Sábado, 27 de Junho de 2009
Sendo São Pedro o padroeiro de Alverca do Ribatejo, com a sua antiga e lindíssima igreja dedicada ao orago da terra, as festividades em sua honra sempre se efectuaram, em parâmetros modestos, é certo, mas simbólicos na homenagem prestada ao santo apóstolo.
No final dos anos cinquenta, isso, sim, a festa foi de arromba. Espectacular, como se diz hoje. Alverca da «parte nova» enfeitou-se condignamente. Ruas iluminadas, barraquinhas de comes e bebes, carrosséis, quermesses, «salão de chá», bandas filarmónicas a tocarem em pequenos coretos, bailaricos, fogo de artifício, folclore, procissão e tudo o mais que as festas deste tipo costumam comportar.
Durante mais de uma semana a afluência de pessoas enchia as ruas, principalmente à noite, e o entusiasmo dos alverquenses juntava-se ao das gentes vindas de Vila Franca de Xira, Alhandra, Sobralinho, Póvoa de Santa Iria e outras localidades mais perto ou mais afastadas da vila, hoje cidade. No decorrer dos anos não se repetiram festejos como esses.
Há dia, falando com o presidente da Junta de Freguesia, soube da novidade: é intenção da Junta voltar a realizar, anualmente, idênticos festejos. Propósitos turísticos em Alverca do Ribatejo? Porque não?! Contamos já com o «Museu do Ar», o «Museu do Queijo» e o «Corso Carnavalesco Infantil do CEBI», a desfilar pelas ruas, subordinado a um tema diferente em cada ano (este ano lembrando Charles Darwin). Composto por centenas de crianças, professores, educadoras e pessoal auxiliar, todos participam na festa, que vai sendo conhecida e leva até Alverca do Ribatejo um mar de gente para assistir à passagem do corso – ao que parece, o único nestes moldes que se realiza no nosso país.
Com o apoio da paróquia, São Pedro foi festejado até há poucos anos atrás no adro da sua igreja: quermesse, leilão de bolos, música, bailarico, um artista convidado e muitos, muitos foguetes e morteiros. Actualmente, esses festejos deram lugar às celebrações das «Festas da Cidade», a decorrerem agora com maior relevância durante todo o mês de Junho no chamado recinto da feira.
Em 1965 saiu pela primeira vez a «Marcha de Alverca», a percorrer as ruas da vila, com um local escolhido para exibirem a respectiva coreografia. O grande impulsionador desta marcha, de seu nome Manuel Carola (já falecido) era ao mesmo tempo o coreógrafo, o ensaiador e o autor da música e da letra que os marchantes entoavam, sempre diferente em cada ano. Era ele ainda que acompanhava a marcha de modo a orientá-la. Graças a si, Alverca do Ribatejo conta hoje com várias marchas cuja actuação decorre nas noites de Santo António, de São João e de São Pedro, a encerrar as «Festas da Cidade».
Seguindo, talvez, as pisadas do avô, um dos netos de Manuel Carola é o conhecido João Tiago, elemento dos «Milénio».
Tudo isto serve para contar um pequeno episódio passado, exactamente, com uma das crianças que frequentava o CEBI. Foi o seu fundador e director, José Álvaro Vidal (que também já não se encontra entre nós), meu pessoal amigo e grande amigo das crianças, para elas construindo, «pedra a pedra», à custa da sua própria saúde, uma pequena/grande cidade dentro da cidade de Alverca do Ribatejo (o CECI), quem me contou a história, a mostrar como as crianças são mestres a aliar a ingenuidade e a graça para nos fazerem sorrir.
Um menino de cinco anos diz à mãe:
- Mãe, quero pedir-te uma coisa.
- Uma coisa? E o que é?
- Quero pedir-te uma nota grande.
- E para que queres tu uma nota grande?
- É para eu comprar uma marcha.
- Mas as marchas não estão à venda, filho. Não se podem comprar.
Resposta da criança:
- Ai, isso é que podem. Podem, porque o Carola tem uma!
Este diálogo conta já com alguns anitos. O que nunca imaginei é que o Manuel Carola tinha comprado a marcha que passava na minha rua!
Soledade Martinho Costa
São Pedro
Segunda-feira, 22 de Junho de 2009
Alho-porro.
A virtude das plantas, dos frutos e das flores encontra-se associada ao culto de São João, sempre à meia-noite, de madrugada ou ao meio-dia do dia 24 de Junho. Este princípio leva os habitantes do Barroso (Beira Litoral) a colocarem, ainda hoje, ramos de sabugueiro nos buracos das fechaduras «para não entrarem as bruxas que andam à solta durante a noite».
Flor do sabugueiro.
Do grupo das plantas consideradas mágicas destacam-se, entre outras, o rosmaninho, o alho-porro, o alecrim, o funcho, o trevo, a macela, a cidreira, o poejo, a sálvia, a dedaleira, a erva-pinheira, a arruda, o loureiro, o manjerico e a alcachofra – algumas a juntarem-se às fogueiras para servir de defumadouros com fins de esconjuro ou profilácticos.
Rosmaninho.
Por vezes, em certas localidades, e de acordo com a crença popular, continuam a guardar-se as plantas que receberam o orvalho milagroso, com o fim de «livrar do mau-olhado». Crê-se também que o alecrim, o rosmaninho, o funcho e o sabugueiro, colhidos com o orvalho bento, «preservam as habitações do raio»; que o trevo de quatro folhas e a arruda, apanhados à meia-noite, servem como talismã; que o alho-porro «afasta as entidades nocivas» e a erva-cidreira, colhida na noite de São João, tem o poder de «curar os feitiços».
Trevo de quatro folhas.
Mais complicada é (ou era) a prática relacionada com o azevinho-do-monte, que deve ser borrifado com vinho e levado para casa depois da meia-noite do dia de São João «para trazer a fortuna». No norte davam-se três voltas ao redor da planta antes de a colher, à noite, e com o ramo apanhado visitavam-se três igrejas com nomes de santas, batendo com o ramo nos degraus de acesso ao templo. Seguia-se uma ida à beira-mar para apanhar três ondas, sempre com o azevinho na mão, guardando-o depois durante todo o ano. Se o dinheiro não aparecia, pelo menos, aproveitavam-se os tronquinhos do ramo para queimar quando trovejava.
Azevinho.
Em Roriz (Minho) havia o costume de ir saudar e colher o azevinho «para comprar barato e vender caro», dizendo: «Meu azevinho novo/Aqui te venho colher/Para que me dês fortuna/No comprar e no vender/E em todos os negócios em que eu me meter». Para que a magia resulte, as plantas devem ser colhidas «antes que o Sol as toque e faça desaparecer o orvalho da noite».
Manjericos.
O manjerico é a planta que mais aparece nas grandes cidades, constituindo um presente que se oferece às pessoas amigas, enquanto a alcachofra – símbolo da ressurreição da Natureza – sempre foi a mais utilizada pelas raparigas em práticas e «sortes» divinatórias. Chamuscada nas fogueiras de São João, à meia-noite em ponto, se reflorir, indica «que se é correspondida nos amores».
Alcachofra.
Em Elvas (Alto Alentejo) atava-se a cada uma de três alcachofras, depois de chamuscadas, um fio vermelho, um preto e um branco. Expostas ao relento, se reflorisse a do fio vermelho, a rapariga casava com um rapaz solteiro, se a do fio preto, com um viúvo, se a do fio branco, ficava solteira. Ainda em Elvas, na capela de São João da Corujeira, existia uma grade de ferro que as raparigas costumavam morder na noite de São João «para casarem cedo»
A fava, a amêndoa, a cereja e certas flores, como as rosas, os cravos e os malmequeres, são igualmente utilizadas nesta data para «sortes» e adivinhações.
O culto das flores e das plantas reporta-se à Antiguidade, quando se coroavam com flores ou folhas de loureiro, carvalho ou oliveira as estátuas dos deuses, os poetas, os heróis e também os mortos. Nas festas e nos banquetes as pessoas apresentavam-se coroadas, conferindo os Romanos, a título de recompensa, coroas de folhagem (as coroas de louro) para simbolizar o poder, a sabedoria e a coragem.
Soledade Martinho Costa
São João Baptista
In «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.V
Ed. Círculo de Leitores
Sábado, 20 de Junho de 2009
- Quem é a mais bonita? Vamos, digam lá. Quem é a mais bonita?
- Sou eu! Sou eu a mais bonita!
- E a mais perfumada?
- A mais perfumada sou eu!
- E a mais garrida?
- Eu, eu! A mais garrida sou eu!
O vento agita o corpo que não se vê mas que se sente.
- Estouvadas. – Resmunga ele. – Muito estouvadas são as flores. E vaidosas? Nunca vi. Passam o tempo todo nesta lengalenga. A quererem saber qual é a mais bonita, a mais perfumada, a mais garrida…Bem gostava eu de não as ouvir. O pior, é que passo por elas constantemente. Que remédio tenho, pois, se não escutar aquilo que dizem. Mas quando me zango…Ah! Quando me zango a sério, sopro nas suas pétalas com tal fúria que todas se calam e estremecem com receio da minha zanga e da minha força!
- Fazes mal. – Reponde-lhe, loiro de Sol, um campo de trigo. – Não deves zangar-te nem mostrar às flores a tua fúria. Repara que também tu és falador. Raramente te calas. Sou eu quem to diz, pois sou eu quem escuta a tua voz a toda a hora. E estouvado também o és. Porque, sem me pedires licença, fazes ondular o meu corpo de espigas como um mar revolto. Além disso, tens vaidade da tua força. A prova é que dela te ufanas. Tanto, como as flores se orgulham da sua beleza, do seu perfume e da sua cor. Pensa primeiro nos teus próprios defeitos, amigo Vento. Pensa primeiro neles, para melhor saberes compreender e desculpar os defeitos dos outros…
E o vento, gira que gira, numa roda-viva, vai esmorecendo, vai esmorecendo, vai calando a fala. Até que deixa de se ouvir. O vento está a meditar. E a seara de trigo torna-se então plana como uma estrada aberta.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que a Primavera me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
Quarta-feira, 17 de Junho de 2009
Hoje que a tempestade
Parece ter passado
E deixado o firmamento
Com o azul de outrora
Que as nuvens de um cinzento
Mais carregado
Abandonaram o céu desta incerteza
Talvez o tempo me permita agora
Respirar outros aromas
Colher uma flor na aridez dos montes
Deixar que ao meu encontro venha a paz
Que faz sonhar caminhos, metas, horizontes.
Dizer que se é feliz
É utopia
Pior. Dizer que se é feliz
É um pecado.
Não o direi jamais
Jamais repetirei essa loucura.
Em silêncio de monja
Em clausura
Impõe-se guardar recato
Do que de bom o destino nos traçou.
A vida não aceita
Que se confesse
De forma aberta e pura
O que nos vai na alma
O que alcançámos e veio ao nosso encontro
Para nos dar um pouco de ventura.
Soledade Martinho Costa
Sexta-feira, 12 de Junho de 2009
Marcha de Alcântara.
Após algumas rupturas pelo meio, os festejos dos santos populares regressaram a Lisboa a partir de 1925, a impor a sua tradição e colorido, reabrindo-se as portas do Mercado da Ribeira, fechadas ao povo desde 1916. Em 1932, além das cerimónias litúrgicas, o figurino dos festejos renova-se no que respeita aos arraiais, ao enfeite de ruas, becos e pátios alfacinhas, e mesmo aos próprios «tronos de Santo António».
Marcha do Alto do Pina.
Nesse ano são incluídas as «marchas populares», com desfile colectivo dos moradores de cada bairro da capital, ao som de músicas alegres, a obedecer, tal como as letras, o trajo dos marchantes e a própria ornamentação dos arcos enfeitados com balões, a um tema alusivo – histórico ou referente às características de cada bairro.
Marcha da Mouraria.
Poder-se-á dizer que a ideia foi apenas retomada em novos moldes, isto é, recriada e (re)construída como criação lúdica de um espectáculo de rua, apropriado depois pelo povo reunido nas colectividades de recreio dos bairros da capital, que torna as marchas num símbolo festivo, popular e urbano, e um dos pontos altos das festividades lisboetas, tal como então foram concebidas e hoje as conhecemos.
Marcha de Marvila.
Muito mais remotamente exibia-se já a chamada «Marche aux Flambeaux» (adaptada da tradição francesa, popularmente designada por «Marcha ao Flambó», com origem provável nas «danças de Entrudo»), organizada por cada bairro, mercado ou local onde se festejasse o Santo António, formada por pequenos grupos (trinta a quarenta participantes), que desfilavam sem grande aparato de apresentação ou de coreografia, geralmente dirigidos por um ensaiador que os orientava utilizando um apito, exibindo-se os marchantes, preferencialmente, «às portas e em frente das janelas dos Paços Reais, dos palácios da nobreza ou das casas ricas».
Marcha do Bairro Alto.
Nesse ano (1932) foi instituído um prémio para a melhor marcha, tendo concorrido apenas três bairros de Lisboa: Alto do Pina, Bairro Alto e Campo de Ourique. Outros três limitaram-se a participar: Alcântara, Alfama e Madragoa. Dois anos depois concorreram doze bairros. A ideia estava lançada e bem aceite por toda a cidade, tornando-se as marchas na maior manifestação etnográfica dos festejos de Santo António, com os desfiles e exibições habituais na Avenida da Liberdade e Parque Eduardo VII – à conquista do prémio para a melhor marcha, sempre efusivamente festejado por quem o alcança.
Marcha da Madragoa.
Até 1950 as marchas sofreram alguns interregnos, embora voltando sempre com nova vitalidade, colorido e maior esplendor. A partir de 1990 tomam ainda, se possível, maior relevo, integradas nas Festas de Lisboa, com o início dos festejos no dia 1 de Junho e a prolongarem-se até ao dia 30.
Marcha de Alfama.
Em 1998 adoptou-se um novo figurino, com as celebrações a incidirem de 1 a 13 (finalizando com as marchas) abrangendo as áreas do Terreiro do Paço ao Largo do Chafariz de Dentro.
Marcha do Beato.
Em 1999 optou-se pela noite do dia 12 até 30 de Junho, com as festividades a decorrerem desde o Terreiro do Paço – onde foi armada uma praça e efectuada uma corrida de toiros, a lembrar tempos antigos – até à Praça de D. Luís. O calendário repetiu-se no ano 2000, contemplando as celebrações a zona ribeirinha e o Parque Eduardo VII.
Marcha de Alcântara.
Em 2001 manteve-se a mesma data, agora com os festejos espalhados pela cidade, oferendo a maior diversidade no que respeita a animação, mas tendo como ponto central os bairros históricos. Actualmente, concorrem dezoito bairros (ou marchas), a que se junta a Marcha Infantil da Voz do Operário, saída pela primeira vez em 1966 e depois apenas em 1990 para continuar até hoje.
Marcha Infantil da Voz do Operário.
Aos festejos associaram-se em 1958 as «noivas de santo António», numa iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, com mais de uma dezena de casais unidos religiosamente numa única cerimónia no dia 13 de Junho, iniciativa interrompida em 1973 e só retomada vinte e quatro anos depois (1997), mantendo-se nos anos seguintes.
Noivas de Santo António.
As cerimónias litúrgicas contam, no dia 13, com missa de hora a hora, das sete da manhã ao meio-dia, celebradas na Igreja de Santo António.
Interior da Igreja de Santo António de Lisboa.
A procissão sai às dezassete horas, apenas com o andor do santo, para percorrer algumas das ruas de Alfama.
Procissão de Santo António de Lisboa
No trajecto juntam-se ao préstito processionário os andores de São João da Praça, São Miguel, Santo Estêvão e São Tiago, patronos dessas paróquias.
São João da Praça, Santo Estêvão, São Miguel e São Tiago.
No retorno, em frente da Sé, é proferida uma homilia por um bispo ou pelo próprio patriarca e há a actuação de um grupo coral. As celebrações religiosas encerram com outra missa pelas vinte e uma horas.
Soledade Martinho Costa
In «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.V
Terça-feira, 9 de Junho de 2009
Hoje não vou escrever poemas eruditos
Que me proponham forma, métrica, vanguarda
Herméticos, medidos, depurados
A exaltarem o consenso das elites.
Mesmo que pareça mal aos literatos
Vou usar, das palavras que conheço
Apenas as mais simples, triviais
Iguais a lágrima, raiva, morte, drama
E vou gritá-las aos ouvidos surdos dos humanos
Para dizer bem alto que respiro
Que estou ainda viva e amo a vida
A vida que me arrasta e me fascina
Embora disso me acuse e me arrependa.
Para dizer bem alto, sem pudor
Plena de experiência e de juízo
Que não entendo os homens nem o Mundo
Este Mundo vil, fútil, agressivo
Este Mundo impudente, empedernido
Coberto de luxúria e de preguiça
Onde transito por ora a tempo todo.
Para dizer bem alto, sem receio
Pelos deuses e pelo seu castigo
Que não entendo a guerra, a fome, a injustiça
A constância das horas condenadas
O respirar dos dias sem começo
As noites dos segredos violados
A mentira, a opressão, o medo
O desencanto na voz dos rios tristes
O holocausto dos actos desmedidos
Os crimes cometidos sem castigo.
Que não entendo os homens nem o Mundo
Este Mundo de tretas e de letras
Onde o peso das palavras dos poetas
Não muda um milímetro sequer
A face ao planeta.
Porque hoje vi seis jovens condenados
Seis corpos ainda de criança
Famintos, doentes, destroçados
Seis infantes sem nome, torturados
Sem direitos, sem voz e sem justiça
E um deles não era por milagre
O meu filho ou o teu
No rosto, na idade, no recorte da boca, nos cabelos.
Porque hoje vi seis jovens condenados
Por defenderem aquilo em que acreditam
De mãos atadas, imundos, mutilados
Cobertos de feridas e excrementos
Mas de olhos postos em nós
Em mim, em ti
À espera de um sinal, de um recado.
É por isso que escrevo estas palavras
Estas palavras simples e as remeto
Sem esperança, sem data, sem endereço
Porque afinal de contas o que faço
Após este débil arremesso
É ficar aqui silenciada
Alimentada de raiva e de impotência
A rabiscar as letras de um poema
Que não pode ser mais que um desabafo.
Soledade Martinho Costa
Domingo, 7 de Junho de 2009
Estendeste a mão
Colheste o fruto
Amaste a terra sobre a semente.
Dos sentimentos sentiste o peso
Roubaste aos dias
Dores e tormentos.
E foste a esperança que afasta o medo
Foste a palavra que acalma a fome.
A liberdade e a Natureza
São a verdade que o teu poema
Despe e descobre.
Soledade Martinho Costa
Do livro «O Nome dos Poemas»
Segunda-feira, 1 de Junho de 2009
- Ora, então, seja bem aparecido. Isso é que foi dormir um sono bem dormido! – Cumprimenta o gafanhoto empoleirado na folhagem que enfeita o muro onde o sardão fez a toca.
- Viva, senhor Gafanhoto, prazer em vê-lo! Como tem passado? – Retribui o sardão, olhinho vivo, corpo a receber a quentura das pedras que lhe servem de casa.
- Tenho passado bem, obrigado. A fazer pela vida, como posso…
Liberto do letargo em que esteve mergulhado durante os meses do Outono e do Inverno, o sardão, bicho de sangue frio, acorda nesta altura do ano. E como gosta de saber o que se passa à sua volta, pergunta, a mostrar, já fora da toca, a cor verde e azul das escamas do seu fato:
- E por aqui, senhor Gafanhoto, algumas novidades?
- As do costume. – Informa o insecto saltador. – Chegou a Primavera, como sabe. Agora, é viver com a Natureza em paz e amizade.
A rã intromete-se e coacha na beira do riacho:
- Gostei de ouvir, compadre. Assim é que é falar! – Diz ela. E logo, zombeteira, vestidinho verde: - É por isso que não deve chegar-se à boca do Sardão. Quem dormiu tantos meses de barriga vazia, deve acordar, certamente, com uma fome de respeito!
O sardão disfarça. Finge que não ouve. Mas a rã conhece-o de sobejo. E já tem visto a gula dos seus dentes…
Pouco à vontade, o gafanhoto dá um salto no ar:
- Lembrei-me agora de um encontro que marquei com um amigo meu noutro lugar. Adeusinho senhores, até mais ver!
E parte sem demoras. Um salto aqui, outro salto acolá, a pensar nas cautelas que um pobre gafanhoto é obrigado a ter. A rã, essa, dá um mergulho nas águas do riacho. Isso lhe basta para a fazer feliz. Quanto ao sardão…Bom, o sardão lá fica no seu posto. Contente consigo próprio e com o Mundo. Rabo comprido, as quatro patas espalmadas sobre o muro. A matar saudades do Sol que lhe sabe tão bem àquela hora cedinho da manhã.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Histórias que a Primavera me Contou”
Ed. Publicações Europa-América