«[…] não posso sequer imaginar o que terá sido a nossa guerra em África. Feita, especialmente, por jovens […]. Não me atrevo. Acho mesmo que não tenho esse direito. […] Que abrange todos aqueles que lá não estiveram. Que nela não participaram. Restam os outros, que se negam a testemunhá-la, mas que, em todo o seu comportamento, tudo testemunham e tudo confessam. Tive um familiar nessa guerra. Tão jovem quando partiu no navio que o levou, que lhe ouvia a voz de criança a chamar pelo meu nome. Que lhe via no rosto o riso infantil ainda a ressoar nos meus ouvidos. Brincámos juntos, crescemos juntos, partilhámos o aconchego do tecto da casa que o viu nascer. As brincadeiras, as festas de família, os fins-de-semana, pontualmente, em casa dos meus pais, no Ribatejo – comigo. Por esses anos não havia tristezas. As alegrias, muitas, num céu sempre azul no nosso olhar sem nuvens. Mais tarde, os passeios, as confidências. O amor a despontar um dia, os projectos, os sonhos. […] O amor dos pais retribuído, o ser filho único – como eu. Mas a tristeza chegou um dia, em meia dúzia de linhas dentro de uma carta. E foi a acenar na amurada do navio que se afastava mar fora que o vi pela última vez ser o jovem que era. O resto desse dia fiquei ao lado da minha tia Bé. Mas não consegui confortá-la. As palavras, por vezes, também são inúteis. A casa ficou vazia, e o vazio estava lá, vestido de ausência em todos os recantos, em todos os objectos, na cama vazia, a soletrar um nome atirado para um país desconhecido, para um destino desconhecido, para uma sorte desconhecida. Dois anos. Dois anos roubados a todos nós – mas sem dúvida a ele, mais do que a ninguém. E veio o regresso noutro navio. Mas nesse navio não veio o mesmo jovem. Esse ficou por lá, por terras de África, perdido de angústia, de receio (medo), de saudades. Não regressou. Não pôde. Regressou um outro jovem no seu lugar, desconhecido para mim: taciturno, triste. De poucas ou nenhumas palavras, calado. E ainda de menos sorrisos. Desinteressado, desintegrado da família e de si. Nunca quis falar, nunca quis contar nada do que se passou durante esses dois anos em África. Fugia ao assunto e abrigava-se no mutismo de recordações silenciadas por conversas ausentes. Nunca mais nos reencontrámos na cumplicidade e no afecto dos dias antigos, transformados em anos de lonjura entre os dois – como se fosse o mar que certo dia nos separou. As marcas de vivências como estas fazem estragos, deixam cicatrizes no corpo e na alma. Aos poucos, as palavras família, esposa, filho, mãe deixaram de ter para ele qualquer significado. Notava-se. Sentia-se. Adivinhava-se. O que ficara lá para trás, em terras de África, oculto na importância do desabafo, nunca ele o quis fazer detonar como uma bala. Submetia-nos, manobrava-nos. E todos nós, que o cercávamos, baixámos os braços sem ver a realidade (ou sem a querer ver?). Quando devíamos levantá-los e agir. Com urgência, com a pressa com que se socorre um náufrago. Ninguém o fez. Ninguém percebeu, nem eu. Por esses anos, não se falava em apoio psicológico – como hoje. Não houve qualquer apoio. Apenas perguntas sem resposta. Apenas preocupação e angústia por esse silêncio repetido, dia após dia. […] Mas não chegou. Era preciso ir mais longe. E ninguém foi. A razão para a mudança do seu comportamento tinha um nome: chamava-se Guerra em Angola. E como a palavra esposa passou a não ter para ele qualquer significado, partiu de novo. Agora, não de navio, mas pelo seu próprio pé. Assim como a palavra filho também passou a nada lhe dizer. Nem a palavra mãe. Decorreram muitos anos. Tantos, que o filho se tornou um homem, e a mãe foi envelhecendo. […] Na data em que celebrava ter dado à luz, fechava-se no quarto o dia inteiro. Só nesse dia a ouviam chorar. […] o jovem que acenou certo dia da amurada de um navio, rumo a um destino desconhecido, nunca mais voltou. A ajuda que, por ignorância, não lhe demos na devida altura resultou na fuga ao respeito pelos valores da família (que sempre prezou) e, muito mais dramático, na fuga de si próprio.»
Soledade Martinho Costa
Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»
Há um silêncio de ave à nossa volta
A marcar a cadência aos nossos passos.
Faz-nos falta uma flor
Que os troncos mortos
São vontades ausentes
E a força
Que nos faz chorar de pena
Verdes copas.
Junto de nós
Nos olhos do menino sem jardim
Uma tristeza azul
Que nos importa.
E o peso de uma culpa
Que não temos
Carrega os nossos ombros
Mesmo assim.
Soledade Martinho Costa
Do livro “A Palavra Nua”
Ed. Vela Branca
Há poucos dias, perguntei a mim própria, que comparação podia haver entre uma feira/mercado e uma livraria. Mais. Perguntei que comparação podia haver entre quem vende os seus produtos numa feira/mercado e um escritor. Quer acreditem, quer não, encontrei muitos pontos em comum.
Numa feira/mercado, o que mais se vê? Bancas. Numa livraria, o que mais se vê? Escaparates. Nas bancas das feiras/mercado, uma diversidade de produtos: legumes, frutos, flores, peixe, tapetes, roupas, sapatos, louça… Nos escaparates das livrarias, toda uma gama de estilos literários: crónica, romance, novela, biografia, história, poesia, filosofia, ensaio,,,
Numa feira/mercado, nas bancas do peixe, reparamos que os bolsos mais providos escolhem o cherne, a corvina, o salmonete, o linguado… Os menos providos, uns carapaus, umas sardinhas, umas petingas, umas cavalas… Nas livrarias quem pode, compra o livro mais badalado (nem por isso o melhor), com um preço superior. Quem não pode, contenta-se em escolher um livro mais baratinho, que lhe dê alguma garantia de boa leitura – e, quantas vezes, acerta.
Por curiosidade, a chegada dos vendedores à feira/mercado, para iniciar o seu trabalho, faz-se de madrugada, o sono agarrado à pele, enquanto a noite não despertou ainda. A essa hora, o escritor decide fazer uma pausa no seu trabalho e ir dormir.
Repare-se que, o próprio escritor, está presente em todas as feiras… de livros! Com uma diferença: em vez de estar em pé, atrás da sua banca, como qualquer vendedor, encontra-se à frente do pavilhão da sua editora, sentado numa cadeira, tipo esplanada, com uma mesinha diante de si. Para fazer o quê? Para vender as suas obras – a que acrescenta, na página do livro, a simpatia de um autógrafo. A lembrar a vendedeira da feira/mercado, que oferece, à freguesa, um raminho de salsa no final das compras!
Bastante usual nas feiras/mercado, é, também, a chamada «feira de vaidades». Algumas senhoras, costumam vestir-se, como se fossem à ópera. Nas feiras de livros, são alguns autores que se mostram como se fossem receber um Óscar.
Em termos de comparação, resta-me fazer uma pergunta: o que espera o vendedor de uma feira/mercado quando expõe, na bancada, os seus produtos? Vendê-los, evidentemente! Então, e o que espera um escritor dos seus livros expostos no escaparate de uma livraria? Exactamente o mesmo: vendê-los! O problema está em que nem sempre o vendedor de uma feira/mercado, após um dia de trabalho, faz bom negócio: faltaram os fregueses. A única diferença, é que os escritores não têm, propriamente, falta de fregueses. Quando muito, podem ter é falta de leitores.
No seu livro de crónicas Deste Mundo e do Outro, diz José Saramago: «Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos?» Na minha opinião, penso que são as duas coisas. No caso destas minhas palavras terem a pretensão de ser uma crónica, a servir de prefácio, ela representaria, sem dúvida, um pretexto para justificar a capa que escolhi para este livro. Na verdade, acho belíssima a tela de Petrus Van Schendel, «A Feira», e só com o pretexto destas linhas poderia tê-la como capa. Quanto aos testemunhos, é o que vos deixo nas páginas deste livro. Para mim, todas as crónicas são testemunhos. Uns mais abstractos, mais ficcionistas, mais improváveis (ou não), outros mais simples, mais directos, mais descritivos, mais intimistas, mais confessionais. Sobretudo, se não forem, exactamente, crónicas, mas historietas – como deve ser o caso.
Soledade Martinho Costa
Capa do meu novo livro «Crónicas de Porcelana» - se, até lá, a editora não desistir, são, pelo menos, este e mais dois títulos a publicar até 2016.
(Uma historinha para os mais pequenos)
- Quem é a mais bonita? Vamos, digam lá. Quem é a mais bonita?
- Sou eu! Sou eu a mais bonita!
- E a mais perfumada?
- A mais perfumada sou eu!
- E a mais garrida?
- Eu, eu! A mais garrida sou eu!
O vento agita o corpo que não se vê mas que se sente.
- Estouvadas. – resmunga ele. – Muito estouvadas são as flores! E vaidosas? Nunca vi. Passam o tempo todo nesta lengalenga. A quererem saber qual é a mais bonita, a mais perfumada, a mais garrida…Bem gostava eu de não as ouvir. O pior, é que passo por elas constantemente. Que remédio tenho, se não escutar aquilo que dizem. Mas quando me zango…Ah! Quando me zango a sério, sopro nas suas pétalas com tal fúria, que todas se calam e estremecem com receio da minha zanga e da minha força!
- Fazes mal. – responde-lhe, loiro de Sol, um campo de trigo. – Não deves zangar-te nem mostrar às flores a tua fúria. Repara que também tu és falador. Raramente te calas! Sou eu quem to diz, pois sou eu quem escuta a tua voz a toda a hora. E estouvado também o és. Porque, sem me pedires licença, fazes ondular o meu corpo de espigas como um mar revolto. Além disso, tens vaidade da tua força. A prova é que dela te ufanas. Tanto, como as flores se orgulham da sua beleza, do seu perfume e da sua cor. Pensa primeiro nos teus próprios defeitos, amigo Vento. Pensa primeiro neles, para melhor saberes compreender e desculpar os defeitos dos outros…
E o vento, gira que gira, numa roda-viva, vai esmorecendo, vai esmorecendo, vai calando a fala. Até que deixa de se ouvir. O vento está a meditar. E a seara de trigo torna-se então plana como uma estrada aberta.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que a Primavera me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
«O vento», ilustração de Elisa Bernardo
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