A fazer paragens em todas as estações, o comboio partiu do Rossio com destino à Azambuja. Alverca do Ribatejo fica na rota. Muita gente, muito movimento, uns a ir, outros a ficar, beijinhos, abraços, recomendações, algumas bagagens, um empurrãozito ou outro, na ânsia de quem partia ter a felicidade de arranjar lugar sentado. Àquela hora, e aquele horário, são dos mais concorridos e movimentados por coincidirem com a saída dos empregos, daí, a razão de tanta afluência de passageiros.
Entrei e arranjei lugar sentada. Durante muitos anos, quando era jovem, viajei bastante de comboio, quer de Alverca do Ribatejo para Lisboa, quer o contrário. Depois, mal chegada à minha saudosa e bonita vila ribatejana, esperava-me a estrada alcatroada que perfaz, exactamente, 1 quilómetro – feito a pé. Hoje já temos as camionetas de carreira, que nos levam até à cidade, transportando também os passageiros que moram nos arredores.
Por esses anos, a minha mãe acompanhava-me a maior parte das vezes. E era uso dizer: «vou às compras a Lisboa» ou «vou às compras à Baixa». […]
Parece que me perdi um pouco, mas não. Voltemos, por isso, ao comboio Rossio-Azambuja. Muita gente de pé – os mais atrasados e os que deixaram que lhes roubassem o lugar. Na minha frente, uma senhora de meia-idade, bem vestida, pintada, cara de poucos sorrisos. De pé, perto de si, uma jovem de ar tímido, com um cão ao colo. Olhitos vivos, orelhas arrebitadas, a cabeça a virar a todo o momento, atento a todos e a tudo. Iria o comboio ali por Sacavém, quando um Senhor, que seguia ao lado da dona do cão, resolveu levantar-se e, num gesto amável, indicou o seu lugar sentado à jovem que seguia de pé. Um gesto bonito, de cavalheiro. Hoje caído em desuso. Naquela altura era vulgar. A jovem, meio acanhada, não abriu a boca. Agora quem abriu os braços foi a «patroa»! Num gesto rápido, agarrou no cão e sentou-o no lugar vago! Muitas festas, muitas falinhas ao ouvido do bicho.
Quase não queria acreditar naquilo que via! A rapariga, coitada, continuou de pé. O cão acabou por enroscar-se no assento, sempre de olho vivo e de orelhas arrebitadas. O cavalheiro que cedeu o lugar, limitou-se a abanar a cabeça numa demonstração de desagrado. Ninguém abriu a boca. Ninguém falou. Mas os olhares, esses, diziam tudo o que as bocas calaram. Olhares reprovativos lançados ao pobre cão, sem culpa, afinal, deste triste episódio, mas, sobretudo, à dona do bicho. Avalia-se, pelo seu gesto, o tratamento a que a moça estaria sujeita! Actualmente, os animais que acompanham os donos seguem açaimados, com trela, boletim de vacinas, e não podem ocupar lugar nos bancos dos comboios – além de outras regras, que se impõem, para segurança dos restantes passageiros.
Nesta altura, a senhora recostou-se melhor no assento e fitou, tranquilamente, a paisagem que passava numa corrida vertiginosa pelos vidros das janelas.
Saí em Alverca do Ribatejo, ansiosa de chegar a casa para contar o que tinha visto. Passaram alguns anos, é verdade. Mas hoje chegou a hora de relatar o episódio nesta crónica. Os escritores são assim. Podem demorar algum tempo, mas nunca guardam para si o que pode servir de exemplo aos seus leitores – no bom e no mau sentido.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Crónicas de Porcelana»
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