«Raramente usei relógio. Agora, nem uso. Tenho uma certa aversão às horas. À disciplina das horas. Embora cumpra os meus horários e seja pontual, sempre que necessário. […]. Provavelmente, por ter tido desde a infância, a adolescência e a juventude, a obediência às horas. A subordinação às horas e, portanto, aos relógios. Não gosto de relógios. Porque andamos às suas ordens. São eles que nos comandam, que nos dizem o que não queremos ouvir nem saber, se é tarde, se é cedo, se merece a pena, se (já) não merece, se devemos ir, se devemos ficar, se estamos atrasados ou se nos adiantámos sem ter sido relevante a nossa pressa. Mas, principalmente, pelo tempo que nos fazem perder, numa espera longa, numa ansiedade reprimida, numa expectativa, numa capacidade de submissão aos seus ponteiros, sem que nada possamos fazer para contrariar essa conformação, na maior parte das vezes transformada em angústia crescente, sem haver notícia ou vislumbre de piedade. […]. Na casa dos meus pais havia relógios por todo o lado – até no meu quarto. Um relógio dourado, a despertar-nos com música suave, num dourado que guardo como recordação, mas que não trabalha há longos anos. […]. Em casa da minha avó Maria Estrela, o ritual era outro: na sala grande havia um relógio de parede a meio das duas janelas. Antigo, de pêndulo [...]. E a minha avó, guardiã atenta da preciosa chave do relógio. Só ela lhe dava corda. Nunca se esquecia. E eu, atenta, a olhar a chave, guardada em lugar seguro, só dela conhecido, com medo de perder-se. Nunca vi outras mãos a abrir a porta envidraçada e a dar vida ao velho relógio, no balançar do pêndulo, ora para a esquerda, ora para a direita. Sem falar nas badaladas a encher a sala e a casa toda com o sobressalto da sua voz.»
Soledade Martinho Costa
Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»
Edições Vela Branca
Tenho lido muitíssima coisa a respeito deste assunto, mas não li algo que o aborde visto do «avesso». Isto é, de uma maneira diferente, que não seja, apenas, o escândalo que originou as palavras infelizes de Zé Cid, ao referir-se aos Transmontanos. O Zé, tem sido, desde sempre, uma pessoa que gosta de causar polémica. Porque é provocador. Mas uma coisa é ser provocador na maneira de se apresentar publicamente ou dar opiniões controversas, em situações que só a ele dizem respeito. Outra, é proferir afirmações que vão chocar e escandalizar aqueles a quem são dirigidas. Dito de outra maneira: que têm destinatário, como foi o caso. No entanto, tratou-se de uma entrevista em grupo, informal, onde a conversa versou a música (aquela que se faz por este país) e, daí, por arrastamento, vir à conversa Trás-os-Montes e os Transmontanos. Sem dúvida alguma que Zé Cid não mediu a dimensão das suas palavras. Foi irreflectido, pouco acautelado, não tendo a noção de que estava a falar para Portugal inteiro, via Televisão, e que, Portugal inteiro, faz parte do seu público. Não se lembrou que a conversa não era, propriamente, em sua casa, rodeado de um grupo de amigos. E, mesmo que fosse…
Mas, onde eu quero chegar, não é às palavras impensadas de Zé Cid, nem ao melindre dos Transmontanos, nem sequer às desculpas de Cid, nem ao seu concerto cancelado em Alfândega da Fé, ou à interdição da sua presença em Trás-os-Montes, para o resto da vida, chegando às ameaças de morte. Quero chegar a uma coisa muito mais simples do que tudo isto e que se resume a uma só palavra: ÊXITO!
Zé Cid, ao contrário de muitos outros compositores e cantores, de nomes sobejamente conhecidos, viu-se, de há uns anos a esta parte, de novo nos píncaros do êxito. Com mais idade, é certo, passou por cima do tempo, e tem prosseguido numa carreira a fazer inveja a muito boa gente. Gente já antiga nesta coisa das cantigas, outra assim-assim e outra, ainda, a contar com nomes a dar os primeiros passos na ribalta. Isto, tem causado engulhos. Se os bastidores da literatura não são dos melhores, os bastidores da música são bem piores. Concertos atrás de concertos, casas cheias, adesão do público, desde os mais velhos aos mais novos, que conhecem as suas canções e com ele as partilha, fazendo dos seus concertos verdadeiros sucessos. Pois. Era tempo de tentar encontrar uma solução que pusesse fim, ou abalasse, uma carreira que nunca mais acaba. E procurou-se, vasculhou-se, pesquisou-se, até encontrar alguma coisinha que fizesse abanar (alterar) este estado de coisas – que a tantos «prejudica». Encontrou-se, então, esta dos Transmontanos serem, na opinião de Cid, «medonhos, feios e desdentados»! E surgiu o escândalo, bem explorado nas páginas dos jornais, na TV, na Net, o melindre de uma província inteira (incluindo os aderentes!), o cancelamento de um concerto, as injúrias, as ameaças de morte. Objectivo conseguido! Mas, pergunto eu: ao fim de SEIS ANOS?! Então, nessa altura, em 2010, sobretudo os Transmontanos, tinham sido atacados de completa surdez?! Ninguém ouviu as palavras de Zé Cid?! Ninguém se escandalizou nem melindrou com elas?! Porquê só agora, tão tardiamente?! Tive, há dias, como resposta à minha interrogação: «gajos da música»!
Curiosamente, li, por estes dias, num livro de autora muito conhecida, o seguinte: «[…]: o espectáculo desolador de um amontoado de portugueses que, vestida de cinzento, abandonava o trabalho e regressava a casa. Os rostos feios, os dentes cariados […]» E, num outro: «[…]… é verdade que Portugal é um país de desdentados […]. Mas se formos ver a questão pelo lado positivo […] a ausência de dentes acaba por ser uma vantagem: evita gastar dinheiro na escova e na pasta dentífrica, e sempre se economizam uns eurozitos.»
Isto, não tem grande graça. Mas é a realidade do nosso país. Os dentistas levam bom dinheiro – e dinheiro é coisa que não abunda nos bolsos dos portugueses. A maioria deles, desde sempre, não tem direito a estomatologia. A Caixa Nacional de Pensões nunca lhe decorou o nome. E não só ela…
Zé Cid foi insensato, é verdade. Assim como há verdades que custam ouvir, outras custam a engolir: o êxito de uma carreira longa e de sucesso, por exemplo.
Soledade Martinho Costa
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