Um grotesco chapéu
Posto sem arte
Um vestido sem cor
No corpo magro
E uma data
Perdida além do tempo
No jornal que espreitava pelo saco
Sempre agarrado à curva do seu braço.
Alcunhavam-na de louca
E o rapazio
Atirava-lhe pedras e chalaças.
Mas perante o escárnio e o desdém
Os seus gestos
Eram lentos e serenos
Embora o espanto
Marcasse as suas faces.
Mal a noite caía
Ela chegava
No seu passo hesitante
Quase a medo
Ao recanto mais escondido do jardim.
E ali ficava
Submersa pelas sombras
Nesse jeito suspenso
De quem espera
Um encontro marcado com alguém.
Não sei se adormecia
Se sonhava
Apenas sei que mal a madrugada
Vinha acordar de Sol o seu segredo
Ela partia
……………………….
Sabendo que voltava.
Soledade Martinho Costa
À míngua da chuva/ que os não veste/ ao Sol se abandona/ a flor e o fruto. / Só da cigarra vem/ o som que despe/ no calor que se abriga/ em seu reduto.
DESABAFO: Exemplo de um desabafo bem sucedido – Certo político terá desabafado ao sair de uma reunião particularmente difícil com a senhora Thatcher, que acabava de conversar com os olhos da Greta Garbo e a boca de Estaline. Esse desabafo depois correu mundo. Cada político adaptou-o à sua maneira. Mitterrand, por exemplo, parece que trocou a Garbo por Marilyn. A boca, porém, essa foi sempre a mesma.
SUGESTÃO: Não se deve dar, só se alguém pede. Oferecê-la devagar e retirá-la logo que sobeje. Difícil a arte de sugerir. Entre a discrição e a sugestão, joga-se a arte suprema. É por isso que Bashô continua vivo. Relembro a lição da sugestão. Um discípulo de Bashô apresentou o seguinte haikur. Uma libélula, tirai-lhe as asas, uma pimenta. Ele sugeriu de outro modo: uma pimenta, colocai-lhe asas, uma libélula. Mas isso era o mestre dos mestres, e a sugestão foi pedida pelo discípulo.
DISPARATE: Fazer o díspar, o que não se insere na ordem, não entra na norma nem vai ao encontro do sentido comum. Tenho alguma experiência. Dizem que um parente meu, bastante pobre, no tempo do muito barato, ganhou trinta contos numa cautela. Seria o mesmo que receber agora 3.000, o que bem esticadinho daria para um fatinho, um transporte próprio, os alicerces duma casinha, e ainda um pequeno mealheiro, para quando fosse velhinho. Sim, ele comprou um Cucciolo, cumpriu essa parte. Nele fazia andar a malta toda da rua. Mas em vez da casa e do fato, e do mealheiro, comprou um acordeon para ouvir os outros tocarem, pagou vinho para todos beberem durante três anos, e com o resto comprou uma nova cautela. O disparate só aconteceu porque a segunda estava branca.
ESCÂNDALO: Ilumina a minha vida um grande escândalo de que tive conhecimento na infância. Certo padre era um bom padre. Carinhoso, querido, poeta, religioso. A igreja enchia até à porta. Aconteceu que engravidou várias raparigas ao mesmo tempo, e que algumas delas se iam suicidando.
APLAUSO: Os primatas aplaudem. Batem as palmas e fazem ruídos com os lábios, quando estão contentes. Também consta que pateiam quando estão desagradados. Se usam esse critério, e nunca se enganam, devem ser bastante sinceros.
EXPECTATIVA: O que vai acontecer às mega-superfícies. Das duas uma: ou servem para se comprar demais e sobrevivem, ou compramos só o que podemos e desaparecem. Mas se sobrevivem, das duas uma: ou passamos a poder comprar muito mais do que pensamos, ou são suportadas pelo Estado para servirem de abrigos, em caso de guerra nuclear. Não sou eu quem o diz. Disseram-me, quando me encontrava no interior duma daquelas caves, completamente desorientada, que a ordem provinha da NASA. Disseram-me que os subterrâneos dos Hipers não são garagens, são lugares de protecção. Haja muitos, então. Pois das duas uma: ou já estamos comprados ou já estamos vendidos.
PREOCUPAÇÃO: Devemos deixá-la para trás. Os portugueses dizem: deve-se deixar para amanhã o que não se pode fazer hoje. Mas os alemães vão mais longe e dizem aproximadamente assim: Senhor, faça que anoiteça. O amanhã virá por si.
EMOÇÃO: Meu Deus, estão a dizer que vem aí a Televisão! O meu filho aqui está, morto, por causa de uns tiros da polícia, mas se vem a Televisão, rápido, vizinha, traga-me os meus brincos de oiro.
AMOR: Açores, Setembro, uma enxurrada estival. A mulher agarrada às pernas do marido. Jesus, Jesus, que me leva a água! E o marido: larga-me, mulher, que se não eu vou também. Então a mulher abriu a mão e foi na corrente de água. O anjo do amor estava do outro lado a esperá-la.
SAUDADE: Sentimento muito bom. Faz os emigrantes voltarem à sua terra natal e construírem casas confortáveis. O parque habitacional português seria muito mais pobre se não fosse esse sentimento melancólico. Faz vender azulejos, discos, cassetes e vídeos. E ajuda muito, mas mesmo muito, quando lá fora se quer explicar onde fica Portugal.
SONHO: Que sonho? Sonhar acordado: já tudo foi dito, desde que comanda a vida, até que a descomanda. Prefiro o sonho dormido. Esse sim. No meio do lixo do pensamento, lá brilha um caco de prata. A pessoa debruça-se sobre o caco, e o caco é uma chave. Acontece duas ou três vezes na vida. Cuidado com a chave que se acha.
MEDO: A pessoa vem do medo e vai para o medo. O resto e a coragem são passagem…Devemos mantê-lo, diante das cobras vivas, das más-línguas, mas sobretudo perante os indiferentes. Ultrapassar o medo pode ser o objectivo da vida. O medo que mais me tocou li-o em «Os Canhões de Navarone». Havia por lá alguém que tinha muito medo, que o superou, e logo esse, quando o tinha superado, foi atingido. Creio que era assim. Nessa altura, pensei que a história do medo duma pessoa é exactamente igual à história da vida da pessoa.
INTIMIDADE: Conheço muito bem. Princesas nuas em capas de revista, dizendo segredos aos ouvidos dos amantes. Mas há outras espécies de intimidade, mas dessas só se deve falar na intimidade.
FIGURA PÚBLICA MAIS: O senhor Francisco contou-me que ao deixar a sua casa no Alentejo, nos anos 40, o pai deu-lhe a bênção e disse-lhe: Francisco, não deixes o teu nome vir no jornal. Nem por bem nem por mal. E ele gaba-se de ter cumprido a promessa que fez ao pai.
FIGURA PÚBLICA MENOS: Os pais das figuras públicas menos disseram-lhes exactamente o contrário e elas cumpriram.
CALENDÁRIO: Há os que têm paisagens, os que têm lindos cães, figuras do cinema e até da política. Por mim, prefiro os que são usados por serralheiros e camionistas: raparigas rechonchudas, olhos enfiados no destinatário, rabos nus. Não, não me espantavam só na infância, que já vai bem longe. Encontrei um calendário desses, a preceito, há pouco, numa garagem de automóveis. Para que serve, senhor Mateus? «Ora, ora, para matar o tempo». Aí temos para que serve um calendário.
Ideia e coordenação: Soledade Martinho Costa
In Notícias Magazine/1999
Nota - Quando convidei Lídia Jorge para responder a este «P.M.P.», recebi um telefonema seu «para trocarmos impressões». Eu estava no Algarve a Lídia em Lisboa. Dias depois, chega-me o texto, que deixo hoje no «Sarrabal». Uma delícia! Relendo-o, ao fim de todos estes anos, continuo a ter a mesma opinião: delicioso!
Já conhecia Lídia Jorge de alguns eventos, já tínhamos conversado. Não esqueço a sua preciosa contribuição escrita quando da saída do meu livro «6 Histórias Numa História de Todas as Cores», cujos direitos autorais foram direitinhos para as crianças do CEBI, Instituição de Solidariedade Social localizada em Alverca do Ribatejo.
Nestes últimos anos não nos temos visto nem falado muito, é verdade. Mas o importante é que a amizade se mantém – acrescida da minha grande admiração pela sua vasta obra. Obra que lhe valeu, até agora, 14 dos mais importantes prémios literários atribuídos em Portugal e no estrangeiro. Vejamos: Prémio Malheiro Dias/ Academia de Ciências de Lisboa; Prémio Literário Cidade de Lisboa; Prémio Dom Dinis/ Fundação Casa de Mateus; Prémio Bordalo de Literatura da Casa da Imprensa; Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores; Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores; Albatroz/ Prémio Internacional de Literatura/ Fundação Gunter Grass; Prémio Speciale Giuseppe Acerbi, Scrittura Femmenile; Prémio da Latinidade, João Neves da Fontoura/ União Latina e Prémio Jean Monet de Literatura Europeia, Escritor Europeu do Ano.
Natural de Boliqueime (a dois saltinhos da minha casa, em Montechoro, Algarve), bonita, gentil, discreta, os seus livros, além do Brasil, estão traduzidos em mais de 20 línguas. E não se esqueceu das crianças. Para elas, Lídia Jorge escreveu O Grande Voo do Pardal e Romance do Grande Gatão.
Querida Lídia, deixou-lhe esta surpresa (tão actual como há 12 anos) e «um abraço de escolha», como escreveu na dedicatória do seu (meu!) livro Notícia da Cidade Silvestre. Até breve (espero)!
S.M.C.
Neste dia, senhores, meditemos a fundo:
Na guerra
Nos crimes
Nos horrores
Que nós, a humanidade
Temos doado à Criança
Em todo o Mundo.
A fome
O medo
A humilhação
A falta de instrução
A orfandade.
Será só Mal
O que temos na vontade
De oferecer à mão pequena que se estende?
Meditemos a fundo
É tempo de fazer parar o monstro.
Saibamos receber cada criança
Que venha a este Mundo
Sem lhes traçar no corpo uma cruz negra
Sem exigir mais pranto nos seus olhos
Que um só vagido seu seja um Direito
À Vida, à Liberdade e ao Amor.
Transformemos as cinzas em flores
É preciso acordar a Primavera
Que as crianças desejam ver florir.
Por isso, meditemos, meus senhores
Meditemos a fundo, que é Urgente
Deixá-las correr num Mundo Novo
Atrás de borboletas com asas de mil cores.
Soledade Martinho Costa
. ANIVERSÁRIO DA MORTE DE N...
. VARINAS
. VERSOS DIVERSOS - O CONSE...
. LEMBRAR ZECA AFONSO - 37 ...
. A VOZ DO VENTO CHAMA PELO...
. CARNAVAL OU ENTRUDO - ORI...
. REGRESSO
. 20 DE JANEIRO – SÃO SEBAS...
. UM OLHAR SOBRE A PAISAGEM...
. AS «JANEIRAS» E OS «REIS»...
. BLOGUES A VISITAR