Quinta-feira, 30 de Setembro de 2010

COISAS DA VELHA DO ARCO - AS ÁRVORES MORREM DE NOITE

   

Não acredito quando alguns autores de obras para a infância afirmam que os seus livros se destinam a leitores dos 8 aos 80 anos. Ou, até, aos 90, caso recente de Miguel Sousa Tavares com o seu novo livro «Ismael e Chopin».

 

Acredito muito mais que um autor, ao iniciar um texto ou um livro, deva saber de antemão qual vai ser o seu destinatário: se uma criança de 8 anos, se um adulto de 80. As razões são muitas: na criança, há que ter em consideração o tema, o seu vocabulário ainda pouco enriquecido, os seus incipientes conhecimentos linguísticos, gramaticais, literários, e a ilustração, como complemento imprescindível dessa faixa etária. Embora saiba, também, que um senhor de 80 anos possa achar graça a esse mesmo livro. Sei, ainda, que existem excepções. Uma criança de 8 anos pode ter a acuidade e a capacidade para entender um texto para adultos, enquanto uma pessoa de 80 pode apreciar um livro para crianças. São coisas absolutamente diferentes, parecendo iguais.

 

Vem isto a propósito de uma «história» que vos vou contar. No meu entender, uma «história» para adultos. Para eles a escrevi.

Começa assim:

 

Era uma vez uma terra do concelho de Vila Franca de Xira chamada Alverca do Ribatejo. Hoje uma cidade, mas na época em que tudo aconteceu, não passava de uma pequena vila. Nessa terra existia uma longa estrada de terra batida. A seu lado, corria o canto transparente do rio Cró-Cós. Quer a estrada quer o rio, ladeados de choupos, que moravam ali há muitos, muitos anos. Tantos, que as pessoas da vila, geração após geração, se foram habituando à sua presença e à sua voz. Como se os choupos fizessem parte da família.

 

Se eram muitos? Sim eram muitos. As três fieiras somavam umas boas dezenas: duas ladeavam a estrada, uma delas rés ao rio, a outra, a terceira, ladeava o rio do outro lado das terras de cultivo.

 

Quando as pessoas passavam por essa estrada, punham-se à conversa com eles. Os choupos, por sua vez, contavam-lhes então a sua alegria por estarem ali, a cobrir de sombra e rumorejo a poeira da estrada. Depois, as pessoas seguiam, às suas vidas, os choupos acenavam os ramos num gesto de despedida e marcavam um novo encontro para outro dia.

 

No Outono as folhas dos choupos tomavam a cor do oiro e deixavam-se cair, num embalo, sobre a terra. Nessa altura, ofereciam às pessoas da vila um tapete estaladiço e fofo ao longo da estrada. Os ramos, esses, mal espreitava o Inverno, nus, erguidos ao céu numa prece, pareciam tiritar de frio, a pedir o regresso dos seus vestidos verdes. E contavam às pessoas a impaciência da sua longa espera. Para os consolar, elas diziam que não. Que o tempo passava muito depressa.

 

Quando a Primavera se anunciava no voo da primeira andorinha, que alegria para os choupos! Era vê-los num alvoroço a vestirem as suas grandes copas. A colocarem uma folha aqui, outra acolá, ao longo dos ramos. Folhas de um verde muito claro, a espreitarem lá dos troncos o céu, a terra, a estrada, o Mundo, o ciclo de uma nova vida.

 

As pessoas passavam, sorriam, davam-lhes as boas-vindas e pensavam que durante o Verão a sombra frondosa dos velhos choupos voltaria a proteger os seus passos do rigor do Sol. E que linda era a estrada na Primavera! E nas manhãs, e nas tardes, e nas noites de Verão!

 

Ao fundo da estrada, a Fonte, tão antiga quanto os choupos, emprestava ao ambiente mais encanto, maior beleza, maior frescura. Fonte do Choupal, era esse o seu nome. Também por Choupal era conhecida a estrada e o próprio sítio. Da sua água, dizia a tradição, quem dela bebesse, jamais sairia de Alverca do Ribatejo…

 

Um dia, quiseram construir «gaiolas de cimento» no Choupal. Pensaram em cortar os choupos. As autoridades da terra disseram que não. Os choupos eram centenários. Eram preciosos. Eram um património. E tinham tantos amigos!

 

Apesar da recusa, certa manhã, Alverca do Ribatejo acordou mais pobre, mais poluída, menos verde. Durante a noite, todos os choupos, os amigos e velhos choupos, haviam sido cortados, criminosamente, um após outro, junto à raiz. Por pessoas que não eram da terra, não gostavam da presença dos choupos, nem da sua voz, nem de conversar com eles, nem de ouvir as suas histórias. Pessoas que não entenderam a amizade entre os choupos e os habitantes da vila. Pessoas para quem não existe o Dia Mundial da Árvore, nem o Dia Mundial da Floresta, nem o Dia Mundial do Ambiente. Porque não gostam nem das árvores, nem das florestas, nem se preocupam com o ambiente. Porque só gostam de construir «gaiolas de cimento».

 

Quando souberam da morte dos choupos, os meninos e as meninas que cresceram habituados à sua companhia, à sua voz, à sua sombra, hoje homens e mulheres como eu, sentiram uma grande tristeza, uma grande saudade, uma grande pena. E ainda uma grande revolta. Tão grande e tão profunda, como a sua surpresa, a sua incredulidade, o seu espanto, o seu desgosto.

 

Os choupos, apanhados numa cilada criminosa, não tiveram tempo para se despedir. Não disseram adeus a ninguém. Não puderam, tão-pouco, pedir auxílio aos seus amigos da vila.

 

A história aqui fica. A lembrar os choupos da minha infância, da minha adolescência, da minha juventude. Com quem conversei, que sabiam da minha vida e da vida dos meus amigos, que me contavam, também eles, os seus segredos. Os choupos a quem não pude dizer adeus. A quem não pude agradecer a companhia, a beleza, a frescura que me deram durante tantos anos.

 

Bebi da água da Fonte e a magia cumpriu-se. Quanto aos velhos, aos amigos choupos, calculo que as suas raízes, debaixo do cimento, devem pensar: «Se ao menos conseguíssemos romper esta muralha, talvez os rebentos das nossas raízes pudessem, ainda, voltar à superfície, à luz, à vida, ao convívio dos nossos amigos. Talvez pudéssemos voltar a crescer e a transformarmo-nos de novo nos choupos que fomos, num prodígio verde, a coar o Sol, a ladear, como dantes, a estrada e o rio de que temos tantas saudades…»

 

O Choupal, hoje, não o reconheço. Não existe. Resta-lhe o nome: «moro no Choupal»; «fica na estrada do Choupal»; «a praça do Choupal». Mas poucos dos que lá moram ou passam, conheceram e amaram os velhos choupos. A Fonte, pobre dela. Está hoje «encastoada», num dos prédios ali construídos. Mal se vê, de tão despercebida. Provavelmente, só uma réstia de pudor, não deixou que a destruíssem.

 

Lembro os passeios do meu «grupo», até ao Choupal, rapazes e raparigas (éramos tantos!), no final das tardes sem nuvens na vida de cada um de nós. Nas noites de Verão, sentados nos degraus da Fonte, numa alegria de que apenas a juventude guarda o segredo. Das canções que cantávamos, felizes, porque só os sonhos habitavam o nosso pensamento.

 

Hoje não tenho sequer vontade de passar por lá. Se possível, evito. Depois da morte dos «meus» choupos, vítimas de homicídio voluntário, premeditado e não punido.

 

Soledade Martinho Costa

 

                                                           

                                                             Choupo no Outono

                                                 

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Segunda-feira, 27 de Setembro de 2010

LOURDES NORBERTO

 

 

Inconfundível, a voz

A figura em palco

O rigor dos gestos, da expressão, dos passos.

 

As personagens que vestes

Assomam à tribuna.

 

Como num espelho

Reflectem sentimentos

As verdades, os sentidos.

 

Do outro lado os aplausos:

A música que soa aos teus ouvidos.

 

Soledade Martinho Costa

 

Do livro «O Nome dos Poemas»

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Domingo, 19 de Setembro de 2010

SEGREDOS - SARAH AFFONSO - UMA PINTORA COM O CORAÇÃO NO MINHO

 

                  Auto-Retrato de Sarah Affonso e José de Almada Negreiros

  

Naquela tarde, quando cheguei ao prédio Nº 42 da Rua de S. Filipe Nery, em Lisboa, ia feliz e, ao mesmo tempo, ansiosa. O encontro, que tinha marcado com a pintora Sarah Affonso, viúva de Almada Negreiros, fora agendado pelo telefone para esse dia. A voz que me atendera uma semana antes, um pouco débil, ainda assim mostrava alguma tenacidade e muita simpatia. E ali estava eu a subir as escadas daquele prédio antigo, bastante degradado, que rangiam a cada degrau, a mostrar o peso dos anos e dos passos.

 

Toquei à campainha do 2º andar. Pouco esperei. Uma empregada idosa, de amplo avental, abriu-me a porta com um sorriso: «É a senhora que vem para a entrevista com a dona Sarah?». Perguntou. Confirmei. De imediato, o convite para entrar: «Faça o favor. A senhora vem já!».

 

Aguardei. A sala era pequena, mas mais pequena parecia devido às rimas de papel, quase todas atadas com um cordel, amontoadas um pouco por todo o lado, principalmente, no chão. Um fechar de porta, uns passinhos leves, e Sarah Affonso entra na sala. E logo a pergunta seguida de desculpa: «É a Soledade, não é assim? Desculpe a desarrumação, mas nesta casa a papelada está por todo o lado!». E num suspiro: «Depois, sabe, já não há paciência para pôr tudo isto em ordem. Estou velha e cansada e a minha empregada está na mesma. São coisas minhas, mas a maior parte são do meu marido.»

 

Na minha frente tinha uma senhora franzina, nessa altura com 80 anos, vestida de escuro, cabelo branco, um pouco em desalinho, preso atrás num pequeno carrapito. «Venha comigo!». Convidou. Entrámos numa outra sala, muito mais ampla, mas onde a desarrumação era igual: sobre a mesa, em cima de alguns móveis, mas sobretudo no chão, rimas e mais rimas de papéis, jornais, cartolinas. Explicou: «São apontamentos. Coisas escritas, inacabadas. E esboços. Alguns são meus. Quer ver?». E Sarah mostra-me um belíssimo desenho. Informa e pergunta: «São «As Três Graças». Comecei, mas nunca terminei este trabalho. Gosta?». Que sim, respondi. Era lindo, a leveza do traço, a beleza das três figuras femininas, diáfanas, esbeltas, irreais…

 

Sentá-mo-nos ambas e dei início à entrevista. Não foi fácil. Por vezes quase num murmúrio, como quem fala consigo própria, outras vezes a encher a sala, a voz de Sarah, numa conversa sempre pausada, perdia-se entre a narração e o pensamento. Baralhavam-se os dois num atropelo constante, talvez porque os pensamentos fossem mais ágeis do que as palavras. Mas o fio condutor da narrativa, perdido muitas vezes, acabava sempre por encontrar o rumo: «A minha cabeça já confunde as coisas. Mistura-as um pouco. É a velhice, são muitos anos de vida e o cansaço, a Soledade tem de ter paciência…». Sosseguei-a: «Temos muito tempo. E não vamos fazer este trabalho só numa tarde!». E não fizemos. Num outro dia e numa outra tarde demos, então, a entrevista por concluída.

 

 Recordações da infância e da adolescência:

 

«Nasci em Lisboa, minha mãe era lisboeta, alfacinha, meu pai era minhoto. Por volta dos meus quatro anos fomos viver para o Minho e só regressámos a Lisboa tinha eu quinze anos feitos. Aliás, agradeço à mãe não termos ficado no Minho porque, realmente, lá, não havia futuro para uma rapariga pobre como eu. A vinda para Lisboa foi um presente que o meu pai deu à minha mãe: era esse o grande sonho dela. Mas não tenho boas recordações da minha infância. Tenho, sim, recordações do sítio onde passei a infância. No entanto, foi o norte que me deu as primeiras emoções, os primeiros deslumbramentos das coisas. Sinto que metade do meu sangue é de lá.»       

                                                                                                                      

                                                   «Procissão», Sarah Affonso

                                                                                                                                                                                                           

A mudança para Paris:

 

«Quando acabei o curso na Escola de Belas-Artes, fui para Paris, onde estive oito meses. Durante esse tempo, tive a sorte de privar com bons companheiros, bolseiros portugueses, mais velhos do que eu, que já estavam habituados ao ambiente. Companheiros muito leais, muito carinhosos para uma rapariga que estava sozinha num grande meio. Embora eu não me atrapalhasse nada, gostava imenso de lá estar.

Nesses oito meses frequentei uma Academia, livre, não tive professores e vi coisas que não sabia que existiam na pintura. Certos movimentos do Impressionismo para cá, eram completamente ignorados em Portugal. Aqui, dizia-se até, que em França estavam todos loucos. Acabaram mesmo com os concursos que concediam bolsas aos que seguiam pintura e que ansiavam estudar em Paris. Não imagina o avanço que eu encontrei sobre a pintura!

No ano seguinte, 1925, voltei a Paris, onde estive durante mais um ano. Nessa altura, já trabalhava e ganhava para viver. Via, sobretudo, muita pintura, que era o que mais me interessava. De resto, vivia perto de uma rua de galerias e via exposições lindíssimas. Ver só os quadros eram grandes lições de arte. Entretanto, a minha mãe adoeceu, eu vim e não voltei. Quando regressei a Portugal, senti a necessidade, a obrigação de trabalhar. Meu pai tinha-me dado o dinheiro para eu ir a Paris essas duas vezes – todas as suas economias – e eu sentia-me na obrigação de corresponder. Comecei então a expor com outros companheiros»

  

Da sua própria obra:

 

«Gosto das coisas que faço. Não por achar que tenham valor, mas porque são minhas e porque lhes acho uma certa graça. Se os outros apreciam o meu trabalho, isso não sei. Mas fico satisfeita quando dizem que gostam. Agora se tenho um grande nome, não sei se tenho…»

 

           

                              «As Meninas», Sara Affonso, Museu do Chiado, Lisboa

     

A ilustração nos livros para crianças:

  

«Acho que ilustrar livros para crianças é um trabalho interessante e apropriado para mulheres que são pintoras. Ilustrei alguns. Depois estive vários anos sem ilustrar, até que a Sophia de Mello Breyner me pediu para fazer as ilustrações de «A Menina do Mar». Penso, mesmo, que a partir desse trabalho é que eu ilustrei as melhores coisas para crianças. Como já não vou a exposições, já não conheço os pintores novos, os ilustradores. O que desejo é que os editores portugueses percebam, finalmente, que é preciso ter respeito pela pessoa que trabalha o livro infantil. Em Portugal não se tem dado a devida importância ao livro para crianças. Devo dizer-lhe também que em Portugal, as pessoas, duma maneira geral, não estão habituadas a oferecer livros às crianças. Preferem dar uma camisola ou uma capa para a chuva do que livros. Desculpam-se que as crianças os rasgam ou estragam. As pessoas acham que as crianças não precisam de livros, não precisam de ler, o que é um erro muito grande que se torna urgente corrigir»

 

 O panorama das artes plásticas em Portugal:

 

«Em Portugal temos artistas de muito valor. No entanto, acho que há – há sempre – um pintor ou dois que se destacam dos outros. Quanto às condições de trabalho, melhoraram um pouco, é certo, mas não existem apoios oficiais. A verdade é que há verbas que têm sido cortadas. Mas nunca as de cultura! E cortam-nas, infelizmente…»

 

Falar de Almada Negreiros:

 

«Fui, para meu marido, mais a companheira dona da casa do que a companheira de trabalho. Em todo o caso, fazia tudo o que podia fazer, mesmo trabalhos de ampliação. Há uma gare marítima que foi toda ampliada por mim. O que lhe posso dizer é que Almada teve uma grande influência sobre a minha pessoa. Mas já a tinha antes de ter casado comigo. Sempre tive uma grande admiração por ele, pela época dele, pelo seu movimento e dos seus companheiros. A minha arte foi muito influenciada por Almada e pelos mestres mais velhos da nossa geração.

Meu marido deu-me, principalmente, uma noção de liberdade que eu não tinha até então. Embora, já o José de Figueiredo, historiador e crítico de arte, me tivesse chamado a atenção para o facto de eu ter encontrado um assunto muito válido para a minha arte, aconselhando-me que era esse o caminho que eu devia seguir na pintura. Na altura não liguei grande importância ao seu conselho. Mais tarde, já casada com Almada, meu marido disse-me, exactamente, a mesma coisa. E, não há dúvida, que a parte de arte mais interessante que eu tenho é depois de casada.

Já se vê, que utilizava uma técnica de pintura. Talvez até mais do que ele próprio. Mas as longas conversas que eu tinha com o meu marido, influenciaram grandemente o meu trabalho. Eu dizia se gostava ou não do que ele fazia e ele fazia o mesmo em relação à minha obra.

Quanto à minha vida de casada, foi uma vida vulgar, normalíssima, com um companheiro, já se vê, especial, mas que eu admirava muito. Almada era um homem excepcionalmente inteligente. Tinha, também, o poder da palavra e quando falava, dizia autênticos monólogos. As pessoas ficavam a ouvi-lo. Ele abafava tudo. Tenho pena de não ter gravado essas coisas…Só não gostava de discutir a obra dos outros. Podia gostar ou não gostar, mas desde que se tratasse de colegas, não dizia mal fosse de quem fosse. Nunca censurava. Era capaz de não gostar de um trabalho mas não o dizia.

A minha casa vinha, também, gente muito culta e havia conversa. Sim, porque havia conversa em minha casa! Há muita gente que recebe muito, que oferece jantares e dizem apenas graçolas uns aos outros; não há um assunto que se discuta.

Por isso, para os meus filhos, a arte era uma coisa de todos os dias. Os pais, os dois, falavam de arte e havia sempre muitos livros sobre arte por todo o lado. Dizia o meu filho, aí com uns doze anos de idade e que andava nessa altura no Colégio Militar: «Dizem que eu sou mais inteligente do que os outros, mas não é verdade. O que eu tenho é um meio familiar melhor do que os outros. Falo de coisas que os meus companheiros nunca ouviram falar.»

  

Sobre crianças:

  

«Tenho duas netas. Uma gosta muito de desenhar, a outra é ainda muito pequenina. Mas é muito esperta, muito viva. A mais velha desenha com muita facilidade e gosta. Não vejo, porém, que seja revelar um talento. Ambas gostam muito de livros de histórias. É claro que quando vêm a minha casa e vêem as minhas coisas, gostam porque são da avó!

Para elas, como para todas as crianças portuguesas, agora que já se começa a olhar para a Criança com outro respeito – pelo menos, já se fala em ter respeito pela Criança –, desejo uma infância melhor do que foi a minha. Que a possam recordar ao longo da vida com muita saudade e muita ternura. Porque eu, como lhe disse, não tenho boas recordações da minha infância.»

  

Depois desta entrevista, feita em 1979 (só em parte aqui transcrita), voltei a casa de Sarah Affonso como visita, como amiga. Fi-lo sempre com um prazer renovado. Num livro de Almada Negreiros («4 - Poesia – Obras Completas»), guardo com muito carinho e saudade pequenos recortes de jornais e duas cartas que gentilmente me dirigiu.

 

Discípula de Columbano Bordalo Pinheiro, na Escola de Belas-Artes de Lisboa, possuidora de indiscutível talento, deu preferência ao Modernismo, movimento a que aderiu em Portugal no início do século XX. Ainda assim, as festas e as tradições portuguesas (cenas de procissões, arraiais, casamentos, feiras, etc.) estão bem expressas na sua pintura. Destacando-se no seu tempo, num mundo artístico e intelectual onde prevalecia a figura masculina, Sarah Affonso foi a primeira mulher a frequentar o café «A Brasileira», no Chiado, por esses anos frequentado apenas por homens.

                                         

                                          «Casamento na Aldeia», Sarah Affonso                                                               

                                                          

Participou na 2ª Bienal do Museu de Arte Moderna de S. Paulo (1953) e na Exposição de Arte Portuguesa do Naturalismo aos Nossos Dias, em Bruxelas, Paris e Madrid (67/68). A sua última exposição individual efectuou-se no Estoril-Sol, tendo a SEC adquirido um auto-retrato para a sua colecção. Tem quadros no Museu de Arte Contemporânea, no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, no Museu do Chiado, no Museu de Bragança e no Museu de Amarante, além de várias colecções particulares em Portugal e no Brasil. Recebeu o Prémio Amadeo Souza-Cardoso (1944) e foi condecorada Comendador da Ordem de Santiago de Espada, pelo então Presidente da República, António Ramalho Eanes.

  

A entrevista acima transcrita, encontra-se inserida (na íntrega) no livro «Inquérito ao Livro Infantil», composto por 40 entrevistas, trabalho que realizei em 1979, sob a égide do «Ano Internacional da Criança», publicado semanalmente no extinto Diário de Lisboa, de Janeiro a Outubro desse ano. Reunido em livro em 1980 e reeditado em 1981, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura, Fundação Calouste Gulbenkian e Instituto Português do Livro (a funcionar, na altura, autonomamente, hoje integrado na Biblioteca Nacional, agora denominada Instituto Português do Livro e das Bibliotecas), entre outros organismos estatais e privados ligados à Cultura, a obra inclui, além das entrevistas, ilustrações, fotos e extractos literários.

 

No dia da apresentação do livro, que teve lugar no antigo Grande Auditório da Sociedade Portuguesa de Autores, na Duque de Loulé, com mais de duas centenas de convidados, incluindo os entrevistados, Sarah Affonso aparece, inesperadamente (não saía de casa há anos), pelo braço de seu filho, o arquitecto José Afonso de Almada Negreiros (falecido em 2009). Uma prolongada salva de palmas premiou a pintora, nesta que foi a sua última aparição em público.

 

Muito fica por dizer da pintora e da mulher. Da sua obra e da sua vida. Esta é a modesta homenagem que lhe presto, aqui, no Sarrabal.

 

Sarah Affonso morre no dia 14 de Dezembro de 1983, em Lisboa, com 84 anos.

   

 Soledade Marinho Costa                      

 

 

O prédio Nº42 da Rua de S. Filipe Nery, reconstruido e considerado de interesse público por decisão do Ministério da Cultura.

 

 

publicado por sarrabal às 12:37
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Quinta-feira, 9 de Setembro de 2010

COISAS DA VELHA DO ARCO - UM COVEIRO DÁ SEMPRE JEITO!

 

 

Encontrava-me a passar uns tempos na aldeia do Bom Velho de Cima, quando entrei no Centro de Saúde de Condeixa na intenção de falar com a médica Idalina Rodrigues, directora do Centro e, também, por essa altura, Vereadora do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova.

 

Durante o seu mandato, fizeram-se aquisições de livros de autores portugueses, destinados às bibliotecas das escolas do Ensino Básico, participei num Encontro com professores na Casa Museu Fernando Namora e realizei algumas sessões de animação de leitura nas escolas da vila. Uma delas, inusitadamente, efectuada na lindíssima Pousada de Santa Cristina, antigo palácio Sotto Mayor. Outra iniciativa em que trabalhámos juntas, diz respeito ao Primeiro Encontro de Poesia de Condeixa (em homenagem a Fernando Namora), com a duração de quatro dias, que contou com a participação de mais de uma centena de autores. Considerado um sucesso, o Encontro, para além das muitas comunicações apresentadas, incluiu passeios turísticos pelas redondezas (principalmente a Conímbriga), teatro, gastronomia, exposições de pintura, um concerto na Pousada de Santa Cristina e saraus de poesia.

 

Ao entrar no Centro de Saúde, informei a funcionária de que não pretendia interromper o andamento das consultas. Que não tinha pressa. Podia esperar. A Dra. Idalina que me atendesse quando tivesse oportunidade. Decidi aguardar na sala de espera.

 

Cá fora, pareceu-me ter ouvido o choro de uma criança. Não me enganei. Na sala várias pessoas aguardavam a vez de serem atendidas. Sentado numa das cadeiras, um rapazinho de quatro a cinco anos, lavado em lágrimas. Misturado com o choro, um pedido dirigido à mãe, sentada a seu lado: «Eu não quero levar um «pica», mãe! Não quero! Ouviste, mãe?». E a resposta: «Cala-te, Nuno!».

 

Calcitas de ganga, as mangas da camisa com vestígios de quem a elas se assoou e limpou as lágrimas, a choradeira continuava, com o pedido repetido em lengalenga: «Mãe, eu não quero levar um «pica»! Tás a ouvir, mãe?».

  

De vez em quando levantava os olhos para a mãe, numa súplica, depois olhava os circunstantes, para logo fixar o olhar na ponta dos ténis, que já teriam tido cor, mas agora sem ela. E de novo a cantilena soluçada: «Eu não quero levar um «pica»!». E outra vez a mãe, num aviso, parecendo acordar de um sono de olhos abertos: «Tá calado, Nuno, que já tou farta de te ouvir!». De nada serviu o aviso. As lágrimas e o pedido continuavam.

 

Aos pés da mãe os sacos com «avios». Isto é, as compras, principalmente de mercearia, feitas às terças e sextas-feiras, dias de mercado e feira em Condeixa. Nesses dias não apenas as pessoas da vila, mas outras, vindas de lugarejos ou de aldeias ao redor, fazem as «mercas» e aproveitam para assistir à missa, ir ao Centro de Saúde e tratar de demais assuntos. Depois, a maioria lá segue, na «carreira».

 

Ainda há poucos anos, com o mercado e a feira situados numa das ruas principais da vila, era diferente. A emprestar-lhe toda a azáfama e colorido, como se de um dia de festa se tratasse. A rua, a praça e a feira eram locais de encontro, de conversa, de ditos soltos, de beijos e abraços, de novidades contadas e recontadas, de encontrões com pedidos de desculpa, num fervilhar de gente ataviada de sacos onde as «mercas» espreitavam, indiscretas. As peixeiras com o «rico» peixe vindo da Nazaré, de São Martinho e, sobretudo, da Figueira da Foz. O silêncio dos coelhos ao despique com o cacarejar dos frangos e das galinhas. Muita bugiganga, muita loiça de barro, muita roupa, muitos sapatos, muitos ciganos entregues ao seu negócio.

 

Mas o mercado e a feira mudaram de local para uma das partes novas de Condeixa, um pouco distante para quem tem de se deslocar a pé. Valem os atrelados dos tractores e os carrinhos de mão com rodas de pneus.

 

Era evidente que a mãe do menino tinha ido às «mercas». Pacientes tinham sido atendidos, outros haviam chegado e a cantilena prosseguia no mesmo ritmo. «Nem sempre os adultos (ou as mães) são coerentes, de modo a acalmarem os mais pequenos dos seus medos, dos seus receios», pensava eu. «De nada custava sossegar o garoto», continuava eu no meu raciocínio. Num dado momento em que o meu olhar se cruzou com o da criança, pisquei-lhe o olho e abanei a cabeça num aceno negativo. Esta espécie de mensagem telepática teve efeitos negativos: o choro quase redobrou. Julgo que não tenha sido por minha culpa, mas acontece que nesse momento a paciência da mãe chegou ao fim. Levanta-se da cadeira, coloca as mãos sobre os ombros do filho e afirma, sem margem para dúvidas: «Eu avisei-te, Nuno! Se continuares a chorar, chamo imediatamente o coveiro e enterro-te já aqui!». Resultado? As lágrimas pela carita do garoto deixaram de correr. Limpou os olhos e assoou o nariz às mangas da camisita, recostou-se melhor na cadeira e calou-se. Não me perguntem como é que uma criança tão pequena sabia o que era um coveiro. Para mim, será sempre um mistério.

 

Foi nessa altura que me chamaram. A Dra. Idalina estava à minha espera. Por um triz, ia perdendo a oportunidade de aprender com aquela mãe como se põe termo ao choro de um filho que tem medo de levar um «pica»!

  

Soledade Martinho Costa

 

 

                          

 

  

publicado por sarrabal às 13:20
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