Para os mais pequeninos:
Mesmo à beirinha do cais
Está pousada uma gaivota.
Que viagens terá feito
Que rochedos e que sal
Que marés e areal
Roçaram as suas asas
Em beijos de temporal?
Qual o rumo
Qual a rota
Das suas asas de espuma
Por sobre as águas do mar?
Quantas horas
Quantos dias
Quantas noites de luar
Leva o tempo
Leva o tempo
Até fazê-la voar?
Toda vestida de Sol
Que estará ela a cismar
No céu azul
Na maresia
Nas vozes dos pescadores
Que vão à pesca no mar?
Cercada de espaço e vento
Que estará ela a cismar?
Fora eu outra gaivota
Ia-lhe já perguntar!
Soledade Martinho Costa
Foi Alice Gomes, minha querida e saudosa amiga, escritora e pedagoga, que me apresentou Afonso Praça. Baixo, gorducho, sereno, sorriso pronto, sotaque da província que o viu nascer: Trás-os-Montes, mais propriamente, em Felgar, Moncorvo.
Dois beijinhos, «muito prazer», e foi assim que conheci o director do saudoso «O Jornal da Educação», onde Alice Gomes, na altura, era colaboradora. Depois, fomo-nos encontrando, aqui e ali, em diversos eventos. Uma vez no Restaurante Brazuca, cozinha regional brasileira, na rua João Pereira da Rosa (Bairro Alto), num jantar organizado pela Associação Portuguesa para a Educação pela Arte. Nesse jantar, Afonso Praça (sempre com modéstia) animou os convivas, a mostrar a sua erudição e os seus famosos dotes de contador de histórias. Entre diversos encontros, lembro um outro jantar no Hotel Tivoli, oferecido pelas Publicações Europa-América, a minha editora.
Recordo-me, particularmente, dessa noite. À saída, ficámos os dois à conversa no átrio do hotel. Para dizer a verdade, foi mais o Afonso Praça que ficou à conversa comigo. Acontece que eu tinha estreado nesse dia uns elegantes sapatos pretos de verniz. Salto altíssimo, como eu gosto (ou gostava), mas que, por terem sido calçados pela primeira vez, me causavam um mal-estar indescritível. Afonso Praça, ignorando o facto, falava, falava, falava, e eu, sinceramente, quase nem o ouvia. Estávamos de pé (não sei por que razão) e, talvez porque as mulheres gostam de ser elegantes até ao fim, não me queixei. Aguentei quanto pude. Até argumentar, como derradeiro recurso, que o meu carro havia chegado (o que não era, de todo, verdade). É feio mentir, eu sei, mas não achei outra solução: ou confessar que não aguentava os sapatos, ou servir-me da astúcia que, dizem, ser atributo das mulheres: cobardemente, escolhi a segunda opção. Foi a forma que encontrei para não dar parte de fraca e pôr fim à conversa – que noutra situação me teria deliciado. Nunca lhe contei esta mentira.
E fomos ficando amigos. Um dia disse-me:
- Quando a Soledade quiser colaborar no «Jornal da Educação», é só dizer.
Fiquei a pensar no assunto. Tempos depois apresentei-lhe uma proposta: ir à procura de figuras públicas, de quem há muito tempo nada se sabia. Nomes esquecidos por uns, ignorados por outros e, até, desconhecidos para grande parte do público. Que seria feito desses nomes, dessas pessoas? Continuariam na sua actividade ou tê-la-iam posto de parte? Que teriam para dizer-nos? Escritores, historiadores, músicos, cantores, nomes da Televisão e outras figuras públicas de há muito sem delas haver notícias? Afonso Praça achou o projecto interessante e a ideia avançou. Assim nasceu o ciclo «Nomes a Recordar».
Umas vezes a página inteira, outras com um pouco mais de espaço, entrevistei Noémia Setembro (escritora cujos livros li na infância e que possuo ainda); Alexandre Cabral (escritor que dedicou parte da sua actividade à investigação, sobretudo à obra e vida de Camilo Castelo Branco, sendo considerado um dos nossos mais importantes camilianistas); a pintora Sarah Affonso (mulher de Almada Negreiros); a musicóloga Fracine Benoit; a escritora Eugénia Neto (viúva do presidente Agostinho Neto, de Angola); Margarida Macedo Silva (directora das bibliotecas da Madeira) e o escritor Adolfo Simões Muller, entre outros.
Visitava muitas vezes Afonso Praça na redacção do jornal, umas vezes para lhe entregar trabalho, outras apenas para conversar. Num desses encontros dei-lhe uma novidade: tinha descoberto que um dos seus filhos, o Tiago, era colega da minha filha Maria João. Concluídos os respectivos cursos, alguns jovens tinham alugado um velho palacete, ali para os lados de Belém. Com a renda paga por todos, dividiram o espaço e cada um dispunha de área suficiente para pôr em prática o que tinha aprendido. A minha filha trabalhava em restauro de madeiras (complemento do curso do ISLA, de guia interprete nacional, e de História de Arte). O Tiago em cerâmica, com peças muito interessantes criadas por ele. O resto do grupo dividia-se por diversas artes como a fotografia e os metais.
Ao ter conhecimento desta ligação, Afonso Praça contou-me, então, que se deslocava muitas vezes ao atelier. Gabou o jeito do filho (com razão), mas nunca pensou que aquela Maria João, que conhecia bem, era minha filha. Salientou que tinha reparado no entusiasmo e empenhamento que dedicava ao restauro e recuperação de peças de mobiliário antigo, umas vindas do Palácio de Sintra (onde trabalhou durante meses no restauro da cama de D. Sebastião e noutras peças), outras pertencentes a particulares. O companheirismo entre os nossos filhos foi mais um elo a reforçar a nossa amizade.
Quando o «Jornal da Educação» acabou, começámos a ver-nos mais espaçadamente. Cada um de nós com o seu trabalho, o tempo foi passando. Até que aconteceu o inesperado. Ao assistir pela TV a uma entrevista a Afonso Praça, ouço, pela primeira vez, falar na sua doença, que vinha de há uns meses atrás: doença oncológica. Na sua maneira simples e directa revelou o seu estado como de uma coisa sem importância se tratasse. Com serenidade e com esperança.
No dia seguinte estava eu a telefonar-lhe. A dizer-lhe do meu desconhecimento em relação à sua doença, embora sem demonstrar a minha preocupação. Trocámos mais umas palavras, a saber de nós, e logo a promessa cheia de esperança, tal como na véspera tinha ressaltado da entrevista a que assisti:
- Amanhã vou fazer mais uns exames. Depois disso, telefono-lhe para nos encontrarmos e pôr a conversa em dia.
Mas esse dia nunca chegou. Pouco tempo passado, a triste (e esperada) notícia do seu falecimento.
Ficaram as muitas ruas com o seu nome: em Cascais, no Estoril, em Oeiras, em Algés, em Setúbal. Filho único, licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi o primeiro presidente do Sindicato dos Jornalistas depois do 25 de Abril. Jornalista e escritor foi também autor de programas televisivos: «Portugal de Faca e Garfo»; «Memórias de um Povo»; «Faz de Conta» «Quem conta um Conto», entre outros. Escreveu o «Novo Dicionário do Calão» e os dois belíssimos álbuns «Saberes e Sabores», de parceria com Maria de Lourdes Modesto. Foi ainda um dos fundadores de «O Jornal», director do «Jornal Se7e» e do «Bisnau» (semanário humorístico) e redactor da revista «Visão».
Afonso Praça faleceu a 3 de Maio de 2001 aos 62 anos. Muito havia a esperar da sua actividade e do seu saber. E também do sabor das suas deliciosas conversas que a todos encantava – só não encantava quando certas senhoras se lembram de estrear sapos pretos de verniz para assistir a um jantar…
São estas simples palavras que deixo aqui para recordar um grande amigo, um companheiro, que amava as palavras, escritas ou faladas. Fica também a saudade nesta singela homenagem, a recordar um grande homem que sempre soube ser um homem simples – mas sábio.
Soledade Martinho Costa
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