Nunca contei como se deu o meu primeiro encontro com AMÁLIA. Era ainda muito jovem quando a vi nos palcos. Após o seu inigualável êxito no fado, estreia-se no teatro de revista (Maria Vitória) em 1940, como atracção do espectáculo em cartaz, Seguem-se outras revistas, também como atracção principal («Rosa Cantadeira»; «Essa é que é Essa»; «Espera de Toiros» e «Estás na Lua», entre outras). É protagonista da peça «A Severa», faz a opereta «Mouraria» e grava para a RTP «A Sapateira Prodigiosa». No teatro, actua no Brasil por longas temporadas. A sua estreia no cinema ocorre em 1947 com o filme «Capas Negras», seguido de outros, que continuam a deliciar-nos e a mostrar os dotes de uma artista versátil, multifacetada, sem contar com a sua evidente fotogenia.
Na altura em que a conheci pessoalmente, eu era cliente do Cabeleireiro Eva, no Edifício Palácio da Rotunda, no Marquês do Pombal, onde me mantive durante muitos anos. É certo que me ausentava por largos meses no Algarve ou na Beira Litoral, mas quando me encontrava na minha casa em Alverca do Ribatejo, era o Senhor Manuel Brito, o proprietário, que recebia a minha visita sempre fiel. AMÁLIA era sua cliente muito mais antiga. Desde o tempo do «Cabeleireiro Brito & Brito», reconhecidíssimo em Lisboa [Chiado], numa associação dos irmãos Manuel e Armando Brito. Curiosamente, ambas clientes do mesmo cabeleireiro durante anos, nunca nos tínhamos encontrado. Quando a técnica Celeste vinha «tratar de mim» era certo dar-me a novidade: «A Dona Amália esteve cá hoje, ou ontem ou esta semana!» Porque a Celeste era, também, a técnica de AMÁLIA! O Senhor Brito (sempre impecavelmente vestido) procedia ao penteado e dava os últimos retoques. A mim, nunca me penteou. O meu cabelo guiava-se pelos cortes mais actualizados, sem rolos, sem ripados, sem laca. Quem me penteava era a Rosi. Quando AMÁLIA tinha um concerto, a Celeste e o Senhor Brito deslocavam-se a sua casa na Rua de São Bento. O senhor Brito, vinha, sim, conversar comigo. Sempre tive na sua pessoa um amigo muito especial. Por norma, no final, vinha acompanhar-me, desde o último piso, na descida do elevador até à porta do edifício. São amabilidades que nos sabem bem e que não esquecem.
Mas tinha de chegar a ocasião! Um dia, entro na Eva, e deparo, na entrada, com AMÁLIA! Simplesmente vestida, com um casaco preto e de «sabrinas», facto que lhe acentuava a sua pouca altura. Entrámos ao mesmo tempo no salão, direitas «às mãos da Celeste». Sentadas uma ao lado da outra (depois, consecutivamente noutras cadeiras), era impossível não falarmos. Provavelmente, teria sido eu a dar início à conversa – que nunca mais parou! Perguntou-me o que fazia e vieram os livros e os poemas. Mostrou interesse em conhecer o que eu escrevia e pediu-me um livro. Contou-me, então, que estava muitíssimo triste pela morte, no início desse ano (Março de 1990), do seu grande amigo e autor de grande parte das músicas que cantava: Alain Oulman. Estendeu-me uma das mãos e mostrou-me um anel enorme, muito bonito: «Teimou em oferecer-me este anel, mas eu não queria aceitar. É uma jóia de família. Mas tanto insistiu, que aceitei.» Pouco depois, mandou vir um chá e uns bolinhos, que repartiu comigo. O chá foi trazido pela Lili, sua secretária, que a acompanhava quase sempre. Lili fora empregada, anos antes, num restaurante da Tonicha, que fechou. Nessa altura, AMÁLIA convidou-a para residir em sua casa como sua assistente A conversa prosseguiu, saltando de assunto para assunto, mas «sem perder de vista» os livros e os poemas. Confessou-me que não andava a sentir-se muito bem, pior ainda com a morte de Alain. Como «mais vale cair em graça do que ser engraçado», achei, de imediato, que tinha «caído em graça» à minha querida DIVA do FADO. Foi quando a vi abrir a mala, tirar um papelinho e uma caneta, e dar-me um o papelinho com a explicação: «Tem aqui o meu número de telefone. Ligue e apareça lá em casa. Fazemos uns serões engraçados. Gostava de a voltar a ver, para conversarmos melhor, aceita?» Disse que sim, meio comovida e retribui dando-lhe, por minha vez, o meu número de telefone. AMÁLIA sugeriu: «Quando me for visitar, leve-me um livro de poemas. Fiquei curiosa, sabe?» Acreditem que as suas palavras não se devem ao facto de eu ter enaltecido o meu trabalho. Nessa altura tinha dois livros de poemas publicados. Despedimo-nos com beijinhos. O encontro demorara anos, é certo, mas tinha merecido a pena! A simpatia de AMÁLIA, a sua simplicidade, a sua maneira desafectada e bonita (estava mais bonita depois de penteada por Manuel Brito!), deram-me a certeza de ter nascido entre ambas uma sólida amizade. E não me enganei. Cheguei a casa (também mais bonita devido às mãos hábeis da Rosi), feliz e ansiosa por dar a grande novidade à família: tinha conversado a tarde inteira com a mais bela voz do fado, de todos os tempos, em Portugal! A única, a intemporal, aquela que se ouve pela primeira vez e se fica a admirar e a amar para sempre: AMÁLIA RODRIGUES!
Estávamos em 1990. Foram 9 anos de convívio e de amizade – hoje, de eterna e agradecida saudade.
Soledade Martinho Costa
(Manuel Brito, faleceu em 2013, altura em que se dá por encerrado, definitivamente, o Cabeleireiro EVA. O filho, também de nome Manuel de Brito, editor da Contexto (que publicou obras relevantes e de excepção), por motivos de saúde, encerra também a sua actividade na Editora, em 2001, vindo a falecer no passado mês de Maio de 2019 com 68 anos de idade.)
(Alain Oulman faleceu a 29 de Março de 1990, em Paris, com 61 anos)
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