E a chuva cantou
Na face das águas
E os rios cresceram
Galgaram as margens
E as aves de espanto
Soltaram as asas
E as crianças todas
Sob um céu de anil
Atentas
Caladas
Escutaram palavras
Vestidas de novo
Um conto de fadas
Estava-se em Abril.
E anões e gigantes
Bruxas e duendes
As fadas do mal
As fadas do bem
Príncipes
Pastores
Mendigos e reis
Trocaram de fato
Ideias e leis.
E os ventos sopraram
Varreram
Uivaram
As nuvens toldaram
O azul dos céus
E os homens todos
Atentos
Ousados
Sentiram-se irmãos
Teimaram palavras
Vestidas de novo
Chegaram os corpos
E deram as mãos.
E riu-se
Chorou-se
Mas uma paz doce
Ficou
Instalou-se
Ganhou direcção.
Hoje
A claridade
Permanece viva
Constante
Total
Perdeu-se
Ganhou-se
Como é natural
Porém
Conquistou-se
O que era vital.
Os anos passaram
Outros mais virão
Dizer o futuro
Quisera e não sei.
As crianças todas
Que entraram na História
Por nós e por elas
Em tempo o dirão.
Soledade Martinho Costa
(25 de Abril de 1985)
Rejeito em mim
O peso das palavras descontentes
Aquele que nos tira o sono e o engenho
De ultrapassar esta cortina
Urdida em nevoeiro
Que se abateu aos poucos
E hoje cobre por inteiro
O meu País
Meu campo por lavrar
Desprovido de espigas e sementes.
O Homem
Não soube semeá-las
Não houve Primavera
Só Inverno
A governar sozinho o calendário.
Mas é no tempo
Nesta raiz de espera
E de tormento
Que celebramos
O Sol da Liberdade.
Dela não retiramos o pão
Não distribuímos a riqueza
Mas respiramos
A vontade e a certeza
De repetir a esperança
De repetir os cravos
Os versos da canção.
Sonhar é atributo
Necessário:
Sonho nem sempre é ilusão.
Os dias hão-de vingar
Vestidos de futuro
Justo, fraterno, solidário
Hão-de chegar
Num outro aniversário.
Celebrá-lo-emos, então
Comparável à árvore
Onde se oferece o fruto
Ao alcance tão-só
Da nossa mão.
Soledade Martinho Costa
Que caminhos busquei
Que mos negaram
Que muros tacteei
Que mos ergueram
Que mundos descobri
Que mos calaram
Que algemas me impuseram
Que as vesti.
Em que espelhos
Revi a minha fronte
Em que sonos dormi
O meu cansaço
Em que chão
De escravos e de donos
Coloquei os poemas
Com que dantes
Meu punho virgem
Vestia de miragens.
Em que céus
De fábulas e contos
Em que sonhos
Crenças e vontades
Respiro ainda o milagre
Com que faço
Resplender
Com a luz dos diamantes
A escuridão
Dos dias calcinados.
Soledade Martinho Costa
Quando a noite se deita nos telhados/ e as casas adormecem sob a lua/ vem o Tejo vogar/ de rua em rua/ a perfumar a vinda da manhã. / Sonha-se então as mãos sobre um piano/ a percutir acordes de Chopin.
S.M.C.
DESABAFO: Pode ser um acto de desespero ou de puro egoísmo. Muitas vezes, desabafamos para cima das «vítimas» inocentes coisas que não conseguimos resolver ou vomitamos outras que não chegámos a digerir. Para um escorpião como eu, o desabafo é um alívio que tem de ser resolvido rápido, senão pode-se transformar em algo perigoso, que leva anos escondido bem cá no fundo e é expelido quando menos se espera. E nem sempre na altura certa!
SUGESTÃO: Gostaria de ter a sabedoria que observo tantas vezes nas pessoas que conseguem dar uma ordem mascarada de «sugestão». É uma palavra dúbia, que abre caminho para outros fazerem o que nós não sabemos ou não queremos arriscar. Tem o lado positivo de dar ideias a quem as não tem ou e simplesmente, as mantém adormecidas.
DISPARATE: Basta ligar o televisor e ouvimos logo uma série deles. O pior é que têm imagem! É uma palavra rica em diversificação de significado. Há os divertidos, os comprometidos, os sem graça, os com graça, os inteligentes, os positivos, os negativos e também os que são só disparates.
ESCÂNDALO: Não queria estar metida em nenhum. Envolve muita maledicência, falta de privacidade, invasão dos recantos íntimos das vidas de cada um. Para me tornar conhecida ou badalada, não, decididamente, não gostaria que me empurrassem para um escândalo.
APLAUSO: Quantas vezes sou surpreendida em plena concentração, num sinal de difícil execução, pelo ruído dos aplausos. Pode e é muito agradável ser-se aplaudido, mas, às vezes, são extemporâneos. Capazes, até, de estragar uma boa «performance». O aplauso silencioso é dos mais agradáveis. O sentir a atenção respeitosa da assistência (se possível, quanto mais silenciosa melhor) é das coisas gratificantes que um artista aprecia e retribui partilhando o prazer e também o esforço que representa pisar um palco.
EXPECTATIVA: É linda a expectativa de uma grávida a imaginar como será a criança que se está a forma dentro dela! Expectativa hoje estragada pelas ecografias. Mas ainda há mães que, ao fazê-las, pedem que não lhes seja divulgado qual o sexo. Recordo-me da escolha (prematura) dos nomes: se for menina, se for rapaz…
PREOCUPAÇÃO: É delas (preocupações) que se formam e desenvolvem as depressões, que provocam a ingestão de medicamentos, muitas vezes, para quê? Conheço pessoas que as inventam para terem com que se ocupar. É um sentimento muito inquietante, às vezes verdadeiro e até razoável, outro, perfeitamente inútil. À partida, não tem solução. Ou melhor, tem uma de que ninguém gosta: esperar.
EMOÇÃO: Confundo-a muito com a sensibilidade, que está sempre a ser estimulada pela minha profissão de músico. Há emoções fortíssimas ligadas à dor e à alegria, ao prazer e ao sofrimento, partilhadas, ou, simplesmente, vividas individualmente, mais introvertidas, mas não menos sentidas. Gosto de ser emotiva, digo-o sem vergonha nem pudor.
AMOR: Luís de Camões cantou-o, que mais posso acrescentar? Palavra tão cruelmente tratada! Conheço poucas que tanto pontapé e más interpretações tenham tido como esta e outras derivadas: amada, amante, amantizada, etc., etc.
SAUDADE: Palavra nossa, Portuguesa, sem tradução possível. Acompanha-me sempre que saio do meu País. Persegue-me em sonhos. A maior parte das vezes não se refere a pessoas, mas a situações: o Pôr-do-Sol visto da minha varanda, a cor do mar no Outono, o riso dos meus netos, o som do meu piano, o conforto da minha cama. Ligada pela sua «repetição» ao fado, de que gosto quando a poesia serve a música e vice-versa, principalmente quando as duas são ainda melhoradas pela interpretação de quem o canta, e cito: Maria Teresa de Noronha, Carlos do Carmo, Vicente da Câmara. Com eles, a saudade liga bem com o fado, e o fado não é prejudicado pela sua velha versão das vielas e dos amores não correspondidos.
SONHO: Gosto do «Sonho de uma Noite de Verão», de Mendelssohn, e gosto muito dos sonhos quando são bem fofinhos, com pouca gordura e pouco açúcar. Sonhar é outra coisa. Com os olhos fechados é um tema que levaria horas a desenvolver, mas isso é para os especialistas. Com os olhos abertos gosto mais, mas a vida já me ensinou que sonhar pode ser perigoso se não se tem os pés bem assentes no chão. Hoje, porém, com tantos fenómenos estranhos a ocorrerem na Terra, o chão já não é firme para ninguém… Por isso, é melhor fazer só alguns projectos. Mesmo assim, a curto prazo.
MEDO: Quando sinto um arrepio frio na espinha, um zumbido nos ouvidos e uma sensação de vertigem… pode ser medo. A falta de segurança dentro da própria casa, na rua, nos transportes, pode provocar o que descrevi mais vezes do que seria para desejar.
Existe ainda um outro tipo de medo: o de falhar. É humano, eu sei, mas não gosto e quanto mais envelheço, ou antes amadureço, mais receio tenho que me aconteçam percalços, que às vezes acontecem imprevisivelmente. Como professora, também tenho medo. Ensinar é terrivelmente importante e difícil. Está muitas vezes nas nossas palavras e até nos nossos actos e atitudes o destino de jovens que confiam em nós. É complicado ter-se o sentido da responsabilidade… Dá um medo!
INTIMIDADE: Se pudesse enfiava-me numa armadura, mas não de ferro! Preservo muito a minha intimidade e sou suficientemente pouco curiosa para respeitar a dos outros. Era incapaz de ter uma profissão que tivesse a ver com a vida privada de cada um. No entanto, não posso negar que desligue o telefone quando me vêm contar «fofocas», um brasileirismo muito em voga que descreve bem a palavra portuguesa «bisbilhotice»…
FIGURA PÚBLICA MAIS: Se for política, passa mais depressa de moda e de 1ª página, do que a figura pública de alguém que dedicou a sua vida a produzir uma obra que seja intemporal e que vingue através dos tempos. Para mim, são os génios que coexistem connosco e nos ajudam a acreditar que o que é realmente bom, alguma vez vai ser reconhecido. Infelizmente, muitas vezes só postumamente são consagrados.
FIGURA PÚBLICA MENOS: A meteórica, com êxitos fáceis, mas efémeros.
CALENDÁRIO: Desde que me lembro, tenho vivido dependente de um calendário: o mês dos meus anos – sempre mais um –, os dos anos dos meus filhos, dos netos, familiares e amigos; as Festas: Natal, Páscoa, de Família – cada vez mais comerciais e menos familiares –; as datas dolorosas, que sempre se repetem também, e algumas nem com o tempo se diluem, e o dia, o dia inexorável, das épocas das aulas, dos exames, das reuniões, das audições a que, no meu caso, ainda se juntam as dos concertos – que raramente são definitivas – ; as das viagens, das férias – que de ano para ano vão encurtando –, um nunca acabar de situações que fazem passar a grande velocidade as folhas do calendário.
Autoria e coordenação: Soledade Martinho Costa
In Notícias Magazine/1999
Nota. - A publicação deste texto constituirá, certamente, uma surpresa para si, minha caríssima Olga! E acredito que vai gostar de o reler…
Agora, uma confissão: recorda-se de me dizer que tinha feito um belo quadro com os meus posters das quatro Estações e o havia colocado no quarto das suas netas? Pois copiei a sua ideia! Escolhi um fundo amarelo-torrado e um caixilho azul, as cores predominantes do quarto do meu filho na casa do Bom Velho de Cima. Lá o coloquei. Ficou, realmente, bastante bonito! Aqui, na casa de Alverca do Ribatejo, possuo os originais: quatro quadros (sem os poemas, é óbvio) pintados a óleo sobre tela, do meu saudoso e querido Amigo, António Pimentel (Tópi para os amigos) – falecido a 24 de Abril de 1998.
Um beijinho muito afectuoso!
S.M.C.
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