Perfumam a tarde
Sons de flauta
Na quietude que habita
O nosso olhar.
Mágicos são os dedos
E o sopro
Que se espraia
Desdobra, corre, dança
Sem ter alguma pressa
De chegar.
Não tem morada certa
Nem destino
Em cada nota
Solta-se, oferece-se
Na beleza da sua melodia
Que lhe segreda o coração
De uma criança.
Cumpre-se no silêncio
Das ruas e das pedras
Lava-nos de pecados
Como o desfiar das contas dos rosários.
Talvez Pã, esquecido de ninfas e pastores
De florestas e silvados
Retornasse por instantes à infância
Num lugar perdido além do tempo
Onde não existem calendários.
Soledade Martinho Costa
Não gostava de morrer
Nos braços da madrugada
Quando o sol no céu se apronta
A debruar com um beijo
O nome desta cidade.
Preferia morrer de noite
Quando o silêncio é total
E esta luta que se trava
A respirar nos minutos
Feita de pranto e cansaços
São a promessa real.
Quando há corpos combatentes
Que desistiram de amar
E há sombras que se divisam
A voltar costas à vida
Numa luta desigual.
Preferia morrer de noite
Na minha forma de estar
Levar comigo o meu nome
E os sonhos que teci
Sem perguntas, sem respostas
Sem os versos que escrevi
Perdido do planeta
O condão de perdoar.
Preferia morrer de noite
Quando o escuro é solidão
Quando a saudade me chama
E me aportam à lembrança
Retratos de tantos rostos
Daqueles que foram meus.
Mas rogar a quem sustém
A minha mão entre as suas
Que acenda um círio na terra
Ao pé de uma rosa branca.
Que a terra que muito amei
Volte a ser minha morada
Volte a ser a minha porta
Volte a ser a minha cama.
Meu corpo vestido apenas
Com a palavra de Deus.
Soledade Martinho Costa
― Senhor Pica-Pau! Ó Senhor Pica-Pau! ― chama o papa-figos, lá do alto do ramo onde tem o ninho. ― Não acha que já chega de barulho?!
O pica-pau, vestido de amarelo, castanho e preto, suspende o martelar do bico na madeira.
― Falou comigo, Senhor Papa-Figos?
― É claro que falei! – replica o papa-figos, amuado. ― Só o Senhor é capaz de fazer tamanha barulheira! Se soubesse que me calhava por vizinho, tinha feito o meu ninho noutro lado!
O pica-pau não se dá por achado.
― Não me diga! ― responde. ― Então, o amigo não sabe que só assim me alimento e sou capaz de escavar um buraco, para me servir de casa, no tronco do sobreiro?!
― Mas à custa de incomodar meio mundo, a toda a hora!
― É que nem todos têm a sua arte, que consegue construir o ninho em silêncio, suspenso na folhagem…
― Pois é. Mas o vizinho, no que toca a barulho, abusa, francamente!
― Nesse caso, vou descansar o bico! ― condescende a ave trepadora. ― Por hoje, prometo que não trabalho mais. Além disso, a tarde está no fim…
― Uff! Já não era sem tempo! ― suspira, aliviado, o papa-figos, no seu fatinho preto e amarelo. E, sem mais conversa, mete-se no ninho.
Na verdade, ambos têm razão. O papa-figos, porque lhe assiste o direito ao sossego, de que tanto gosta. É uma ave tímida e discreta. O pica-pau porque utiliza o bico como se fosse um martelo, tac-tac-tac, agarrado aos troncos das árvores, a trepar e a martelar em busca do abrigo e do sustento. Por isso, possui um bico extremamente potente, que lhe permite escavar, sem dificuldade, nos troncos dos pinheiros, eucaliptos ou sobreiros, as cavidades que lhe vão servir de casa.
Quanto à comida, basta-lhe introduzir nos buracos a língua comprida, revestida de uma substância pegajosa. Presos a ela, ficam, então, as larvas e as lagartas, mas, principalmente, as formigas, que representam um dos seus petiscos predilectos. Completa as refeições com sementes e frutos. Nos meses do Outono e do Inverno torna-se quase vegetariano, alimentando-se de bolotas, pinhões, amêndoas, castanhas e nozes. Mas, com a chegada da Primavera, aí o temos, a importunar os vizinhos como o papa-figos! Ou seja, a martelar com afinco durante o dia inteiro. Trabalha na construção do ninho, iniciada cedo, nos meados de Fevereiro. Contudo, antes que a fêmea ponha os ovos, o pica-pau, papá previdente, armazena no ninho frutos secos, bagas e semente. Depois, tac-tac-tac, fica à espera. De quem? Ora, dos filhos, que vão chegar quando Maio bater à sua porta!
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que a Primavera me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
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