Que eu tenha dado por isso, não li nem ouvi nada, principalmente nestes últimos tempos, sobre o escritor de que vou falar. Se estiver enganada, peço desde já as minhas desculpas – embora, nunca seja de mais falar dos nossos autores. E não preciso de dizer muito sobre aquele que me traz a estas linhas. É provável que a simples razão de que há tantos nomes que são lembrados, e outros não, tenha ajudado a escrevê-las.
Creio que apenas uma minoria lhe saberá o nome e a obra. Para o grande público, uma coisa e a outra, devem significar o total desconhecimento. Trata-se do escritor Orlando da Costa. Nem mesmo com a nomeação de seu filho, António Costa, como Primeiro-ministro do nosso país, ajudou o seu nome a ser recordado.
Conheci-o bem. Falámos muitas vezes. Ora, na APE (Associação Portuguesa de Escritores), ora, nos Encontros de Escritores, organizados por esta instituição, (já agora, há quantos anos se realizou o último encontro?), outras vezes, na SPA (Sociedade Portuguesa de Autores).
De aspecto franzino, mais calado do que falador, sóbrio, direi mesmo, um pouco tímido. Cabelo branco, liso, penteado para trás, a cobrir-lhe o pescoço. O inseparável bigode branco. O traço «goês», muito mais evidente no seu rosto do que no rosto do filho.
Orlando da Costa nasceu em Moçambique (Lourenço Marques, hoje Maputo), em 1929, filho de pai Goês, tendo sido em Goa que passou a sua infância e parte da juventude, até à sua vinda para Lisboa, com 18 anos.
Poeta, romancista e dramaturgo, constam da sua obra, entre outros títulos: «O Signo da Ira» (1961, Prémio Ricardo Malheiros, atribuído pela Academia de Ciências de Lisboa); «Podem Chamar-me Eurídice» (1964); «Sem Flores Nem Coroas» (1971); «Canto Civil» (1979); «A Como estão os Cravos Hoje?» (1984) e «Os Netos de Norton» (1994, que lhe valeu o Prémio Eça de Queiroz da Câmara Municipal de Lisboa.
Em 1954, com 25 anos, faz-se militante do Partido Comunista Português, onde, à data da sua morte, ocorrida em 2006, desenvolvia, antes e depois do 25 de Abril, a sua actividade na área da cultura literária (sector intelectual de Lisboa do PCP). Sobre a urna, as bandeiras do Partido Comunista Português e da Associação Portuguesa de Escritores.
Foi este o Orlando da Costa que conheci. Esteja ele onde estiver, tem duas boas razões para estar feliz.
Soledade Martinho Costa
Estava na minha casa, no Algarve, quando o telefone tocou. Atendi. Do outro lado, a voz de Dulce Pontes: «Soledade? Preciso muito de si! Preciso que me escreva um poema!» Repeti: «Um poema?». E a Dulce: «Fui convidada a cantar a canção-tema do filme «Afirma Pereira». A música é do Ennio Morricone, mas não gosto da letra. Não sinto as palavras. Não consigo dar-lhe expressão, emoção. Depois, há uma parte que fala «em carícias quentes»! É horrível, não posso cantar isso. A Soledade tem de me ajudar!»
Prontifiquei-me a tentar escrever um poema sem «carícias». O pior, foi quando a Dulce acrescentou: «Mas a Soledade tem de estar presente numa reunião que vamos ter no próximo sábado!» Estando eu no Algarve, a ideia não me agradou por aí além. Tinha três dias até à dita reunião. Enfim, fui pontual. A reunião decorreu nos estúdios da Movieplay (nessa altura, a editora discográfica de Dulce Pontes). Presentes, o director da editora, José Serafim, o compositor Jan Van Dijck, Guilherme Inês, que foi manager de Dulce, Dulce Pontes, o seu pianista e eu.
As explicações de Dulce para não interpretar a canção, a opinião dos restantes elementos de que a música de Ennio Morricone merecia um melhor poema. Aceitei o desafio com reservas. Seria capaz, não seria… E a Dulce: «Ora, não é agora capaz!» Foi-me indicado pelo Jan Van Dijck que a letra teria de falar de uma cidade: Lisboa. Também aqui o pior estava para vir. O poema deveria ficar pronto até às 10 horas da manhã seguinte! Fiquei estarrecida. Não esperava que me dessem tão pouco tempo para elaborar um poema, ainda por cima por encomenda, que nem sequer tinha a certeza de conseguir escrever. Até aí, o Luís Represas escolhera dois dos meus poemas, que musicou e gravou. Não tive qualquer trabalho nem responsabilidade. Saí da reunião com um peso enorme sobre os ombros. Isto é, com a responsabilidade de fazer um trabalho de grande responsabilidade, acrescida da responsabilidade, perante mim própria ou seja, do meu próprio ego, de não desiludir aqueles que me confiaram a responsabilidade de escrever um poema que falasse de uma cidade…
Cheguei a casa por volta das 2 horas da manhã. Fechei-me na salinha, onde tenho a aparelhagem, e comecei a ouvir Morricone ao piano. Com o CD para trás e para a frente, para a frente e para trás, e a responsabilidade a crescer, a crescer... Não tinha ideias, não sabia por onde principiar, mas comecei a saber a música de cor! Lembrei-me, então, de uma amiga bastante experiente nestas coisas. Além disso, daquelas amigas que nos atendem os telefonemas sem se importarem que se lhes interrompa o sono aí pelas 3 horas da manhã: «Mas não te deram um mono?!» Perguntou. «Nada, só o CD.» Respondi. E a Natália, a dar-me imensa coragem: «Sem um mono vai ser difícil. Se calhar, não vais conseguir…»
Voltei a ouvir o piano e, sem saber – ainda hoje – como, surgiu-me, finalmente, uma frase: «Noite das Sereias»! Abria-se o caminho na brancura do papel. Deitei-me eram 6 horas da manhã. Encaixado, metricamente, na música de Morricone, o poema estava feito!
Pelas 10 horas, telefonei a Dulce. Li-lhe o poema. Não quero parecer imodesta, mas… «É lindo, Soledade! Adoro!» Nessa altura (1995), nem eu nem ela tínhamos e-mail. Pelo telefone, passou-o ao papel: «Vou já começar a ensaiar. Mas logo, pelas 9 da noite, já sabe, todos na Movieplay: vou gravar!» Assim aconteceu.
Aí uma dúzia de pessoas, reunidas no estúdio, na expectativa de ouvirem Dulce e o novo poema. Enquanto cantava, percorria-nos a emoção transmitida pela sua voz, nas palavras que falavam numa cidade: Lisboa – e também de amor. No final, as palmas, os beijinhos, os abraços. A alegria instalada no estúdio. Logo depois, a decisão: «Amanhã, bem cedo, o CD tem de seguir no primeiro avião para Itália!» Daí em diante, restou a breve espera da resposta dos Italianos.
Breve, no sentido da resposta ter vindo de imediato. Num telefonema feito para a Movieplay, ficámos a saber que: «Não seria possível mudar o tema da canção, devido ao facto de ter sido o próprio António Tabucchi, autor do livro «Sostiene Pereira», obra que deu origem ao filme, a convidar os dois autores do primeiro texto, Francesco De Melis e Emma Scoles.» Soubemos depois, por pessoa residente em Itália, que «tanto um autor como o outro, não sabiam português – mas pertenciam ambos ao grupo de amigos de Tabucchi.» Quanto à opinião de Ennio Morricone, «o “nosso” era o melhor poema». Foi assim que Dulce Pontes gravou «as carícias quentes».
Devo dizer, que o convite para cantar o tema do filme, foi, primeiramente, dirigido a Amália Rodrigues. O actor Marcello Mastroianni, figura central do filme, apresentou-se, pessoalmente, em casa de Amália, para lhe fazer o convite. Amália Rodrigues, já doente, recusou, mas indicou Dulce Pontes «como uma boa escolha». Não sei se Amália leu o texto. Julgo que não. Mas, se o lesse, recusaria cantá-lo, tenho a certeza. E teria toda a força do Mundo para fazê-lo. Restaria, então, a Tabucchi, pedir desculpa aos amigos e dar o dito por não dito.
Com Dulce Pontes, era diferente. Não tinha a força nem o poder de Amália. Estava a dar os primeiros passos, na sua carreira mundial, pela mão de Ennio Morricone. Não podia recusar a oportunidade nem ser esquisita. É verdade que tentou. Mas era cedo de mais para se impor. Hoje, sim. Hoje, seria possível fazer a sua escolha – que seria aceite.
Por mim, basta-me possuir um CD com a gravação da «Noite das Sereias», na voz de Dulce. De vez em quando, penso fazer um vídeo com ele, como já fiz com outros poemas meus, musicados e cantados. Mas o tempo é pouco e fazer um vídeo dá imenso trabalho. São horas e horas ao computador. Talvez um dia destes, quem sabe?
Agora, uma confissão: minto, quando digo, no título desta crónica, «Uma História que Ficou por Contar». É verdade que o episódio que relato se ficou, apenas, pelos bastidores, no conhecimento dos intervenientes, pouco mais. Mas alguém a contou, na altura, ao publicá-la, curiosamente, num jornal desportivo, muito conhecido, com o título: «Também Há Derrotas nas Canções». Obrigada, Zé!
Soledade Martinho Costa
Aqui vos deixo os dois temas:
«A BRISA DO CORAÇÃO»
A lua que brilha branca na manhã
Sobre o mercado dos melões de ouro
Curiosa espreita as casas cor-de-rosa
À procura do nosso tesouro.
O segredo a descobrir
Está fechado em nós
O tesouro brilha aqui
Encanta o coração, mas
Está escondido
Nas palavras
E nas mãos ardentes
Na doçura de chorar
Nas carícias quentes.
No brilho azul do ar uma gaivota
No mar branco de espuma sonoro
Curiosa espreita as velas cor-de-rosa
À procura do nosso tesouro.
A brisa brinca como uma gazela
Sobre a torre branca e a Rua do Ouro
Curiosa espreita a fenda da janela
À procura do nosso tesouro.
Emma Scoles e Francesco De Melis
«NOITE DAS SEREIAS»
É sobre o oiro das areias
É sobre este sal
Que tece a renda às ondas
Que à noite
O canto das sereias
Traz junto de mim
Esta saudade tanta.
Quanto mais
Amo
Sinto
A voz da cidade
Flor
Da cor
Azul do mar
Mais recordo
A luz que veste
O teu olhar.
Muito mais
Eu tenho
A certeza de ser
Por ti
A prisioneira
Que se deixa à solta.
E olho os pombos nos telhados
Invento no cais regressos de faluas
Desvendo feitos ancorados
De homens sem nome
A darem nome às ruas.
E os búzios cobrem-se de prata
Entoam comigo o canto das sereias
Quando anoitece no meu peito
E a lua embala o sono das areias.
Soledade Martinho Costa
O céu
Retém ainda
O voo das cegonhas.
Acendem-se braseiras
De histórias
E de mosto
Regressam as castanhas
No bico do capuz.
Há bruxas
Que povoam
As noites de Novembro
No oiro das laranjas
Pousa o luar em cruz.
Soledade Martinho Costa
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