incêndios. O meu familiar sugeriu então, uma medida, a seu ver profícua, que consistia na detenção dos incendiários, já identificados, muitos deles reincidentes, durante os meses de Verão e libertá-los nos meados do Outono. O objectivo principal desta conversa, seria o pai da Senhora ministra levar a sugestão ao conhecimento da filha. Ideia interessante e fácil de executar (segundo ele) . Além de que, três meses de Verão, dariam menor despesa ao Estado, comparativamente a alguns anos de prisão, por cada um dos incendiários. Fazendo contas: três anos de detenção, por exemplo, somam 36 meses de cadeia a alimentar um energúmeno, enquanto que os meses de Verão são coisa de pouca monta. Isto, se compararmos, ainda, a tranquilidade que dá às populações saber os incendiários atrás das grades nos seus meses preferidos. Agravar as penas? Para quê? Atrás das grades, nos meses de Verão, não se ateiam fogos nas florestas, não se apavoram as populações, não há pedidos de apoio ao Estado, vindos de regiões atingidas pela calamidade das chamas, não há a devastação da Natureza, nem de animais, nem de bens, não há destruição, nem há mortes. A resposta surgiu poucos dias depois: a Senhora ministra mandou dizer ao meu familiar «que tudo estava já planeado, controlado, organizado. Que nesse ano se havia de ver a diferença relativa aos anos anteriores.» E a sugestão por aqui ficou. Quantos dos nossos governantes, depois dela, terão dito a mesma coisa? Há dias, um amigo meu, que muito prezo, perguntava, com toda a pertinência, num artigo seu, mais ou menos com estas palavras: «Por que é que os aviões portugueses de ataque ao fogo, com o triplo da capacidade de todos os outros, alugados a países estrangeiros, custando fortunas ao Estado Português, ficam em terra e não levantam voo?!»
Estávamos no início de 2014. Estamos no Verão de 2022. Resultados? «O planeamento, o contrôle, a organização» anunciados pela então ministra há 8 anos, estão à vista de todos.
O que não está (ou estará?) à vista, é o que a nossa própria vista não alcança, devido às chamas e ao fumo com que nos querem tornar cegos. Agora mudos? Mudos, isso é que não!
Soledade Martinho Costa
(Foto: serra de Monchique, Algarve, onde arderam mais de 74 casas - 2018)
(Escrevi este conto para todos os meninos que, nas suas caminhas, à noite, têm medo do escuro.)
O menino dava voltas e mais voltas dentro da cama sem conseguir dormir. Ora cerrava os olhos com muita força e tapava o rosto com a dobra do lençol, ora atirava o lençol para trás, num gesto repentino, e se punha de olhos muito abertos a investigar a escuridão do quarto.
– Era tão bom nunca ser preciso dormir. Se pudesse, ficava a noite inteira com a luz acesa! – dizia ele a conversar com os botõezinhos do pijama. – Não gosto nada do escuro. Não gosto nada da noite!
A noite, que estava dentro do quarto do menino, ficou triste ao ouvir as suas palavras: «Se ele soubesse como sou sua amiga!» – pensou ela muito desgostosa. E aproveitando o momento em que a Lua se escondeu atrás de uma nuvem que passava, a noite aproximou-se mais da cama do menino.
– É verdade que não gostas de mim? – perguntou ela numa voz tão mansa como o sopro da brisa sobre as pétalas das flores.
Ao ouvir aquela voz, o menino abriu ainda mais os grandes olhos negros e olhou ainda com mais atenção o escuro do quarto.
– Quem está a falar comigo? – interrogou ele.
– Sou eu, a Noite.
– A noite?! – exclamou o menino sentando-se muito depressa na cama. – Mas a noite não fala. A noite é quando está escuro e eu tenho de dormir!
– Enganas-te. Eu falo. Não estás a ouvir a minha voz?
– Estou. – respondeu o menino cheio de espanto. – Mas…mas eu não gosto de ti, pronto! – replicou ele.
– É pena, porque eu sou muito tua amiga. – disse a noite. – Quando o dia termina, venho zelar pelo teu descanso. Sou eu quem faz repousar o teu corpo e o teu espírito depois de um dia de brincadeira. O sono nocturno é muito necessário ao equilíbrio das pessoas. – acrescentou ela.
– Mas eu não sou uma pessoa crescida! – protestou o menino.
– Por isso mesmo precisas de mais horas de sono para te poderes desenvolver e crescer com saúde. – explicou a noite.
– Mas eu não gosto de ti. Tens uma cor preta e o meu quarto fica escuro! – teimou o menino sem se deixar convencer.
Perante a sua obstinação, a noite achou que o melhor seria tentar uma espécie de jogo. Talvez assim o menino mudasse de opinião. Então, com ternura e paciência, murmurou, na sua voz mansa como o sopro da brisa:
– Lembra-te que as andorinhas são negras e são as aves do céu. Que os teus olhos são negros e, para a tua mãe, são os olhos mais lindos do Mundo…
– Isso são coisas boas. – concordou o menino.
– Pois são. – disse a noite. – Mas há muitas outras coisas importantes e boas e que são negras.
– Diz mais coisas.
– Digo que as amoras negras são as mais doces. Que o fumo é negro, quando o forno está a cozer o pão…
– Tens razão. – concordou o menino.
– Que é negra a tinta que imprime nos livros as histórias que lês e de que tanto gostas. Que é negro o carvão que alimenta a fornalha onde os homens o transformam em fonte de calor…
– Pois é. – disse outra vez o menino.
– Que é negro o quadro da escola onde aprendes a escrever e a fazer contas. Que são negros os grilos cujo canto embala o sono das searas nas noites de verão…
– Que é negro o meu cão Farrusco! – riu o menino, por fim, entrando no jogo.
– Ora aí está! – riu a noite com ele, num riso mavioso como o marulhar das ondas na orla da praia quando o mar adormece.
– Afinal, já gosto de ti! – disse o menino.
– Ainda bem. Fico muito contente! – respondeu a noite, cheia de satisfação. – Um dia, quando fores mais crescido, saberás outras coisas a meu respeito.
– Quando estudar naqueles livros grandes, com muitas folhas?
– Sim, quando estudares nesses livros, ficarás a conhecer-me ainda melhor.
– Tenho tanto sono! – murmurou o menino, deitando-se e puxando a roupa para si.
– Então, dorme, que o dia não tarda a chegar.
– Agora já sou teu amigo! – disse ainda o menino antes de adormecer.
De mansinho, pé ante pé, a noite afastou-se da cama do menino. Em seguida, muito lentamente, levantou as asas negras cheias de estrelas e voou pela janela do quarto. Cá fora, suspirou e sorriu: «Pronto, já posso partir descansada. A Madrugada não tarda a chegar e eu acabo de ganhar um novo amigo!»
E a noite voltou a suspirar, e lá foi, no voo silencioso das suas asas negras e brilhantes, porque eram horas de abalar para o outro lado do mundo onde ela já conhecia outros meninos de quem era amiga.
Soledade Martinho Costa
Pintura de António Pimentel
Do livro “Seis Histórias numa História de Todas as Cores”
Ed. Fundação CEBI
Comprometido
O dia amanheceu
Vestido de burel.
Os passos distenderem
A vigília que o medo
Impõe aos ouvidos dos homens.
Tocaram-se ao de leve as mãos
Aparente milagre.
Quem pode imaginar o silvo
O monstro que cegou as almas
Que marcou na carne
A brasa incandescente?
Cataclismo planeado
Fabricado
Activado.
Tão desumanamente perpetrado
Que os dicionários
Jamais registarão
A palavra exacta
Para o denunciar
A quem vier depois.
Para com ela avultar
Ainda mais
Ao seu peso parido de impossível
Este opróbrio perene sobre o Mundo.
Soledade Martinho Costa
― Não sei o que tem a Lua
Diz o gato num miado
Às vezes penso que amua
Hoje falta-lhe um bocado!
Pia o mocho empoleirado
Lá do alto do seu ramo:
― Mas que grande disparate
És mesmo um ignorante…
A Lua não está zangada
Está em quarto minguante!
E continua a lição:
― Aprende bem o que digo;
A Lua tem quatro fases
Quando aparece ao postigo:
Lua Nova
Quarto Crescente
Lua Cheia
Quarto Minguante.
Aprende, pois, meu amigo
Que o saber é importante!
Soledade Martinho Costa
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