Terça-feira, 29 de Setembro de 2009

DO LADO DE CÁ - FESTAS E ROMARIAS - A ATRACÇÃO DO SAGRADO

                

                                  Rancho Folclórico de Alcacer do Sal.
 
A festa representa uma das formas mais significativas de (re)encontro social das comunidades, baseada na convivência entre as populações de um determinado lugar, isto é, apresenta-se como motivo catalisador de renovado relacionamento dos habitantes de uma mesma localidade e os daquelas que lhe são vizinhas – incluindo os forasteiros vindos de longe.
 
Além de servirem ao estreitamento de laços de confraternização e amizade, dão ensejo, não raras vezes, a negócios que se concretizam ou se apalavram e também às notícias de quem não pôde estar presente, trazidas por familiares e amigos que voltam à terra por altura das festas, para nela tomarem parte e matarem saudades.
 
A festa simboliza, assim, uma espécie de sala de convívio de cada terra, em que a grande família comunitária se reúne com os seus pares e as suas visitas, e onde os usos, práticas e crenças que lhe estão associados, abarcando devoções religiosas e profanas tão específicas quanto ricas na sua articulação e diversidade, mais se fazem notar, particularmente, na devoção aos oragos que se festejam – tendo em conta que atrás de cada festa há sempre um santo padroeiro que se venera e louva.
 
Os meses de Julho, Agosto e Setembro (este com as suas Feiras) apresentam-se, por excelência, como três dos meses eleitos de norte a sul do País para dar continuidade, no seu máximo expoente, ao grande ciclo das romarias, uma das manifestações de maior significado e colorido da tradição rural portuguesa, sendo, portanto, nas comunidades rurais que este género de festividades mais acentuadamente envolve as populações e as mobiliza na defesa e divulgação das suas tradições, a merecer a nossa atenção pelo significado e importância de que se revestem, quer no que respeita ao calendário religioso, quer etnográfico.
 
Mistura do sagrado e do profano – uma constante nos costumes populares –, a manter vivas as nossas raízes, resultam, predominantemente, da celebração em louvor de um orago, ou padroeiro de uma localidade, realizando-se a festa e a romagem à sua capela, por vezes situada em lugar ermo ou de acesso pouco fácil, na data que lhe é consagrada.
 
Na generalidade, trata-se de festividades seculares, exuberantes de tipos e costumes, algumas a comportar cerimónias reminiscentes de cultos milenários, às quais as multidões acorrem atraídas por um conjunto de manifestações antecipadamente programadas e anunciadas, tanto de âmbito litúrgico como lúdico: cerimónias religiosas associadas a missa de festa e imponentes procissões, cortejos, bandas filarmónicas, desfile de gigantones e cabeçudos, feiras onde se vende um pouco de tudo, sempre com destaque para o artesanato e toda a espécie de produtos dessa região, música, ranchos folclóricos, fogo-de-artifício e arraiais onde se petisca, canta e dança pela noite fora.
 
Quase sempre antecedidas por um peditório, numa espécie de introdução à própria festa e a dar-lhe início, por vezes com grupos de danças acompanhados por gaiteiros, tocadores de bombos ou tamborileiros, seguidos pelo fogueteiro, continua a verificar-se o costume, mantido em certas localidades, de os festeiros ou mordomos, oferecerem em troca do donativo frutos ou bolos tradicionais próprios dessa ocasião. Noutros lugares os peditórios tomam a forma de cortejos de oferendas, com as doações a serem leiloadas após o desfile.
 
As categorias, pode dizer-se que se dividem em duas: as pequenas romarias, a chamar a si apenas as populações locais e as gentes dos lugares vizinhos, geralmente com a duração de apenas um dia e a noite da véspera, e as grandes romarias, de maior movimento urbano, a dar origem a verdadeiras peregrinações anuais ao local onde se efectuam, umas e as outras a comportarem, na sua maioria, rituais específicos que fazem as características e a diferença entre cada uma delas.
 
Soledade Martinho Costa
 
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.VI
Ed. Círculo de Leitores
 
publicado por sarrabal às 20:25
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Domingo, 20 de Setembro de 2009

HISTORINHA - A ARANHA E O OURIÇO-CACHEIRO

 
- Se não me engano, é a raposa que lá vem, mais os seus raposecos. Caminha à surrelfa, a manhosa, por entre o matagal! – Diz a aranha, de atalaia no alto da teia onde vive.
- Nesse caso, o melhor é esconder-me. – Comenta, precavido, o ouriço-cacheiro, olhar míope, na distância do mato.
- Nem os espinhos lhe valem, compadre Ouriço? – Zomba a aranha, agora presa no fiozinho da teia.
- Valerem, sempre valem, ora essa! Mas com a Raposa, nunca fiando…
- A mim, não me apoquenta ela. – Torna a aranha.
- E de que valia à Raposa apoquentá-la?! Não lhe servia nem para a cova de um dente!
- À falta de melhor, quem sabe. – Replica a aranha, sem se dar por vencida.
- A mim, sim. A mim ferrava ela o dente, se pudesse. Eu é que lhe troco as voltas.
- A esconder-se, não? – Troça a aranha sob a teia, em equilíbrios de trapezista.
E logo o outro, a mostrar ofensa:
- A senhora Aranha sabe muito bem que não sou medroso. Sou asseado, trabalhador, e não gosto de zaragatas…Medroso, não. Quanto muito, sou prudente.
- Tem razão, senhor Ouriço-Cacheiro, tem razão. Pronto, não se zangue, eu só estava a brincar.
- Pois, mas há coisas com as quais não se brinca. O que tenho é motivos para me esconder da Raposa, só isso…
E a aranha, curiosa, suspensa da teia:
- Motivos? Que motivos? Ora conte, senhor Ouriço-Cacheiro, conte lá que sou toda ouvidos!
E o ouriço, que destrói os ratos e os insectos, e à noitinha trabalha nas hortas, a limpá-las das lesmas e dos caracóis, não se faz rogado e põe-se a contar:
   
  
- É assim: quando a Raposa quer apanhar um Ouriço, e ele se enrola numa bola de espinhos, para defender-se, tem o feio costume de lhe fazer chichi em cima. Enojado, o Ouriço desenrola-se, e ela ferra-lhe o dente aqui, na parte inferior do corpo, onde os Ouriços não têm picos. – E mostra a zona do corpito, desprovida de cerdas.
- E era uma vez um Ouriço, calculo! – Exclama a aranha, arrepiada, na pontinha da teia.
- Nem mais. – Remata o ouriço-cacheiro.
- Então, é melhor esconder-se e depressa, ó senhor Ouriço. Olhe que a Raposa não tarda aí!
- Como estamos ainda no Verão, segue com os filhotes a caminho das searas. Antes ou depois da ceifa, no restolho, não lhe vão faltar ratos, arganazes e passarada com fartura. Por isso, muda de covil, a espertalhona…
E o ouriço-cacheiro, numa pressa, enrola-se, bolinha de picos, bem escondido dos olhos da raposa matreira. A aranha, essa, lá fica, oito patitas a tecer a teia, sem motivo para alarme.
  
                           
 
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que o Verão me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
publicado por sarrabal às 17:06
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Segunda-feira, 14 de Setembro de 2009

SEGREDOS - OS BEIJOS DE ALICE

«Anjos do Beijo», William Bouguereau.

 

Mais de uma vez a minha amiga se me havia queixado da empregada doméstica. O serviço andava atrasado, a hora do almoço (há uma) escorregava sempre para mais tarde, as pratas não tinham sido limpas, a roupa por engomar continuava a mostrar algumas peças deixadas para outro dia.
 
- Não sei o que se passa com a Elvira, mas as coisas não andam bem. – Repetira-me, durante uma das minhas visitas. – Calcula que dá agora em levantar-se mais tarde. Sinceramente, não compreendo.
 
A empregada, fixa, há mais de um ano que trabalhava em casa da minha amiga e não havia, até então, razão de queixa. Pelo contrário. Era cuidadosa, trabalhadora, mantinha a casa em ordem, a comida era bem feita. Nova, vinte e seis anos, simpática, bonitinha, até.
 
A minha amiga ocupava apenas uma parte da casa, no Bairro Azul. Ou seja, passava o tempo, quando não saía – e saía muitíssimo – entre o seu quarto, a sala de visitas e a salinha de trabalho. Almoçava na marquise, cheia de luz e de plantas, e mal punha os pés na sala de jantar, no quarto de visitas ou na biblioteca. À cozinha ia de vez em quando. Mas este problema com a Elvira, para ela, pessoa organizada, senhora do seu feitio, começava a originar uma situação incómoda, a pôr em risco (pensei eu) o emprego da rapariga, que adorava a casa e a patroa, apesar do seu carácter impetuoso.
 
Habituada a receber bem, a sua casa fora lugar de tertúlias, onde escritores e políticos faziam ponto de encontro. Mais tarde, com o marido e o filho no Brasil as coisas mudaram. Ela é que não. Tratava-me por tu, eu tratava-a pelo nome: Alice. A diferença de idades era grande. Eu tinha, exactamente, a idade do filho, na altura vice-reitor da Universidade de São Paulo, no Brasil.
 
Alice não beijava ninguém. Detestava beijos. Lembro-me da minha filha ter tentado cumprimentá-la com dois beijinhos. Logo o braço se estendeu a impossibilitar a tentativa, coisa que magoou e hostilizou a garota até bem tarde. Algumas pessoas ficavam escandalizadas. Só quem conhecia a sua aversão aos beijos levava a bom porto o cumprimento.
 
Sem vaidade, era eu a única pessoa que usufruía de tal privilégio. Quando nos encontrávamos eu recebia dela dois beijos e ela outros dois dados por mim. Dizia: «Em muitas coisas, vejo em ti a minha continuidade.» E acrescentava: «Depois, sabes, és da idade do meu filho. Só tu é que levas beijos meus. E dás!» E a conversa seguia o seu rumo.
 
Dinâmica, costumava acordava-me com um telefonema: «Então, preguiçosa, ainda estás deitada? Vê bem o que eu já fiz hoje:» E aí vinha o rol de tarefas cumpridas muito menos da manhã chegar a meio.
 
À noite, invariavelmente, repetiam-se os telefonemas: «Já estás deitada ou ainda não? Eu já estou na cama, mas apetece-me conversar um bocadinho…». E foi assim ao longo dos anos.
 
Familiares seus e alguns amigos surpreendiam-se por me dar optimamente com uma pessoa apontada como difícil no que respeitava ao relacionamento com os outros. Na verdade, sempre me dei bem com pessoas consideradas de índole difícil. Talvez uma táctica que utilizo e dá resultado. Saber ouvir é o primeiro passo. Não contradizer demasiado, mas fazer respeitar a minha opinião, o segundo. Os passos seguintes vêm por acréscimo. Costumo chegar à conclusão de que há nestas pessoas qualidades escondidas que superam os defeitos visíveis à superfície.
 
Só uma coisa me metia medo. Os convites da minha amiga para almoçar, jantar ou tomar chá. No tempo da Elvira, um mar de rosas. No tempo pós- Elvira, um calafrio. Os ingredientes, as misturas, os condimentos assustavam qualquer um. A minha amiga não era dotada para a cozinha. Mas insistia. Não havia tacho ou panela que resistisse muito tempo em bom estado. A chama dos bicos do gás, sempre altíssima, acabava-lhes rapidamente com as respectivas asas. A comida, a maior parte das vezes, também ficava agarrada ao fundo. Felizmente, nunca me senti indisposta. A indisposição vinha sempre antes da refeição.
 
Com os chás acontecia o mesmo medo. Era uma tentação para ela experimentá-los, misturá-los, utilizando uma série de chás que tanto podiam vir da Índia, como da China, de Londres (vá lá!) ou do Brasil. Tomar chá em casa da minha amiga, para mim, constituía um risco. Bebia a medo um gole ou dois e ao convite: «Bebes mais?», respondia invariavelmente: «Não, obrigada.» E a Alice, a rir: «Tens medo, é?» À cautela, o meu chá ficava-se pelas torradas e as bolachinhas…
 
Mulher corajosa, extremamente frontal, inteligente, trabalhadora incansável em prol da Criança e das jovens desprotegidas, esteve presa por antifascista na cadeia do Aljube, em Lisboa, juntamente com o marido, durante dois anos. Costumava dizer-me: «Desse tempo, resta-me a consolação de termos feito o meu filho, o João Paulo.»
 
Impedidos de exercer a carreira de professores liceais em escolas do Estado, contava-me que tinha sido por intermédio (paradoxal) de Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, que haviam conseguido colocação no Ensino Privado. Até então, limitavam-se ambos a dar explicações em casa. «Tempos difíceis esses, muito difíceis.» Recordava. Mais tarde o divórcio e a ida do filho para o Brasil, para se juntar ao pai. Ficou sozinha. José Régio, padrinho do filho, propôs-lhe casamento, mas Alice rejeitou. Por fim, a doença do irmão mais novo, que foi buscar em fase terminal para lhe morrer em casa, rodeado de carinho e de cuidados.
 
Esta última provação marcou-a profundamente. De tal forma que acabou por sofrer as inevitáveis consequências: a marginalização de que fora vítima não se limitou ao exercício da sua profissão. Acompanhou-a pela vida fora. Um espinho aqui, outro acolá, o seu nome constava de uma «lista negra», que não lhe dava tréguas. Mas batalhou até ao fim. Comentava muitas vezes que tinha sido marginalizada «antes e depois do 25 de Abril».
 
É dela uma «carta aberta» que me dirigiu, publicada no extinto Jornal da Educação, do nosso comum e saudoso amigo Afonso Praça. Sim, porque eu própria fiz da caneta (teclado?) lança e andei por aí a lutar, não contra moinhos de vento, mas contra os ventos que sopravam em desfavor da Literatura Portuguesa para a Infância e de muitos autores consagrados. Tão marginalizados quanto o era a minha amiga Alice – acrescidos outros motivos.
 

Nesses anos encabeçava eu um movimento que fez história. Abaixo-assinado (três dezenas de escritores, menos os que não puderam assinar por razões politico-partidárias, embora por carta, telefone ou pessoalmente se mostrassem solidários com o grupo), reunião com o ministro da Educação da altura. Artigos, muitos, assinados por mim. A começar no “Expresso” e a acabar no extinto “Diário Popular”. Recordo-me de um deles, a duas páginas centrais, com o título «Ditadura Cultural Exercida sobre as Crianças» – título da responsabilidade da redacção, exemplarmente escolhido.

 

Quando a doença chegou, inesperada, brutal, sem nada que a pudesse pressagiar, a minha amiga deixou de me querer ver. Que não, não fosse lá a casa, preferia assim. Fiz-lhe a vontade. A enfermeira permanente à sua cabeceira fazia a ligação. Por fim, pedia ao filho, regressado do Brasil, para me ligar. A partir de um certo dia o telefone emudeceu. Ficou a recordação. Até hoje. Vítima de doença prolongada, nem sequer o foi. Bastaram-lhe três a quatro meses. Voltei a sua casa para lhe levar dois ramos de flores.
  
Certa vez, vaticinou: «Quando morrer, se calhar, nem vais ao cemitério pôr-me uma florinha!» Protestei. Mas ela acertou. Por mim, tudo em vida, depois…Daí, fazer de conta que estas linhas representam a flor que não lhe levei e prometi.
 

Num dia em que a visitei, arrastou-me para a salinha de trabalho e num alvoroço segredou-me:

- Já sei o que se passa com a Elvira. Já descobri!
- Então o que é? – Perguntei.
- Livros, filha, livros!
- Livros?! Não percebo.
- Já vais perceber. A Elvira vai à biblioteca e é um livro atrás do outro. Por isso é que atrasa o trabalho. É que adormece tarde e acorda tarde de manhã!
- Mas como é que sabe, Alice?
- Porque fui dar com ela sentada na cozinha a ler um livro. Quando me viu escondeu o livro atrás do peitilho do avental. Depois, contou-me. Fiz-lhe perguntas. Sabes que mais? Já estou arrependida de a ter mandado aprender a ler! – Rematou.
 
Ao ouvir estas palavras nem quis acreditar. Vindas de uma escritora e pedagoga não era caso para menos. Fiquei decepcionada, confesso. Mas logo a luzinha brilhou ao fundo do túnel.
- Bom, como a rapariga descobriu o gosto pelos livros, agora só tenho é de arranjar-lhe um horário compatível para a leitura, não achas? – Piscou-me um olho e sorriu.
 
Lá tinha eu, de volta, a amiga a quem admirava e que muitos conheciam tão mal. Ou não quiseram conhecer.
 
A minha amiga era a escritora Alice Gomes. O marido, o poeta Adolfo Casais Monteiro e o irmão mais novo o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes.
 
Soledade Martinho Costa
 
                      

                      Alice Gomes, Adolfo Casais Monteiro e Soeiro Pereira Gomes

  

 

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Quinta-feira, 10 de Setembro de 2009

HISTORINHA - A RAPOSA E O PORCO-ESPINHO

 
A raposa põe o nariz fora da toca. Fareja o ar. Arrebita as orelhas. Cautelosa, avança. Coloca uma das patas dianteiras sobre as folhas secas que ocultam a entrada da sua casa. Logo a seguir, a outra. Com metade do corpo fora do buraco, olha à sua roda, focinho levantado.
- Que rico tempo! – Exclama, a bocejar, saindo para a mornez da tarde.
Espreguiça-se. Dá meia volta. Não. Não há sinal de perigo. Volta a meter a cabeça na toca e chama:
- Vamos, meus raposinhos, são horas. O dia está no fim. Vamos, toca a levantar!
Entra de novo no covil. Com o focinho põe-se a empurrar o corpo felpudo dos raposinhos, ainda enroscados no torpor do sono. E logo torna:
- Vamos, vamos, preguiçosos, não ouviram chamar? São horas, raposinhos. Não há tempo a perder!
Um raposinho e uma raposinha levantam-se de um salto.
- Preparem-se para viajar. – Anuncia a dona raposa.
- Viajar? – Repetem, num espanto, a raposinha e o raposinho.
- Sim, vamos mudar de casa. – Explica a mãe. – Estamos no Verão, vamos passar algum tempo mais perto das searas.
  
 
  
Quando os filhos nasceram, na Primavera, a mãe raposa teve um trabalhão para os alimentar. E também para os ensinar a serem prudentes. Agora, com três meses feitos, espigadotes, estão capazes de enfrentar a vida e os seus perigos. Pois se até já aprenderam a caçar! Mas a raposa sabe que os raposinhos só irão abandoná-la lá pela chegada do Outono. Nessa altura, voltará a casa o seu marido, o senhor raposão.
Mãe e filhos saem de casa numa restolhada. Ao porco-espinho não escapam os preparativos da partida.
- Outra vez de abalada, comadre Raposa? – Pergunta, curioso, à entrada da toca.
- É verdade, senhor Porco-Espinho. Chegou a hora de descansar um pouco, que a minha vida, nos últimos meses, não tem sido um regalo.
- Diz bem, comadre. Diz bem! - Responde o outro numa aprovação. – Alimentar e cuidar desses diabretes não é tarefa fácil, não senhor. E para onde é a ida? Para o sítio do costume, não?
- Claro! Nesta altura do ano, com o trigo, o milho, a cevada e o centeio que por aí há, não vai faltar passarada nem roedores. Isto, sem falar nos cordeiros… Os meus raposinhos vão encher a barriguinha à vontade, e eu vou poder descansar desta lufa-lufa que me traz derreada!
 
 
Só então o porco-espinho repara na magreza da comadre raposa. Coitada, está a pele e o osso. Por isso, recomenda:
- E veja se engorda um pouco lá por essas bandas, que bem precisa.
A raposa lança sobre si um olhar atento.
- Estou magrita, estou. – E acrescenta, os olhos agora embevecidos pousados nos filhotes: - Também, não admira. Além de os amamentar, fartei-me de andar por aí, esfalfada, em busca do melhor para matar a fome aos meus raposecos!
E logo, bisbilhoteiro, o senhor porco-espinho:
- Muitas visitas às capoeiras, naturalmente…
E a raposa, atrevida, num desafio feito de queixas:
- Pois, então. E que havia eu de fazer? Deixá-los morrer de fome, aos meus raposinhos?!
O porco-espinho, bicho nocturno como ela, concorda, num aceno.
E de novo a raposa, toda espevitada:
- Bem faz o compadre, que se empanturra antes de chegar o Inverno.
- Ora, comadre, bem sabe que sou obrigado a hibernar! – Atalha, a justificar-se, o porco-espinho. – Por isso alimento-me o mais que posso de raízes, de tubérculos e de cascas macias de ramos.
- Tem sorte, é o que é. Come daquilo que gosta. Enquanto eu, no Inverno, ando sempre de olho em tudo que me encha a barriga. Não posso ser esquisita no que respeita ao alimento.
Quanta verdade nas palavras da raposa. Com efeito, no Inverno e no início da Primavera, a pobre vê-se aflita para arranjar sustento. A caça é pouca, muitos animais hibernam ou fogem ao frio, agasalhados nos seus esconderijos. E a raposa, ou se afoita a assaltar alguma capoeira, ou, então, não tem outro remédio senão alimentar-se do que encontra: ovos, frutos, répteis, insectos…Ainda que, no Verão, não rejeite uma saltada à vinha para comer um bom cacho de uva moscatel. Ou ao meloal, em busca de melão ou de alguma abóbora madura.
E logo, cheia de pressa, a raposa prepara-se para a partida.
- E agora, adeus, senhor Porco-Espinho. Até à vista. Passe bem. Vou aproveitar o Verão enquanto dura! – Regouga ela.
- Boa viajem, comadre Raposa. Saudinha é o que eu lhe desejo! – Responde o porco-espinho, a pensar que são horas de ir em busca da ceia.
 
Soledade Martinho Costa       
 Do livro «Histórias que o Verão me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
 
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Sexta-feira, 4 de Setembro de 2009

COISAS DA VELHA DO ARCO - UMA LIVREIRA EXEMPLAR

 

 
Entrei na livraria com a intenção de comprar um livro para oferecer a uma muito jovem amiga. Passara já o tempo em que lhe fui oferecendo os meus próprios livros.
 
Levava escolhido o título da obra a adquirir. Tratava-se de «Os Contos Exemplares» de Sofia de Mello Breyner. A livraria, na Rua Marquês de Tomar, conheci-a eu muitíssimo bem. Dirigi-me ao local onde previa encontrar o livro e não me enganei. Lá estava ele entre os muitos livros infanto/juvenis. Uma solícita empregada, que me pareceu cara nova por ali, ao ver-me com o livro na mão perguntou, numa voz como se quisesse dizer-me um segredo:
 
- A senhora vai levar esse livrinho?
- Sim, vou levá-lo. – Respondi.
Aquilo que em seguida ouvi, deixou-me estupefacta. Sempre a meia-voz e sem que a pequena perdesse o ar simpático com que me abordou, deu-me este singular conselho:
- Não leve. Esse livro é já muito antigo. Foi escrito há muito tempo. Tem aqui outros mais modernos… Não quer ver?
 
A empregada de uma livraria catalogar assim um clássico da nossa literatura juvenil, só por ignorância, certamente! E pensei, nesta como noutras áreas profissionais, não há forma de dar a estes jovens, neste caso candidatos a livreiros, alguma formação, algumas noções básicas onde se agarrem, antes de começar a atender os clientes? Num país onde não se lê, onde as pessoas não têm o hábito de frequentar livrarias nem bibliotecas, onde não se conhecem as obras dos seus escritores, onde a Literatura teima em sobreviver, sem apoios, sem estímulo, sem o respeito e a divulgação que merece serão livreiros como esta jovem, provavelmente, os indigitados condignos para não destoar do contexto. Será?
 
Um pouco incomodada, confesso, com a falta de conhecimento demonstrado pela jovem, levei-a para um local mais discreto da livraria e perguntei-lhe:
- Sabe quem escreveu este livro?
- Não, não sei. Mas sei que é antigo. Conheço o título. – Acrescentou.
- Pois é, quem escreveu os «Contos Exemplares» foi um grande nome da nossa Literatura. Uma grande poetisa. Este livro, a que chama antigo, tem tido ao longo dos anos muitas e muitas reedições.
Aqui parei, acauteladamente, e perguntei:
- Sabe o que são reedições?
- Sim, é o livro ser feito várias vezes. – Respondeu.
«Vá lá, menos-mal», pensei. E prossegui:
- Um livro que se mantém nos escaparates com reedições consecutivas, quer dizer que agradou aos leitores. Por isso os editores investem nas reedições para atender ao interesse manifestado pelos leitores. – Expliquei.
 
Seguiu-se uma espécie de palestra sobre livros «antigos», clássicos, contemporâneos, novíssimos. Que não havia livros modernos, mas livros actuais, publicados recentemente. Veio à baila Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, até chegar aos alfarrabistas. 
Olhou-me calada e com semblante sério.
- Compreendo. – Foi a resposta.
 
Lembrei-me, então, de Sofia. Na altura, se lhe tivesse contado este episódio, sei que não teria estranhado. Estava habituada a situações semelhantes. Não foi por acaso que se recusou a ir receber o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças, pelo conjunto da sua obra, em 1994. A verdade – e ela sentiu-a –, é que Sofia de Mello Breyner só foi distinguida com este prémio quando muitos outros autores de menor gabarito o tinham recebido já em anos anteriores. Sofia sentiu-se magoada. E com razão.
 
Tempo antes tinha falado neste assunto a José Hermano Saraiva, à época um dos elementos do júri deste prémio. Lembro-me também que publiquei um artigo sobre este tema com o título «Sofia de Mello Breyner um Nome à Margem», num ano em que mais uma vez o seu nome foi esquecido. Disse-me José Hermano Saraiva: «Eu tenho insistido. O prémio já devia ter sido entregue à Sofia. Mas a resposta que ouvi foi a de que tinha poucos livros para crianças publicados, imagine!». Juntei a minha indignação à de José Hermano Saraiva. Quando se mede a quantidade pela qualidade, é normal que outros autores tenham arrecadado o prémio primeiramente.
 
Mas este facto nem sequer corresponde à verdade. Sofia de Mello Breyner conta na sua bibliografia com 13 títulos publicados na área da literatura infanto/juvenil: O Rapaz de Bronze; A Menina do Mar; A Fada Oriana; Noite de Natal; Contos Exemplares; O Cavaleiro da Dinamarca; Os Três Reis do Oriente; A Floresta; Tesouro; Contos; Histórias da Terra e do Mar; A Árvore e Era uma Vez uma Praia Lusitana.
 
Durante mais de uma década, a partir de 1976, Sofia esteve representada nas bibliotecas das escolas do Ensino Básico apenas com uma das suas obras, enquanto autores menores estavam representados com todos os seus livros, alguns somando mais de 30 títulos.
 
No caso do Prémio Gulbenkian, nem José Hermano Saraiva teria força, por muitos argumentos apontados, para que Sofia fosse galardoada entre os primeiros. Estava sozinho e o compadrio político possuía toda a força do mundo. Ainda hoje o possui. O nome de Sofia só foi indigitado quando o bodo já estava devidamente distribuído. Daí, a sua recusa em apresentar-se na Gulbenkian.
 
Mas não é só. Certo dia telefonou-me para me perguntar: «Soledade, você conhece jornais ou revistas que tenham publicado críticas ou recensões sobre alguns dos meus livros?». Respondi que não, que não conhecia. Sofia, então, esclareceu-me: «Sabe, há um editor japonês que quer editar um livro meu e pediu-me para lhe enviar algumas críticas. Mas só encontro as que a Soledade publicou, não encontro mais nada. E não me parece bem enviar-lhe só as suas, não acha?».
 
Ignoro como terá, Sofia, resolvido este assunto. Sei apenas que sempre fiz referência aos seus livros, quer tratando-se de um título novo ou de uma reedição, nos vários anos em que desempenhei essa função no Expresso e no extinto Diário Popular (neste, semanalmente, durante cinco anos).
 
Numa outra ocasião, em conversa, Sofia também me confessou a sua mágoa pelo facto do seu livro “A Menina do Mar” ter sido utilizado para um belíssimo espectáculo para crianças, que passou num dos canais televisivos de Itália. «Aqui em Portugal nunca fizeram nada e a comunicação social ignorou por completo este trabalho dos italianos. Nem sequer a Televisão Portuguesa se mostrou interessada em passá-lo no nosso país» – Desabafou.
 
Palavras sentidas de quem tem apenas a seu (des)favor a grande qualidade literária da sua obra destinada aos mais pequenos. A mediocridade não aceita comparações. Não gosta de perder. Só os medíocres rivalizam entre si. Dá menos nas vistas. A sua mediania torna-se menos evidente. A qualidade faz-lhes sombra e mostra, com mais evidência, as limitações dissimuladas de cada um.
 
Bom, saí da livraria com o livro de Sofia muito bem embrulhado e com um lacinho a enfeitar. Por pouco, pensei, Sofia sairia uma vez mais derrotada. Se a pessoa pretendente aos “Contos Exemplares” fosse menos conhecedora ou mais incauta poderia seguir o inconcebível conselho. Neste caso, foi o nome da autora que ganhou. Não direi de forma simples. Mas simplesmente pela falta de conhecimento da livreira. Aqui, ao contrário de outras situações, não havia capelinhas, comadres, compadres ou fadas madrinhas. Só havia desconhecimento. Facto que, por si só, já considero uma vitória. Sem dúvida alguma.
 
Soledade Martinho Costa
                                              
 
 
                               
publicado por sarrabal às 00:48
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