O culto penitente dos romeiros na ilha de São Miguel, nos Açores, tem a sua origem em 1522, quando, na madrugada de 22 de Outubro, um grande tremor de terra abalou Vila Franca do Campo originando a morte da maior parte dos seus habitantes, tendo ficado soterrados cerca de dois terços da vila. Após a tragédia, os sobreviventes terão ido em romagem a uma ermida sob a invocação de Nossa Senhora – eventualmente, a primeira a ser construída depois do terramoto. A romagem alargou-se depois a outras igrejas e ermidas dedicadas a Nossa Senhora, num percurso cada vez mais longo, até resultar no englobamento de todas as igrejas e ermidas onde se encontre um altar de Nossa Senhora. As romagens são compostas apenas por grupos de homens, a originar uma onda de penitência, oração e verdadeira solidariedade humana.
A volta à ilha, que decorre durante as sete semanas da Quaresma (a começar no primeiro sábado, ou, em casos mais raros, no domingo), inicia-se de madrugada (quatro horas da manhã) e termina no sábado seguinte à noite, ou no domingo de manhã, perfazendo cada grupo a peregrinação de uma semana – penitência religiosa que se verifica, nestes moldes, somente em São Miguel. Recentemente, na Terceira e Graciosa começaram a realizar-se pequenas romagens, sem que se efectue o percurso total ao redor de cada ilha.
Os vários grupos, saídos semanalmente das suas localidades de origem, percorrem diariamente no mesmo sentido toda a ilha, chegando a perfazer mais de cinquenta grupos, cada um deles a somar algumas dezenas de elementos, por regra divididos em duas filas, onde se juntam velhos, jovens e garotos acima dos nove anos de idade, reunindo um total aproximado de dois mil romeiros por ano, em que se incluem todas as classes sociais. Assim ordenados, visitam as igrejas e ermidas, chamadas outrora e ainda hoje as «Casinhas de Nossa Senhora», que se encontram situadas no percurso da sua peregrinação. Emigrantes açorianos radicados nos Estados Unidos e no Canadá costumam deslocar-se por esta altura a São Miguel com o fim de efectuarem a romagem. Em tempos mais recuados, alguns homens caminhavam descalços em cumprimento de promessas, penitência entretanto caída em desuso, enquanto o grupo vai entoando as orações em voz alta: padres-nossos e ave-marias.
Agasalhados em xailes (espécie de mantas de lã, na sua maioria de cor castanha escura ou preta, como manda a praxe), colocados sobre os ombros ou a cobrir a cabeça – que a chuva e o frio não têm por hábito poupá-los – transportam o indispensável bordão e o rosário com o respectivo crucifixo junto ao peito. Por cima do xaile usam o tradicional lenço rameado, carregando ás costas (sob o xaile) a «cevadeira» (saco), onde guardam os alimentos: pão, queijo, chouriço, carnes assadas, «massa sovada» e pouco mais, de modo a evitar o peso. Muitos dos homens, por penitência ou promessa, chegam a passar toda a semana apenas a pão e água, motivo pelo qual alguns deles não conseguem chegar ao fim da caminhada.
Cada grupo comporta dois «guias», bons conhecedores do caminho, que seguem na frente a ladear uma criança que transporta um crucifixo de madeira de vinte a trinta centímetros de altura, e o «procurador das almas», o último do rancho, a quem cabe receber os «registos» (pedidos) das orações em favor «das almas dos fiéis defuntos», feitos por particulares quando o grupo passa pelas povoações. A ele compete, também, somar as orações proferidas pelos romeiros ao longo do percurso (sempre pais-nossos e ave-marias) até perfazer o número de orações solicitadas.
As orações por alma dos defuntos só começam a ser rezadas já fora das localidades, depois de os romeiros terem procedido, primeiramente, às suas preces na igreja ou ermida do lugar, pedindo pela população, pela paz no Mundo e na família, pelos doentes e idosos, pelas crianças e jovens – e também, entre outras petições, para que «Nossa Senhora os livre dos abalos de terra, da fome, da peste, da guerra e de mortes repentinas». Aqueles que pedem ao «procurador das almas» orações por sua própria intenção ou pelos seus defuntos, terão de rezar também eles um número de pais-nossos e ave-marias idêntico ao número de romeiros.
Cada grupo conta ainda com o seu «mestre», ao qual é devida obediência, sendo ele que decide sobre todos os assuntos, além de escolher os «guias», os «ajudantes» e os «oradores», elementos que orientam e proferem as «saudações» e preces nas igrejas e nas ermidas, ajudando o próprio «mestre». Este é de tal modo respeitado que, no caso de algum sacerdote integrar o grupo de romeiros, acata também ele as suas ordens. O «contramestre» faz igualmente parte do grupo, sendo aquele que substitui o «mestre» por motivo de doença ou outra qualquer impossibilidade.
Ao passarem nas povoações os romeiros entoam o hino da ave-maria, enquanto se dirigem à igreja ou ermida da terra. Se a porta do templo se encontra aberta, procedem ao cerimonial próprio da entrada, rezando, louvando o padroeiro da igreja, Nossa Senhora ou a Cruz, e entoando versos de teor religioso, que diferem de grupo para grupo, de acordo com a sua preferência, enquanto a música é comum a todos os grupos. No interior do templo, ajoelham, tornam a rezar, fazem os seus pedidos e voltam a entoar versos adequados à saída da ermida ou da igreja, onde, por vezes, é celebrada missa solene. Se a porta do templo se encontrar fechada, os romeiros apenas entoam de pé as orações e os versos de saída, repetindo as petições, seguindo-se a entoação do hino.
Quando a noite cai, os romeiros, que se tratam entre si por irmãos, são convidados pelas famílias residentes nas povoações para tomar banho, comer e dormir. No caso do grupo ser numeroso, parte dele pernoita, geralmente, no salão paroquial ou na Casa do Povo das respectivas localidades. Na madrugada seguinte, lá estão, a pé, para prosseguir a caminhada de penitência devota e piedosa ao redor da ilha.
São os romeiros das brumas de São Miguel, a atravessar os povoados e a levar consigo a fé, a gratidão e o pedido de protecção ao alto dos Céus, pelo Mundo e pelos homens, sem esquecer os vulcões, os terramotos e a memória dos seus mortos.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol.III
Ed. Círculo de Leitores
Foto inicial: Jorge Barros