Considerada uma das tradições mais significativas dos Açores (Ribeira Seca e Ribeira Grande, São Miguel), tem conhecido ao longo dos anos várias interpretações quanto à sua proveniência. Enquanto alguns autores vêem nesta festividade – única no arquipélago – uma reminiscência do velho teatro popular ou lembranças dos cavaleiros que outrora tomavam parte nos torneios de cavalaria medieval, outros sustentam que representam restos de cerimónias medievais de inspiração bíblica. Outros ainda defendem que a prática secular das Cavalhadas não passa de resquícios das remotas lutas travadas entre mouros e cristãos.
Todavia, se as opiniões se dividem e as dúvidas permanecem, existe um ponto em que todos estão de acordo: a tradição vigora há quatro séculos e aparece ligada ao período das grandes erupções vulcânicas do pico do Sapateiro (actual pico Queimado), que assolaram a ilha de São Miguel, tendo a lava destruído tudo o que encontrava pela frente, particularmente nas freguesias da Ribeira Seca e de Santa Bárbara (na então Vila da Ribeira Grande, hoje cidade e sede do concelho) e Vila Franca do Campo (situada no lado sul da ilha).
Descendo da encosta e galgando o pequeno povoado, a lava, ao atingir o ponto onde se erguia a Capela de São Pedro, na Ribeira Seca, separou-se em duas torrentes, para ladeá-la sem a molestar, e daí correu até ao mar durante três dias e três noites, dividindo assim o areal em dois (um só, até então): o areal de Santa Bárbara da Ribeira Seca e o da Ribeira Grande.
Apercebendo-se o povo da enorme destruição e o facto de nada haver ocorrido à capelinha de São Pedro, tomou, naturalmente, o acontecido como um milagre. Esta calamidade, associada à tradição das Cavalhadas, é contada, popularmente, da seguinte forma: certo fidalgo, senhor de um belo palácio em Vila Franca do Campo, temendo os boatos que então circulavam de que estariam para acontecer novas erupções, ao lembrar-se do milagre da capelinha de São Pedro, receoso pelo seu palácio, pela sua vida e a dos seus, resolveu subir às montanhas da vila, juntamente com os mordomos do Espírito Santo, para rezarem em conjunto, prometendo que se o seu palácio, a sua vida e a da sua família fossem poupados a novos cataclismos faria o voto perpétuo de deslocar-se todos os anos no dia de São Pedro à sua capela, na Ribeira Seca, para louvá-lo e cantar-lhe passagens da vida do próprio santo.
Poupados que foram o palácio e a vida dos seus ocupantes, começou o fidalgo a cumprir todos os anos, no dia 29 de Junho, a sua promessa, sempre com a maior pompa e solenidade, vistosa e ricamente vestido, montado num belo cavalo, fazendo-se acompanhar dos seus vassalos e dos mordomos do Espírito Santo. Partindo de Vila Franca do Campo, dirigia-se primeiro à freguesia de Ribeira Seca e dali para a capela de São Pedro (a dois quilómetros da pequena vila), onde fazia a apresentação da embaixada que o acompanhava e declamava as loas cantadas à porta do templo. De seguida dava sete voltas rituais à ermida, interpretadas como os sete dons do Espírito Santo: sapiência, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor a Deus.
Com o correr dos anos o povo começou a juntar-se na capela de São Pedro para assistir ao ritual, começando também, grato pelos milagres do santo, a homenageá-lo nessa data, enfeitando-lhe o templo com hortênsias azuis e ofertando-lhe as tradicionais «alâmpadas» açorianas, constituídas por arranjos de flores naturais (hortências, agapantos, rosas-de-cacho) misturadas com as «novidades» de cultivo (maçarocas, pepinos, peras, etc.).
Como a devoção aumentava e o cerimonial das Cavalhadas se mantinha, a capela de São Pedro (do século XVI) começou a tornar-se pequena, acabando por construir-se uma nova igreja (séculos XVIII-XIX). Ainda hoje o seu interior continua a ser profusamente ornamentado com as «alâmpadas», a darem um colorido, um perfume e uma beleza especiais ao templo. Estes arranjos florais com frutos terão começado a ser concebidos por altura das primeiras Cavalhadas e do início do culto a São Pedro, constituindo uma oferta votiva do povo ao santo que tão festiva e singularmente se venera na Ribeira Seca.
Por morte do fidalgo, e no desejo de continuar a manter-se o voto perpétuo, o povo da Ribeira Seca chamou a si a devoção em honra do Santo Pescador. Assim, as Cavalhadas de outros tempos, onde desfilavam fidalgos e vassalos, deram lugar aos homens do campo (principalmente), na sua maioria residentes nas freguesias da Ribeira Seca e de Santa Bárbara.
A manter viva a remota e significativa tradição, o desfile (chegando a reunir cento e vinte cavaleiros, embora o seu número seja variável), sai do solar de Mafoma (palacete do século XVIII, onde está instalado o Museu do Chá) para percorrer em colorido cortejo no dia de São Pedro (patrono da Ribeira Seca e feriado municipal na Ribeira Grande) a pequena freguesia e as que lhe são vizinhas. Os cavaleiros desfilam pelas ruas em duas alas, com os trajos a contribuir para a originalidade da festa: camisa branca, calça branca com lista vermelha lateral, gravata vermelha, uma faixa também vermelha em banda sobre o peito, flores e grandes laços de fitas de cores colocados no peito e nos ombros. Na cabeça usam chapes altos pretos, adornados com objectos de ouro (principalmente fios, cordões e pulseiras) e diversos enfeites, entre eles minúsculas florinhas feitas de papel prateado. Numa das mãos levam um pendão vermelho com as letras SP (São Pedro) e na outra as rédeas do animal, enfeitado com uma espécie de xairel branco e laços de diversas cores. As Cavalhadas de São Pedro na Ribeira Seca chamam à localidade muitos dos habitantes de São Miguel e das restantes ilhas açorianas, bem como forasteiros idos um pouco de todo o lado.
Soledade Martinho costa
O tradicional chapéu usado pelos cavaleiros.
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.V
Ed. Círculo de Leitores
Fotos: Jorge Barros
Foge do sono
A lebre
Sem fomes
Nem amarras.
É Junho
Nas fogueiras
A arder
Em claridade.
Na boca
Das infusas
Há falas de ceifeiras.
Desenha-se o restolho
No timbre das cigarras.
Soledade Martinho Costa
O tempo teima
Em derramar sobre o meu corpo
As horas que se tornam dias.
Mas não rejeito o tempo
Rejeito, sim, o que me traz o tempo
O tempo que se desfaz no tempo
Sem que me traga a quietude que me ofereço.
Ata-me os braços
Tolhe-me o pensamento
E não tenho forma de alterar o tempo
O tempo que me prende e onde permaneço
Perdida neste labirinto
Onde esqueci meu nome
E não me reconheço.
Só conheço a demora que se esconde
E adormece de mágoa em meus ouvidos
E a lágrima que nunca me obedece
Que desliza em minha face e não responde
Por saber o quanto sei o seu sentido.
Só conheço no poema que se despe
E que o meu punho escreve com firmeza
O pesar de não ser mais como era dantes
Um tempo feito de paz e comunhão
Onde brilhava a esperança sempre acesa.
Tempo de datas e nomes e surpresas
Feito de beijos e risos e abraços
Onde nasciam os sonhos e a certeza
De haver na mesa a frescura do pão
E na lareira o ciciar das brasas.
Porque o afecto era o elo, era a magia
Era tudo o que se tem e se deseja
Sem mácula, sem dano, sem agravo
A unir as mãos sob a ternura
Sem sombra ou amargura nas palavras.
Pudesse
Dentro de mim abrir as asas.
Soledade Martinho Costa
A brancura do linho que se alinha
Salinas onde o Sol esquece o poente
Um brilho, a alvura de um lençol
Que o mar estende no chão
Como um presente.
São lágrimas do mar
Secas na fonte
Das tuas mãos tão sábias
E tão crentes.
São contas de um rosário
Que se aprende
No corpo das marés
E das correntes.
A alvura da neve nos meus olhos
Colinas de cristal na minha frente
É o travo do sal na tua boca
Quando os teus lábios beijam docemente.
Soledade Martinho Costa
Pezinhos de lã
Chega a madrugada
E o galo cantor
Lá do seu poleiro
Cocoró-cocó!
Canta a alvorada.
- Salta lá, pastor
Da cama para fora
Vamos ao trabalho
Que já está na hora!
E enquanto o rebanho
Solta no redil
Um balido manso
O galo cantor
Canta sem descanso:
- Cocoró-cocó!
Que vagar o teu
Acaso não viste
Que o dia nasceu?
E pronto, lá vão
Homem e rebanho
Mais o cão rafeiro
Por pedras e mato
Caminho do pasto
Passinho ligeiro.
Pezinhos de lã
A tarde pousou
Tremeluzem estrelas
No manto de anil.
Cucurica o galo
Baixo, no poleiro:
- Lá vem o rebanho
De volta ao redil
Já ouço o rafeiro
E a voz do pastor
Regressam a casa
A lida findou.
E muito lampeiro
Ajeita a cabeça
Debaixo da asa:
- Por hoje me calo
Diz o senhor galo
A noite chegou!
Soledade Martinho Costa
Do livro «O Bico-de-Lacre»
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