No dia 25 de Junho de 2020, dirigi-me ao Hospital Cuf da Infante Santo para fazer uma ecografia. Numa das porta a dar para o átrio, encontrava-se uma funcionária, munida de um termómetro e de um frasco de desinfectante. Mesmo comigo no passeio, tirou-me a temperatura e tentou despejar-me o desinfectante nas mãos, antes mesmo que eu lhas estendesse, como é costume, fazendo «conchinha».
Entrei depois no hospital e dirigi-me ao balcão para proceder à entrega da requisição médica e ao pagamento do exame. A funcionária, um pouco acanhada informou: «Além do preço da ecografia tem a pagar mais 7 euros e 50 cêntimos relativos a um kit.» Surpreendida, perguntei: «Que espécie de kit?» E a resposta: «Isso não sei. Sei que se trata de um kit. Nós não temos culpa. São ordens da administração.» Explicou, ainda mais embaraçada.
Ao entrar no exíguo compartimento onde deixamos a nossa roupa e pertences, vi que o estofo da cadeira estava molhado. Fiz o meu reparo à assistente que me acompanhava: «Ah! isso é do desinfectante, não tem importância!» Respondeu. Perguntei então: «Sabe dizer-me qual o kit que paguei, além do exame?» Fiquei, finalmente, esclarecida: «É o preço da desinfecção que fizemos a este gabinete e à sala onde está a médica que lhe vai fazer a ecografia. Cada utente paga um kit!»
Ultimamente, tenho sentido vergonha pelo comportamento irresponsável e reprovável de grande parte dos portugueses perante os cuidados a ter com o Covid. Essa vergonha acentuou-se, ao ver o espírito mesquinho da administração deste hospital, que faz a desinfecção das suas instalações à custa de quem ali se dirige, como forma de negócio oportunista para angariar mais uns euros. Ou não será da inteira responsabilidade dos centros hospitalares, em situação de epidemia como esta que o país atravessa, manter as suas instalações higiénicas e desinfectadas para uso confiável dos seus utentes? Quando as famílias portuguesas se debatem com graves problemas económicos, acrescentar mais uns euros aos exames clínicos já de si de valor elevado, resulta numa vergonha sem limites – que me faz duvidar, até, que um tal procedimento seja legal ou, mesmo, que a Lei o permita.
Dias antes, estive na Clínica Lusíadas na Amadora, para fazer uma ressonância magnética. À entrada, dois funcionários. Enquanto um me mediu a temperatura, o outro solicitou-me que tirasse a máscara que levava e a deitasse num recipiente próprio, enquanto me estendia uma caixa para que retirasse e colocasse uma máscara nova. Por fim, pediu-me para pôr as mãos em «conchinha» e deitou nelas o desinfectante. No gabinete respectivo retirei a roupa e vesti e calcei uma bata e umas «pantufas» descartáveis. Entrei depois na sala do exame, onde se encontrava o médico e dois assistentes. Ora, aqui, houve custos: a desinfecção do gabinete e da sala, além da bata e das pantufas descartáveis. No outro hospital nem sequer vesti bata nem calcei «pantufas». Aliás, fui logo avisada: «Não precisa descalçar-se!» (fora das medidas preventivas aconselhadas, que nós, até em nossa casa adopta-mos!)
Para finalizar, e feitas as contas, o Covid ainda veio dar um lucrozinho extra ao Hospital Cuf, não é verdade? São estes «cérebros privilegiados» que proliferam (e prosperam) neste país à beira-mar plantado!
Soledade Martinho Costa
Responde: RITA FERRO
DESABAFO: É a tangente, a derrapagem, a vertigem da confissão. Decorre de um estado de saturação brevíssimo, mas arriscado. Junto da pessoa errada, é um convite à devassa, à deturpação, ao paternalismo e à conclusão grosseira. Não é justo, é nervoso e parcial: diz apenas o necessário para que alguém nos aplique o penso rápido do consolo imediato. Nele a verdade é falsa, como diria Jorge de Sena.
SUGESTÃO: Uma vingança menor.
DISPARATE: Proferi-los ou executá-los pode custar tão caro como reprimi-los. Pode invejar-se mais um disparate do que um bem material. E é talvez por isso que os disparates que fazemos para nos salvarmos são muitas vezes os que acabam por nos afundar. Nós mandamos neles, mas as pessoas mandam em nós. E só fazendo disparates, muitos, é que se aguenta essa humilhação.
ESCÂNDALO: Uma factura que vale sempre a pena. Ou para quem a assina, e degusta o profano gozo da independência, ou para os que não ousam e necessitam de ser avaliados por comparação.
APLAUSO: É, em última análise, divertido: só nós sabemos o que valemos, e esse segredo, velhaco ou escarninho, é talvez o mais bem guardado da existência. E se não fosse injusto não causaria tanto incómodo.
EXPECTATIVA: Um desgaste desnecessário: nunca é a felicidade que está em jogo mas a solução provisória de que julgamos depender.
PREOCUPAÇÃO: Nasce no útero, durante a passagem estreita. Ninguém acredita que se pode caber em dois dedos de dilatação.
EMOÇÃO: Um falso estado de felicidade com muita procura. Não é tão serena como a felicidade, mas pode ser mais fecunda, generosa, criadora.
AMOR: Muitos acham que amar é acreditar (por um mês, por toda a vida) que o outro lhe lavará as chagas, protegerá do frio, saciará a sede, os amará corcundas ou doentes. Descobrem que não é amor quando se apercebem que outra pessoa lhes poderá prestar um melhor serviço com menos custos.
SAUDADE: A lástima de descobrirmos que, afinal, parte de nós são as coisas e os outros.
SONHO: Uma belíssima alternativa de vida para quem tem o sono pesado.
MEDO: Não posso. Não consigo. Não chego. Não sei. Uma paralisia convincente.
INTIMIDADE: A conquista da cegueira (ou até da estima, ou até do amor) do outro relativamente às nossas fealdades e menoridades. É prémio. É repouso.
FIGURA PÚBLICA MAIS: A que é amada, compreendida, perdoada.
FIGURA PÚBLICA MENOS: A que apenas realiza. A apenas pública.
CALENDÁRIO: Uma simples burocracia. O que há nos anos, nos meses e nos dias nunca são os anos, nem os meses nem os dias
Coordenação: SOLEDADE MARTINHO COSTA
Fotografia: RAÚL CRUZ
(Publicado pela primeira vez na revista Notícias/Magazine do Diário de Notícias)
O sopro da distância
Traz-me o som sem palavras
De um piano.
Em voos de borboleta
Que dedos afloram as suas teclas
Quem se debruça nelas?
Enquanto a tarde esfria
Nas notas que se abraçam
Ao perfume verde da paisagem
A melodia aquece o coração.
Sobrepõe-se e silencia
O rumorejo do arvoredo
E o marulhar das ondas
A oferecer uma orla de renda ao areal.
Mistério, fascínio, magia
São as palavras certas
Os acordes têm asas e soltam-se
Talvez por uma janela aberta.
O momento torna-se irreal
Fecho os olhos e penso
Quanta perfeição, quanta harmonia
Entre a música e a natureza.
Fecho os olhos e tenho a certeza
De que alguém, ao longe
Toca para mim.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde
A fazer paragens em todas as estações, o comboio partiu do Rossio com destino à Azambuja. Alverca do Ribatejo fica na rota. Muita gente, muito movimento, uns a ir, outros a ficar, beijinhos, abraços, recomendações, algumas bagagens, um empurrãozito ou outro, na ânsia de quem partia ter a felicidade de arranjar lugar sentado. Àquela hora, e aquele horário, são dos mais concorridos e movimentados por coincidirem com a saída dos empregos, daí, a razão de tanta afluência de passageiros.
Entrei e arranjei lugar sentada. Durante muitos anos, quando era jovem, viajei bastante de comboio, quer de Alverca do Ribatejo para Lisboa, quer o contrário. Depois, mal chegada à minha saudosa e bonita vila ribatejana, esperava-me a estrada alcatroada que perfaz, exactamente, 1 quilómetro – feito a pé. Hoje já temos as camionetas de carreira, que nos levam até à cidade, transportando também os passageiros que moram nos arredores.
Por esses anos, a minha mãe acompanhava-me a maior parte das vezes. E era uso dizer: «vou às compras a Lisboa» ou «vou às compras à Baixa». […]
Parece que me perdi um pouco, mas não. Voltemos, por isso, ao comboio Rossio-Azambuja. Muita gente de pé – os mais atrasados e os que deixaram que lhes roubassem o lugar. Na minha frente, uma senhora de meia-idade, bem vestida, pintada, cara de poucos sorrisos. De pé, perto de si, uma jovem de ar tímido, com um cão ao colo. Olhitos vivos, orelhas arrebitadas, a cabeça a virar a todo o momento, atento a todos e a tudo. Iria o comboio ali por Sacavém, quando um Senhor, que seguia ao lado da dona do cão, resolveu levantar-se e, num gesto amável, indicou o seu lugar sentado à jovem que seguia de pé. Um gesto bonito, de cavalheiro. Hoje caído em desuso. Naquela altura era vulgar. A jovem, meio acanhada, não abriu a boca. Agora quem abriu os braços foi a «patroa»! Num gesto rápido, agarrou no cão e sentou-o no lugar vago! Muitas festas, muitas falinhas ao ouvido do bicho.
Quase não queria acreditar naquilo que via! A rapariga, coitada, continuou de pé. O cão acabou por enroscar-se no assento, sempre de olho vivo e de orelhas arrebitadas. O cavalheiro que cedeu o lugar, limitou-se a abanar a cabeça numa demonstração de desagrado. Ninguém abriu a boca. Ninguém falou. Mas os olhares, esses, diziam tudo o que as bocas calaram. Olhares reprovativos lançados ao pobre cão, sem culpa, afinal, deste triste episódio, mas, sobretudo, à dona do bicho. Avalia-se, pelo seu gesto, o tratamento a que a moça estaria sujeita! Actualmente, os animais que acompanham os donos seguem açaimados, com trela, boletim de vacinas, e não podem ocupar lugar nos bancos dos comboios – além de outras regras, que se impõem, para segurança dos restantes passageiros.
Nesta altura, a senhora recostou-se melhor no assento e fitou, tranquilamente, a paisagem que passava numa corrida vertiginosa pelos vidros das janelas.
Saí em Alverca do Ribatejo, ansiosa de chegar a casa para contar o que tinha visto. Passaram alguns anos, é verdade. Mas hoje chegou a hora de relatar o episódio nesta crónica. Os escritores são assim. Podem demorar algum tempo, mas nunca guardam para si o que pode servir de exemplo aos seus leitores – no bom e no mau sentido.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Crónicas de Porcelana»
Edições Sarrabal/ Lunadil UNI LDA
Estes dois bonequinhos têm uma história. Quando os olhos, vejo dois bebés que me vão acompanhar por toda a minha vida. Duas crianças que não cresceram porque não deixei. Representam os meus dois primeiros netos (hoje tenho seis). São os bonecos que lhes ofereci mal abriram os olhos para o mundo. O bonequinho para o Rafael, a bonequinha para a irmã, Maria Teresa, nascida dois anos depois. Ao vê-los, vejo duas crianças que continuam a dar-me a mão. A refugiarem-se no meu colo quando têm sono. A pedirem-me água quando têm sede. A ouvirem as minhas histórias. A apanharem, comigo, as conchinhas na areia da praia. Duas crianças que me enchem de perguntas, porque querem saber a razão das coisas. Que me oferecem desenhos com casinhas, árvores, andorinhas e o sol. A quem limpo as lágrimas quando dão um tombo ou fazem um arranhão. Que me chamam avó e correm para mim. Duas crianças que me dão pequeninas flores e beijos e abraços. Que não deixei que crescessem para continuarem assim, pequeninas, puras, ternas, a aprender, dia a dia, o significado das palavras: família, dedicação, respeito, amor. Vivem os dois dentro de uma caixa e dão-se muito bem. O bonequinho tem 21 anos, a bonequinha tem 19. De vez em quando vou visitá-los. Tiro a tampa da caixa e fico a vê-los. Não aos bonecos propriamente ditos. Mas às crianças que os dois representam e cujas mãozinhas os tocaram. Tão ao de leve, tão inconscientemente ainda, tão sem conhecimento, mas já com o movimento ousado de quem deseja alcançar o futuro – ou o brilho de todas as estrelas.
Soledade Martinho Costa
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