Sábado, 27 de Junho de 2020

COVID - NEGÓCIOS À PORTUGUESA

No dia 25 de Junho de 2020, dirigi-me ao Hospital Cuf da Infante Santo para fazer uma ecografia. Numa das porta a dar para o átrio, encontrava-se uma funcionária, munida de um termómetro e de um frasco de desinfectante. Mesmo comigo no passeio, tirou-me a temperatura e tentou despejar-me o desinfectante nas mãos, antes mesmo que eu lhas estendesse, como é costume, fazendo «conchinha».

Entrei depois no hospital e dirigi-me ao balcão para proceder à entrega da requisição médica e ao pagamento do exame. A funcionária, um pouco acanhada informou: «Além do preço da ecografia tem a pagar mais 7 euros e 50 cêntimos relativos a um kit.» Surpreendida, perguntei: «Que espécie de kit?» E a resposta: «Isso não sei. Sei que se trata de um kit. Nós não temos culpa. São ordens da administração.» Explicou, ainda mais embaraçada.

Ao entrar no exíguo compartimento onde deixamos a nossa roupa e pertences, vi que o estofo da cadeira estava molhado. Fiz o meu reparo à assistente que me acompanhava: «Ah! isso é do desinfectante, não tem importância!» Respondeu. Perguntei então: «Sabe dizer-me qual o kit que paguei, além do exame?» Fiquei, finalmente, esclarecida: «É o preço da desinfecção que fizemos a este gabinete e à sala onde está a médica que lhe vai fazer a ecografia. Cada utente paga um kit!»

Ultimamente, tenho sentido vergonha pelo comportamento irresponsável e reprovável de grande parte dos portugueses perante os cuidados a ter com o Covid. Essa vergonha acentuou-se, ao ver o espírito mesquinho da administração deste hospital, que faz a desinfecção das suas instalações à custa de quem ali se dirige, como forma de negócio oportunista para angariar mais uns euros. Ou não será da inteira responsabilidade dos centros hospitalares, em situação de epidemia como esta que o país atravessa, manter as suas instalações higiénicas e desinfectadas para uso confiável dos seus utentes? Quando as famílias portuguesas se debatem com graves problemas económicos, acrescentar mais uns euros aos exames clínicos já de si de valor elevado, resulta numa vergonha sem limites – que me faz duvidar, até, que um tal procedimento seja legal ou, mesmo, que a Lei o permita.

Dias antes, estive na Clínica Lusíadas na Amadora, para fazer uma ressonância magnética. À entrada, dois funcionários. Enquanto um me mediu a temperatura, o outro solicitou-me que tirasse a máscara que levava e a deitasse num recipiente próprio, enquanto me estendia uma caixa para que retirasse e colocasse uma máscara nova. Por fim, pediu-me para pôr as mãos em «conchinha» e deitou nelas o desinfectante. No gabinete respectivo retirei a roupa e vesti e calcei uma bata e umas «pantufas» descartáveis. Entrei depois na sala do exame, onde se encontrava o médico e dois assistentes. Ora, aqui, houve custos: a desinfecção do gabinete e da sala, além da bata e das pantufas descartáveis. No outro hospital nem sequer vesti bata nem calcei «pantufas». Aliás, fui logo avisada: «Não precisa descalçar-se!» (fora das medidas preventivas aconselhadas, que nós, até em nossa casa adopta-mos!)

Para finalizar, e feitas as contas, o Covid ainda veio dar um lucrozinho extra ao Hospital Cuf, não é verdade? São estes «cérebros privilegiados» que proliferam (e prosperam) neste país à beira-mar plantado!

Soledade Martinho Costa

 

publicado por sarrabal às 21:06
link | comentar | favorito
Sexta-feira, 26 de Junho de 2020

(IN)CONFIDÊCIAS

Cópia de 8 de fevereirode 2020 012.jpg

Responde: RITA FERRO

 

DESABAFO: É a tangente, a derrapagem, a vertigem da confissão. Decorre de um estado de saturação brevíssimo, mas arriscado. Junto da pessoa errada, é um convite à devassa, à deturpação, ao paternalismo e à conclusão grosseira. Não é justo, é nervoso e parcial: diz apenas o necessário para que alguém nos aplique o penso rápido do consolo imediato. Nele a verdade é falsa, como diria Jorge de Sena.

SUGESTÃO: Uma vingança menor.

DISPARATE: Proferi-los ou executá-los pode custar tão caro como reprimi-los. Pode invejar-se mais um disparate do que um bem material. E é talvez por isso que os disparates que fazemos para nos salvarmos são muitas vezes os que acabam por nos afundar. Nós mandamos neles, mas as pessoas mandam em nós. E só fazendo disparates, muitos, é que se aguenta essa humilhação.

ESCÂNDALO: Uma factura que vale sempre a pena. Ou para quem a assina, e degusta o profano gozo da independência, ou para os que não ousam e necessitam de ser avaliados por comparação.

APLAUSO: É, em última análise, divertido: só nós sabemos o que valemos, e esse segredo, velhaco ou escarninho, é talvez o mais bem guardado da existência. E se não fosse injusto não causaria tanto incómodo.

EXPECTATIVA: Um desgaste desnecessário: nunca é a felicidade que está em jogo mas a solução provisória de que julgamos depender.

PREOCUPAÇÃO: Nasce no útero, durante a passagem estreita. Ninguém acredita que se pode caber em dois dedos de dilatação.

EMOÇÃO: Um falso estado de felicidade com muita procura. Não é tão serena como a felicidade, mas pode ser mais fecunda, generosa, criadora.

AMOR: Muitos acham que amar é acreditar (por um mês, por toda a vida) que o outro lhe lavará as chagas, protegerá do frio, saciará a sede, os amará corcundas ou doentes. Descobrem que não é amor quando se apercebem que outra pessoa lhes poderá prestar um melhor serviço com menos custos.

SAUDADE: A lástima de descobrirmos que, afinal, parte de nós são as coisas e os outros.

SONHO: Uma belíssima alternativa de vida para quem tem o sono pesado.

MEDO: Não posso. Não consigo. Não chego. Não sei. Uma paralisia convincente.

INTIMIDADE: A conquista da cegueira (ou até da estima, ou até do amor) do outro relativamente às nossas fealdades e menoridades. É prémio. É repouso.

FIGURA PÚBLICA MAIS: A que é amada, compreendida, perdoada.

FIGURA PÚBLICA MENOS: A que apenas realiza. A apenas pública.

CALENDÁRIO: Uma simples burocracia. O que há nos anos, nos meses e nos dias nunca são os anos, nem os meses nem os dias

 

Coordenação: SOLEDADE MARTINHO COSTA

Fotografia: RAÚL CRUZ

 

(Publicado pela primeira vez na revista Notícias/Magazine do Diário de Notícias)

publicado por sarrabal às 22:09
link | comentar | favorito
Terça-feira, 9 de Junho de 2020

UM PIANO AO FIM DA TARDE

floresta.jpg

O sopro da distância
Traz-me o som sem palavras
De um piano.

 

Em voos de borboleta
Que dedos afloram as suas teclas
Quem se debruça nelas?

 

Enquanto a tarde esfria
Nas notas que se abraçam
Ao perfume verde da paisagem
A melodia aquece o coração.

 

Sobrepõe-se e silencia
O rumorejo do arvoredo
E o marulhar das ondas
A oferecer uma orla de renda ao areal.

 

Mistério, fascínio, magia
São as palavras certas
Os acordes têm asas e soltam-se
Talvez por uma janela aberta.

 

O momento torna-se irreal
Fecho os olhos e penso
Quanta perfeição, quanta harmonia
Entre a música e a natureza.

 

Fecho os olhos e tenho a certeza
De que alguém, ao longe
Toca para mim.

 

Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde

publicado por sarrabal às 23:44
link | comentar | favorito
Domingo, 7 de Junho de 2020

ABRE-LATAS - O CÃO DA DONA

CÃO.bmp

A fazer paragens em todas as estações, o comboio partiu do Rossio com destino à Azambuja. Alverca do Ribatejo fica na rota. Muita gente, muito movimento, uns a ir, outros a ficar, beijinhos, abraços, recomendações, algumas bagagens, um empurrãozito ou outro, na ânsia de quem partia ter a felicidade de arranjar lugar sentado. Àquela hora, e aquele horário, são dos mais concorridos e movimentados por coincidirem com a saída dos empregos, daí, a razão de tanta afluência de passageiros.
Entrei e arranjei lugar sentada. Durante muitos anos, quando era jovem, viajei bastante de comboio, quer de Alverca do Ribatejo para Lisboa, quer o contrário. Depois, mal chegada à minha saudosa e bonita vila ribatejana, esperava-me a estrada alcatroada que perfaz, exactamente, 1 quilómetro – feito a pé. Hoje já temos as camionetas de carreira, que nos levam até à cidade, transportando também os passageiros que moram nos arredores. 
Por esses anos, a minha mãe acompanhava-me a maior parte das vezes. E era uso dizer: «vou às compras a Lisboa» ou «vou às compras à Baixa». […] 
Parece que me perdi um pouco, mas não. Voltemos, por isso, ao comboio Rossio-Azambuja. Muita gente de pé – os mais atrasados e os que deixaram que lhes roubassem o lugar. Na minha frente, uma senhora de meia-idade, bem vestida, pintada, cara de poucos sorrisos. De pé, perto de si, uma jovem de ar tímido, com um cão ao colo. Olhitos vivos, orelhas arrebitadas, a cabeça a virar a todo o momento, atento a todos e a tudo. Iria o comboio ali por Sacavém, quando um Senhor, que seguia ao lado da dona do cão, resolveu levantar-se e, num gesto amável, indicou o seu lugar sentado à jovem que seguia de pé. Um gesto bonito, de cavalheiro. Hoje caído em desuso. Naquela altura era vulgar. A jovem, meio acanhada, não abriu a boca. Agora quem abriu os braços foi a «patroa»! Num gesto rápido, agarrou no cão e sentou-o no lugar vago! Muitas festas, muitas falinhas ao ouvido do bicho.
Quase não queria acreditar naquilo que via! A rapariga, coitada, continuou de pé. O cão acabou por enroscar-se no assento, sempre de olho vivo e de orelhas arrebitadas. O cavalheiro que cedeu o lugar, limitou-se a abanar a cabeça numa demonstração de desagrado. Ninguém abriu a boca. Ninguém falou. Mas os olhares, esses, diziam tudo o que as bocas calaram. Olhares reprovativos lançados ao pobre cão, sem culpa, afinal, deste triste episódio, mas, sobretudo, à dona do bicho. Avalia-se, pelo seu gesto, o tratamento a que a moça estaria sujeita! Actualmente, os animais que acompanham os donos seguem açaimados, com trela, boletim de vacinas, e não podem ocupar lugar nos bancos dos comboios – além de outras regras, que se impõem, para segurança dos restantes passageiros.
Nesta altura, a senhora recostou-se melhor no assento e fitou, tranquilamente, a paisagem que passava numa corrida vertiginosa pelos vidros das janelas.
Saí em Alverca do Ribatejo, ansiosa de chegar a casa para contar o que tinha visto. Passaram alguns anos, é verdade. Mas hoje chegou a hora de relatar o episódio nesta crónica. Os escritores são assim. Podem demorar algum tempo, mas nunca guardam para si o que pode servir de exemplo aos seus leitores – no bom e no mau sentido.

Soledade Martinho Costa

Do livro «Crónicas de Porcelana»
Edições Sarrabal/ Lunadil UNI LDA

publicado por sarrabal às 01:15
link | comentar | favorito
Terça-feira, 2 de Junho de 2020

A ARTE DE SER AVÓ

13340165_1032389943515571_7720299230834808006_o.jp

Estes dois bonequinhos têm uma história. Quando os olhos, vejo dois bebés que me vão acompanhar por toda a minha vida. Duas crianças que não cresceram porque não deixei. Representam os meus dois primeiros netos (hoje tenho seis). São os bonecos que lhes ofereci mal abriram os olhos para o mundo. O bonequinho para o Rafael, a bonequinha para a irmã, Maria Teresa, nascida dois anos depois. Ao vê-los, vejo duas crianças que continuam a dar-me a mão. A refugiarem-se no meu colo quando têm sono. A pedirem-me água quando têm sede. A ouvirem as minhas histórias. A apanharem, comigo, as conchinhas na areia da praia. Duas crianças que me enchem de perguntas, porque querem saber a razão das coisas. Que me oferecem desenhos com casinhas, árvores, andorinhas e o sol. A quem limpo as lágrimas quando dão um tombo ou fazem um arranhão. Que me chamam avó e correm para mim. Duas crianças que me dão pequeninas flores e beijos e abraços. Que não deixei que crescessem para continuarem assim, pequeninas, puras, ternas, a aprender, dia a dia, o significado das palavras: família, dedicação, respeito, amor. Vivem os dois dentro de uma caixa e dão-se muito bem. O bonequinho tem 21 anos, a bonequinha tem 19. De vez em quando vou visitá-los. Tiro a tampa da caixa e fico a vê-los. Não aos bonecos propriamente ditos. Mas às crianças que os dois representam e cujas mãozinhas os tocaram. Tão ao de leve, tão inconscientemente ainda, tão sem conhecimento, mas já com o movimento ousado de quem deseja alcançar o futuro – ou o brilho de todas as estrelas.

Soledade Martinho Costa

publicado por sarrabal às 22:17
link | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
14
15

18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


.posts recentes

. ANIVERSÁRIO DA MORTE DE N...

. VARINAS

. VERSOS DIVERSOS - O CONSE...

. LEMBRAR ZECA AFONSO - 37 ...

. ALENTEJO AUSENTE

. A VOZ DO VENTO CHAMA PELO...

. CARNAVAL OU ENTRUDO - ORI...

. FIAR A SOLIDÃO

. REGRESSO

. PASTORA SERRANA

. MEU FILHO

. 20 DE JANEIRO – SÃO SEBAS...

. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...

. «AS CRIANÇAS DA GUERRA»

. NOVO ANO DE 2024

. AS «JANEIRAS» E OS «REIS»...

. DIA DE REIS - TRADIÇÕES

. NATAL 2023

. NATAL - O DIA SO SOL

. AS QUATRO MISSAS DO NATAL

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Agosto 2023

. Julho 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Maio 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Março 2020

. Novembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Março 2019

. Fevereiro 2019

. Dezembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Julho 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Abril 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Outubro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

.links

blogs SAPO
Em destaque no SAPO Blogs
pub