À MARIA ISABEL FIDALGO (IBEL), pela dedicação e amor que tem dispensado aos seus alunos - e aos seus alunos pelo respeito e amor que sentem por ela.
O convite surgiu da Câmara Municipal de Loures, com a qual vinha colaborando no âmbito das escolas do Ensino Básico do Concelho e também com a Biblioteca Municipal, efectuando sessões de animação de leitura.
Fomentar nos mais jovens o gosto pela leitura era, e continua a ser, uma prioridade. Dessa vez, teria de me deslocar à Biblioteca Municipal D. Dinis, situada na Pontinha, (freguesia, actualmente, pertencente a Odivelas). Nela me aguardariam as crianças de determinada escola para assistir à sessão. Não conhecia a Pontinha. Calhou-me um bairro a que hoje se dá o nome de «problemático». Um bairro da periferia, de casas e quarteirões rigorosamente idênticos, ou seja, um bairro de características sociais.
Não sou medrosa. Nunca fui. O que me assusta, assenta no poder inimaginável da Natureza: muita chuva, muito vento, muito nevoeiro, muita trovoada, muito frio, muito calor. A isto, junto os sismos, o mar e o fogo. Sempre me conheci a recear que a Natureza, sem aviso prévio – como é seu costume –, agudize a sua força. Aí, pobres de nós! Estou bem lembrada das grandes cheias da noite de 24 para 25 de Novembro de 1967, que devastaram Alverca do Ribatejo, terra onde resido temporadas mais ou menos prolongadas: enxurradas de lama a invadirem as casas e as ruas, dezenas de mortos. Muitas lágrimas, muito luto, a tristeza e a saudade, apesar dos muitos anos decorridos, coladas, ainda, às recordações.
Na minha ida à Pontinha, deixei o carro no início da rua onde se situava a biblioteca. Gosto de andar a pé. Uns metros à frente, um grupo de jovens a rondarem os 16, 20 anos. Alguns sentados sobre um muro, outros de pé. Seriam, talvez, uns sete ou oito. Na rua deserta, fácil foi darem pela minha aproximação. Ao passar-lhes ao lado, ouvi palavras pouco lisonjeiras. Vi hostilidade nos seus rostos. Agressividade e desafio nos seus olhos. A atitude provocatória de cuspirem no chão, várias vezes repetida, não dava margem para dúvidas. Não senti receio – mas duvidei, depois, se deveria tê-lo tido ou não…
Chegada à porta da biblioteca, um edifício novo, reparei que muitas crianças, de diferentes idades, andavam por ali. Ao verem-me, cochichos segredados, risos, agitação. Entrei e subi ao primeiro andar. Recebida pela bibliotecária, apercebi-me, de imediato, da sua atrapalhação, do seu nervosismo quando me viu. «É a senhora escritora Soledade Martinho Costa, não é?» – Perguntou, voz trémula, as mãos enroladas uma na outra. «Sim, sou eu!» – Respondi. E logo o motivo de tanto nervosismo: «Eu nem sei como dizer-lhe, escritora, nem como pedir-lhe desculpa, mas as crianças da escola que deviam vir à sessão, dizem que não querem assistir!». Um pouco surpreendida, como é natural, sosseguei-a: «Não se preocupe. Se não querem assistir ninguém as vai obrigar. Eu estou aqui, foi isso que combinei com a Câmara, o resto, logo se vê…». A jovem ainda esclareceu: «Sabe, algumas das crianças são repetentes na escola. Duma maneira geral, são consideradas difíceis!». Repeti: «Eu vou ficar aqui durante duas horas. O tempo, exactamente, que deve durar a sessão. E não se preocupe, já lidei com outros problemas. Vou dando uma vista de olhos aos livros…». Pareceu mais calma. Entretanto, na escada não parava o rebuliço, os risos, as vozes. Por vezes, mesmo, um rápido fechar e abrir da porta. Mas uma voz, a de um garoto mais crescidinho, 12, 13 anos, a destacar-se, provocatória, das outras: «Eu não entro. Não quero assistir à sessão!»
Escolhi alguns livros e sentei-me na cadeira que me estava reservada. Na frente, uma pequena mesa e um ramo de flores. Uma atenção bonita, perfumada e colorida. Defronte, algumas filas de cadeiras vazias.
Lembrei-me de um outro episódio, passado na Biblioteca Municipal de Loures. Um professor aproximou-se de mim, também ele algo receoso, para me dizer quase de lágrimas nos olhos: «A senhora desculpe, sim, mas a minha turma, é considerada a pior da escola. Estou preocupado com a sessão. Ainda esta manhã, um dos alunos, ao passar por mim num dos corredores, me cuspiu na cara!». Fiquei horrorizada. Sobretudo, fiquei com muita pena daquele pobre professor. Tão infeliz, tão impotente, perante o desamor, a agressividade dos seus alunos. Talvez não tivesse sido descabido da minha parte perguntar-lhe se, em alguma ocasião, teria tentado falar com os alunos um de cada vez, a sós, sem os assustar, sem os obrigar, como se faz quando os amigos que moram no nosso coração precisam de ajuda ou de ouvir uma palavra de compreensão e de afecto. Mas não houve tempo. A sessão estava prestes a começar – e nem sei se me atreveria a dar conselhos a quem me parecia estar cansado, ou ter esgotado todos os seus argumentos. Afinal, como por magia, a sessão correu normalmente. Falaram mais os alunos do que eu. Que me lembre, li apenas um brevíssimo texto.
E aqui estávamos, eu a mirar os livros, a bibliotecária a passear entre as estantes, organizadíssimas, diga-se de passagem. É por esta altura (uns 15 minutos passados), que a porta abre devagarinho e assoma por ela a cabeça de uma menina. Por cima do seu ombro a cabeça de outra menina. A indecisão, o receio no olhar de ambas. Outras cabeças, lá para trás, espreitavam também. Achei por bem falar: «Se querem entrar, tenho muito gosto em recebê-las. Podem sentar-se!». Assim fizeram.
Minutos depois, entraram mais duas ou três crianças. Sentaram-se junto das primeiras. Risinhos, falas segredadas entre si. Mas bem comportados, todos eles. E entraram mais. Só uma voz sobressaía das restantes: a do rapazinho que teimava em afirmar, no patamar da escada, junto à porta: «Eu não entro. Não quero assistir à sessão!».
Aos poucos, as filas de cadeiras foram ficando ocupadas. Quando a «assistência» estava composta, coloquei os livros de parte e informei, olhando o meu relógio de pulso: «Fico contente por ter, finalmente, audiência para poder dar início à sessão de animação de leitura que me trouxe até aqui, à Pontinha. Mas tenho a dizer-vos que perderam algum tempo…Já não tenho as duas horas previstas para conversar com vocês; e a culpa não é minha, como sabem…». Nesta altura, o tal garoto, agora sozinho, abre a porta e interrompe: «Eu é que não entro. Não quero!». Levantei-me e dirigi-me a ele: «Muito bem. Não queres entrar, não entras. Mas não tornas a importunar os teus colegas. Tens um minuto para te decidires: ou entras ou não voltas a abrir esta porta!». Não entrou. Não entrou nesse minuto. Entrou no minuto seguinte. Fechou a porta e foi sentar-se na última fila das cadeiras.
Dei início à sessão, sem utilizar livros – principalmente os meus. Preferi (como sempre, aliás) conversar com os garotos. Há tanto para indagar, há tanto para saber, há tanto para ouvir, há tanto para dizer! E gerou-se uma conversa entre amigos, um clima onde a cumplicidade faz, de repente, surgir a simpatia (ou a empatia), a camaradagem, o à-vontade, o interesse comum, o afecto, a necessidade de comunicar, de saber perguntar, de saber responder, de ser ouvido e de saber ouvir. Conversas cruzadas, assuntos vários, projectos, desejos, sonhos…
Aquelas crianças, reconciliadas consigo próprias, estavam ali, na minha frente, animadas, atentas, faladoras. Ouvi-las era escutar o bater do seu próprio coração. Mas aquelas crianças precisavam de aprender algo que perdurasse nas suas recordações. Que lhes fosse útil para a vida. Foi por isso que interrompi a conversa para olhar, uma vez mais, o meu relógio. Disse apenas: «Acabou a sessão. Já perfiz as minhas duas horas. Vocês sabem que a culpa não é minha, mas vossa. Perderam muito tempo e fizeram-me perder o meu. Está na hora de terminar!». Não encontro palavras para descrever o que se passou a seguir: «Não, não vá ainda!»; «Por favor, fique mais um bocadinho, fique!»; «Senhora escritora converse mais com a gente, não vá embora!»…
E veio a liçãozinha de moral: «Bom, eu fico. Mas reparem: vocês não queriam assistir à sessão sem haver uma razão que o justificasse. Afinal, gostaram. Para a próxima vez, quando outro autor vier aqui à Biblioteca, não voltem a fazer o mesmo…»
A conversa continuou – e sempre acabei por ler um dos meus textos. Agora, sim, a sessão tinha finalizado. Foi nessa altura que aconteceu uma coisa inesperada, especial, genuína, linda, linda, até hoje e para sempre inesquecível, que encheu o meu coração de ternura e de uma comoção sem limites: num impulso, como se de um só corpo se tratasse, todas aquelas crianças apelidadas de difíceis, de «problemáticas», se ergueram e, de pé, ofereceram-me a mais generosa, a mais sincera e comovente salva de palmas que alguma vez recebi (e já recebi algumas)!
Não voltei à Pontinha. Mas nunca mais vou esquecer aquela quase aventura, aquelas crianças que me deram um momento inolvidável na minha vida de autora para a infância. É sempre com alguma emoção que recordo este episódio, que tem já alguns anos. Foi o mais significativo, o mais bonito de quantos aplausos já me dedicaram – e nunca comparável aos já recebidos ou àqueles que, eventualmente, venha, ainda, a receber!
Soledade Martinho Costa
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