Quinta-feira, 26 de Fevereiro de 2009
A Soli entrou no carro do pai. Depois da escola, o regresso a casa. Acomodada na cadeira, no banco de trás, aperta o cinto e comenta:
- A minha cadeira e o cinto, chama-se segurança, papá?
- Sim, Soli, são mecanismos de segurança…
- E são sempre precisos?
O pai responde:
- Quando fores mais crescida já não precisas da cadeira, mas do cinto sim…
- Tu também?
- Também. Não vês que o papá põe sempre o cinto?
Nesta altura o pai recorda-se de Angola.
- Em Angola os meninos viajam no banco da frente e não usam cadeira nem cinto, lembras-te Soli?
- Sim, papá, lembro-me.
O pai continua:
- Pois é. Esses meninos não têm segurança. Angola ainda não adoptou medidas de segurança na estrada. Aqui em Portugal há outra disciplina, outras leis para protecção das pessoas e, especialmente, das crianças quando viajam de carro, quer em percursos longos ou não…
A Soli ouvia com atenção.
- Achas que os meninos que andam de carro em Angola correm perigo? – Interroga.
- Acho que sim, pode haver um acidente…
- Então, Portugal tem mais segurança, papá?
- Nesse aspecto, tem, sim, Soli. – Confirma o pai.
E a Soli, com ar de quem entende a diferença no que toca a regras de viação entre os dois países, pergunta:
- E tu sabes, papá, porque é que Portugal tem mais segurança?
- Diz lá. – Responde o pai. E logo a Soli:
- Ora, papá, é porque Portugal já está reformado!
E aqui está como a Soli vê a diferença do problema do trânsito que se verifica entre Angola e Portugal.
Com esta simples argumentação, a Soli lembra-nos quanto é valiosa a sabedoria dos mais velhos. No seu raciocínio, a reforma encontra-se relacionada com a velhice e esta associada ao conhecimento e à sabedoria. Ainda bem que uma menina de seis anos pensa desta maneira. Dá-nos mais confiança no futuro. Mais esperança nas crianças que hão-de ser os homens de amanhã. Os idosos ficarão, com certeza, mais defendidos. Serão considerados mais úteis. Sinónimo, sem dúvida, de mais respeito e de mais carinho.
Soledade Martinho Costa
Segunda-feira, 23 de Fevereiro de 2009
«O Baloiço», Jean-Honoré Fragonard, Wallace Collection, Londres.
O tempo avança, as sociedades modificam os seus hábitos e costumes, as tradições alteram-se, ou cessam mesmo por completo a sua passagem cíclica pelo calendário, perdidas cada vez mais no pó dos tempos. Umas vezes restando a recordação ainda viva, por mais recente, na memória dos mais velhos, outras nem isso, visto as novas gerações, na sua maioria, quase sempre ignorarem o que ficou para trás. Naturalmente, não por culpa sua, acrescente-se. Em parâmetros etnográficos, inúmeras tradições do passado acabam, geralmente, circunscritas às páginas de livros que ninguém lê.
Seguindo este critério, não deixa talvez de ser oportuno dar espaço nestas linhas a uma tradição que se perdeu, segundo parece totalmente na memória dos povos, ligada, em parte, ao Carnaval. Trata-se dos chamados «baloiços festivos», conhecidos em Portugal pelo nome de «redouças», «redoiças» ou «retoiças», espalhados um pouco por toda a Europa.
Vamos encontrá-los na Sabóia (França), erguidos pelo Carnaval; na Calábria (Itália), pelo Natal, armados dentro de casa pelas raparigas e utilizados em praxes religiosas; em Cádiz (Espanha), também pelo Natal, dentro e fora das casas, erguidos por rapazes e raparigas e mantidos até ao Carnaval; na Grécia, pela Páscoa, utilizados para diversos rituais; na Rússia, igualmente pela Páscoa e noite de São João, balouçando-se neles os lavradores, com a crença de que «quanto mais alto chegassem melhor seria a colheita».
Em Portugal os baloiços eram armados pela Páscoa, servindo a vários jogos entre rapazes e raparigas. No Minho davam-lhe o nome de «bombos», enquanto no alto Alentejo tinham a designação de «retoiças brincalhonas», por serem utilizados pelas mulheres nas horas de descanso dos trabalhos agrícolas.
Com manifesto sentido de um ritual mágico-supersticioso e purificador, o mesmo costume verificava-se, segundo parece, em certas localidades da Alemanha e da Áustria na altura das sementeiras e também pelo Carnaval.
Soledade Martinho Costa
Sexta-feira, 20 de Fevereiro de 2009
O «Entrudo» e a «Quaresma», Canelas, Vila Nova de Gaia.
Por aldeias, vilas e pequenas cidades portuguesas, ainda não se perdeu a tradição de se efectuar na noite do último dia de Carnaval (Terça-Feira Gorda) a «Queima do Entrudo», por vezes acompanhado de uma boneca, a «Quaresma», quase sempre à meia-noite em ponto, antecedida de «julgamento» ou da leitura de «testamento» do popular boneco, um dos símbolos desta quadra, a marcar, em diversas localidades, o ponto alto dos festejos carnavalescos e o seu encerramento.
Leitura do «Testamento do Entrudo», Canas de Senhorim, Nelas.
Poderá mesmo dizer-se que o ritual tem vindo, nestes últimos anos, a ganhar gradualmente entre nós um novo impulso, graças ao empenho de algumas colectividades de recreio ou de grupos que se esforçam na recuperação desta prática tão do agrado do povo.
«Queima do Entrudo», Almodôvar, Beja.
Não deve deixar de referir-se, todavia, a semelhança deste costume carnavalesco com o que se verifica em vários países da Europa, a mostrar o seu carácter tão universal quanto remoto. A salientar há o facto de ser efectuado de duas formas distintas entre si: a primeira, que antecede a «queima», pela alegria e brincadeiras, pelo excesso de comida e de bebida, pela música e pelas danças. A segunda, que preside à «queima» do boneco, pelo sentido de desagravo e de castigo, com a sua figura destruida pelo fogo.
«Enterro do Entrudo», Brunhoso, Mogadouro.
Ao longo dos tempos, tem sido também ponto de encontro de opiniões a ligação da «queima» do boneco ao final do Inverno e à chegada da Primavera. Naturalmente, a fazer lembrar sobrevivências de práticas pagãs que se foram sacralizando e mantiveram até aos dias actuais, continuando as populações a atribuir-lhe fins mágico-profilácticos de purificação e excomunhão de poderes considerados maléficos.
«Queima do Entrudo», Torrão, Alcácer do Sal.
Por isso, na Rússia, sobretudo em zonas rurais, aparecia outrora nesta data o «Metsik», «Espírito dos Bosques», ou «Ancião da Floresta», considerado como deus da fertilidade, boneco umas vezes vestido de homem, outras de mulher, amarrado no topo de uma árvore, tendo culto diário por meio de preces e oferendas, como prática mágica de protecção contra todos os males, especialmente em favor dos rebanhos.
Carnaval na Rússia.
Hoje o boneco dá pelo nome de «Maslenitsa», procedendo-se à sua «queima» ritual, igualmente em analogia ao Inverno e à Primavera, após sete dias de duração do Carnaval.
«Maslenitsa», Rússia.
O «Maslenitsa» está tradicionalmente associado às panquecas, que o povo saboreia nestes dias, servidas quentes e com diversos recheios, acrescidas da superstição de que «ao comê-las o Sol irá brilhar com mais luz e calor».
Panquecas, manjar cerimonial do Carnaval na Rússia.
Na Alemanha o destaque vai para as festividades carnavalescas que têm lugar nas cidades de Colónia, Dusseldorf, Mainz e Aachen. Aqui, a figuração simbólica do Carnaval é representada por um boneco vestido, calçado e com chapéu, que costuma ser enterrado, mais a sul do país, enquanto mais a norte é queimado numa fogueira, a dar os festejos por encerrados.
O «Nubbel».
O «Nubbel», assim é conhecido por toda a Alemanha, aparece, por norma, colocado nos locais onde vai festejar-se o Carnaval.
Retirado somente na Terça-feira para proceder-se ao seu enterro, os acompanhantes do «Nubbel» trajam de luto, com a «queima» a realizar-se, rigorosamente, à meia-noite. Quase desaparecida, esta tradição voltou, nos últimos anos, a ganhar nova força por toda a Alemanha.
«Zamalzain»
Outra figuração sempre presente nesta quadra em diversas localidades da Alemanha é o popular «Zamalzain» (o cavalo com saias), representado por uma espécie de bobo carnavalesco.
Desfile de Carnaval, Nice.
Em França, Nice continua a ser a cidade que marca a preferência na época carnavalesca.
Corso de Carnaval, Nice.
O boneco, conforme as regiões, é afogado, decapitado ou queimado, caso do «Saint-Pansard», um boneco pançudo, que tem o seu fim na Terça-feira à noite.
«Gilles».
Os «Gilles» representam outras figuras representativas do mais conhecido Carnaval da Bélgica, efectuado na cidade de Binche( a lembrar os nossos «caretos» do Nordeste Transmontano).
Aparecem em grupos pelas ruas, vestidos rigorosamente de igual, com fatos e adornos antigos, ricos e coloridos, por vezes ostentando chapéus de plumas que atingem considerável altura.
Outras vezes com máscaras cobertas de cera, onde se destacam os característicos óculos e bigodes retorcidos.
Os «Gilles» com os tradicionais cestos de laranjas.
Para demonstrarem a sua generosidade, oferecem laranjas a quem com eles se cruza, «símbolo da fertilidade e do trabalho do homem». Conforme manda o preceito, somente é permitido vestirem-se de «Gilles» os naturais da cidade de Binche.
Corso de Carnaval, Patra.
Na Grécia, com o Carnaval a ter a duração de uma semana, o realce vai para a cidade de Patra. Por todo o país o boneco leva o nome de «Senhor Carnávalos», e a sua sorte, como a da maioria dos seus congéneres, é a fogueira, ateada no último domingo dos festejos.
Desfile nocturno do Carnaval em Patra.
Na ilha grega de Corfu, que aufere, igualmente, de grande projecção nesta quadra do ano, o «Senhor Carnávalos» tem direito à leitura do seu «testamento», antes de proceder-se, no domingo, à simbólica «queima».
O «Tetális», Grécia.
Por toda a Grécia, a época carnavalesca é anunciada por um outro boneco, o «Tetális», transportado no cimo de um carro, a percorrer as ruas, mal desponta o primeiro dia de Carnaval.
O «Chicharro», Espanha.
Em Espanha, onde os festejos carnavalescos ganham particular relevo em Salamanca, Cádiz e Tenerife, o símbolo do Carnaval é representado por um «Chicharro» ou uma «Sardinha», sendo esta última considerada a mais popular. Em muitas outras localidades de Espanha e mesmo em Madrid, o tradicional «enterro da sardinha» apresenta extenso cortejo com a maioria dos acompanhantes mascarados ou trajando de luto.
Carro alegórico do «Enterro da Sardinha», Espanha.
Tanto o «chicharro» como a «sardinha», na sua maioria esculpidos em madeira e transportados em carros alegóricos, têm a sua «queima» na tarde de Quarta-Feira de Cinzas (primeiro dia da Quaresma).
Na Itália, além do popular boneco, vamos encontrar algumas máscaras representativas de várias das suas cidades:
«Arlecchino», de Pérgamo e Veneza.
«Pantalone»,de Veneza.
«Colombina», de Veneza.
«Pulcinella», de Nápoles.
«Dott Balanzone», de Bolonha.
«Gianduia», de Turim.
Nestas e noutras cidades e localidades italianas, desde tempos remotos e até hoje, o «Senhor Carnevale» morre sempre de uma causa só: por ter comido demais (a dar motivo a diversas encenações), realizando-se o seu «enterro» com a leitura do «testamento» e a respectiva «queima» no último domingo dos festejos. Na região da Calábria adopta o nome de «Nonno» (avô), com a figuração a mostrar um homem idoso, mais uma vez em alusão ao final do Inverno, seguindo-se as restantes fases do ritual.
Veneza guarda para si a consagração de ter sido considerada «a máscara de Itália». Em tempos passados, o Carnaval começava naquela cidade no dia 26 de Dezembro, aprovado por decreto-lei, decorrendo com todo o folguedo e número incontável de mascarados até à Quarta-Feira de Cinzas.
Após essa data era concedida uma licença especial a quem a solicitasse, que permitia o uso da máscara e do trajo carnavalesco. Mesmo durante a Quaresma, era normal decorrerem festejos carnavalescos, embora de forma mais discreta e restrita.
Actualmente, o Carnaval em Veneza tem a duração aproximada de dez dias, respeitando a data estipulada no calendário.
Além do «enterro do João», outras «queimas» e «enterros» rituais percorrem ciclicamente o calendário, sendo disso exemplo «a queima do compadre e da comadre» pelo Carnaval; «a queima da velha», pela Quaresma; «a queima de Judas» pela Páscoa; «a queima de São Martinho», em Novembro; «o enterro da carne», na Quaresma (caído em desuso nas últimas décadas); «o enterro do bacalhau», pela Páscoa e o «enterro do galo» pelo Carnaval e pela Páscoa
Soledade Martinho Costa
«Queima do Compadre e da Comadre», Alvarelhos, Carregal do Sal, Viseu.
Foto: Lino Dias.
Domingo, 15 de Fevereiro de 2009
O «Dia dos Namorados» foi ontem, mas a foto vale bem um dia de atraso!
Soledade Martinho Costa
Quarta-feira, 11 de Fevereiro de 2009
Hera
Já desperto, eis o Sol, nesta manhã de Inverno, curioso como só ele, a espreitar por tudo quanto é canto. Dá os bons-dias e lá começa, num afã, a tornar mais luminosos e menos frios os campos onde a geada de manso se instalou.
Entorna-se pelo povoado. Cobre os caminhos e as telhas das casas enfeitadas de musgo. Espreguiça-se nos muros onde trepam como estrelas verdes as folhas da hera. Desce ao rés do mar e cumprimenta as ondas, meninas buliçosas em correrias loucas. Sobe ao monte e deixa-se rolar por ele abaixo a brincar às escondidas pelos moitões de tojo e urze roxa, pelos tufos de rosmaninho e alecrim, pelos maciços de giesta, de cardos e silvados.
Soledade Martinho Costa
Alecrim
Do livro “Histórias que o Inverno me Contou”
Ed. Publicações Europa-América
Terça-feira, 10 de Fevereiro de 2009
A tarde toma agora o lugar da manhã que parte. Instala-se, sacode o algodão das nuvens e põe-se toda de um azul-celeste. Tão azul se põe, que o céu se confunde com o mar, a mostrar-se lá ao longe, aos olhos do povoado. Parecem um só de braço dado: o mar e o céu.
Mas verde e não azul, fica o mar quando está zangado. E cinzento o céu, quando, sem revelar porquê, a tristeza o invade.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Histórias que o Inverno me Contou”
Ed. Publicações Europa-América
Segunda-feira, 9 de Fevereiro de 2009
O vento sudoeste acaba de chegar. E sopra, sopra como só ele sabe: «Vvvvvv…….Vvvvvv», a ordenar à chuva que venha. Que não demore, pois é ele quem manda.
Com o vento veio a noite, agasalhada na sua capa de breu. É nela que a noite oculta a escuridão que lança sobre a Terra para que esta adormeça. E também as sombras, que num bailar constante, têm por missão velar-lhe o sono, até que a Terra desperte e o dia amanheça.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Histórias que o Inverno me Contou”
Ed. Publicações Europa-América
Domingo, 8 de Fevereiro de 2009
Assim se dizia dos homens alentejanos que a falta de trabalho e a fome obrigavam a esmolar pelas vilas e cidades afastadas das suas terras, por lá andando, por vezes 15 dias e mais, regressando a casa quase sempre de mãos vazias.
Lembro-me
De os ver passar na minha rua
Em grupo
Grupo pequeno
Três a quatro homens
A capa alentejana pelos ombros.
Vinham
Do “alto” da vila
Hoje cidade
Dividida como dantes
Em parte nova e parte antiga.
Na memória dos olhos
Guardo
As suas capas
Castanhas
Cor da terra.
As cabeças cobertas
Com o lustro dos chapéus
A bota grossa
São imagens
Que ficaram na distância do olhar.
Quem seriam esses homens
A deambular pelas ruas?
E tinha medo
Um medo
Que me subia até aos ombros
E se sentava neles.
Espreitava-os
Pela cortina da janela
Falava-se de assaltos
De crimes e outras histórias
Tão falsas
Como a mentira do meu País de então.
Quando surgiam de uma esquina
Era o silêncio que lhes fazia escolta
Ninguém os conhecia
Quais seriam os seus nomes
Teriam casa
Mulher, filhos, pais, família?
Circulavam de porta em porta
A subir
A descer escadas
De mão estendida
Num acanhamento
Onde eu não percebia
A mágoa e a revolta.
E nunca vi um gesto
Ouvi uma palavra
Dei por ninguém
Que se tivesse aproximado
Daquele grupo de homens
Sem alternativa
Sem outra condição
A não ser a de pedir
Estender a mão
A quem por vezes nada tinha.
Caminheiros do desamparo
Da solidão
Oh! donos de tão grande pobreza
Estais, por acaso, ainda vivos?
Passaram tantos anos…
Tempo que me pesa demais no coração
E só hoje acordei neste poema.
Porque hoje sei
Que a desventura
A falta de trabalho
A fome
A miséria
Os fazia surgir como a formiga
Em tempo (in)certo.
Com que abandono, meu Deus
Com que tristeza
Aqueles passos
Soam de novo aos meus ouvidos.
Nesta hora eu os ouvisse
Pressentisse
Pedir-vos-ia perdão
Pela fartura do pão
De tão sobejo para a minha fome
Demasiado para a minha mesa.
Pela bênção de não ter
Como vós
De depender da caridade alheia
De não sentir
Como vós
O infortúnio de regressar um dia a casa
Ao ponto de partida
À mesma fonte de dor e de destino
Sem nada levar na algibeira
Além do pó da estrada
Do cansaço dos dias
Das horas de lonjura
Das saudades a pulsar nas veias.
Da longa
Da inútil caminhada
Com o fracasso
O receio e a mesma fome
A roer os ossos e as ideias.
Oh! Alentejo
Que não voltes mais
A meter medo
Às crianças das vilas
Das cidades
Ao deixares partir os teus homens
Dos lugares que amam.
Soledade Martinho Costa
Sábado, 7 de Fevereiro de 2009
O Sarrabal conta com mais um prémio (Prémio Dardos), enviado pelo Ricardo N. do blog Golfinho Alegre (http://golfinhoalegre.blogspot.com), a quem agradeço a gentileza. Falta completar o resto das regras. Para já, o selo está colocado, assim como o nome de quem o oferece. As restantes regras, prometo cumpri-las. O Prémio Dardos tem por finalidade «reconher o mérito de cada blogueiro ao transmitir valores culturais, éticos, literários, pessoais e outros, que demonstrem a sua criatividade através do pensamento e das suas palavras. É também uma forma de confraternização entre os blogueiros e a maneira de reconhecer um trabalho que valorize a Web».
Abraço amigo para ti, Ricardo!
Soledade Martinho Costa
Terça-feira, 3 de Fevereiro de 2009
Assim que a casa do Bom Velho de Cima ficou pronta, renascendo das ruínas em que se encontrava quando a adquirimos, comecei a passar lá alguns meses no ano. Por norma o Março e o Abril seguidos depois pelo Julho e o Agosto.
Tratando-se de uma casa grande, também o Natal tem sido contemplado algumas vezes, com a família reunida. E, não há dúvida, a Consoada tem outro sabor com o quentinho da lareira e da salamandra. Até o presépio, a árvore de Natal e os enfeites natalícios parecem melhor enquadrados naquele ambiente rústico onde não falta, fora da porta, a paisagem linda e invernosa e o frio que se faz sentir ali com maior intensidade do que em Alverca do Ribatejo ou no Algarve, locais onde estou habituada a passar esta quadra.
Gostando como gosto de animais, é natural que depressa os cães da aldeia se tornassem meus amigos. Na altura em que se passou o episódio que dá motivo a esta crónica, tinha eu começado a servir, diariamente, um verdadeiro banquete aos quatro cães que faziam a vigília diurna, mas especialmente nocturna, do lugar. À solta, mas com donos, os animais não estavam muito habituados a mimos. Talvez porque as pessoas do campo vejam os bichos com olhos diferentes dos olhos das pessoas da cidade. Ali, os animais ou são para comer, para vender ou para trabalhar. Neste caso, a tarefa que competia aos quatro cães era, principalmente, a de serem os «guardas-nocturnos» do lugar. E como «cão que ladra, não morde», poderei acrescentar que o ditado se aplicava em absoluto aos quatro bichos. Morder, não mordiam, mas que assustavam quando se punham, desenfreadamente, a ladrar ao mesmo tempo, lá isso, assustavam.
Para lhes fazer a comida, costumava comprar num talho em Condeixa bofe ou miudezas de frango que depois cozia com arroz e pedaços de cenoura. Sempre em quantidade suficiente, cozinhada e guardada depois no frigorífico, em recipientes destinados apenas para esse efeito. Enquanto durava, retirava a porção necessária, que aquecia no micro-ondas na altura de servir a refeição aos animais.
Poucas pessoas sabiam destes requintes em prol dos quatro rafeiros, habituados a passar fome ou sede, frio ou calor. Em locais tão pequenos como o Bom Velho de Cima há coisas que devemos calar por prudência…
Durante os meses que passava ali era essa uma das minhas tarefas: fazer a comida dos cães – com o grato prazer de lha dar depois. Só deixei essa missão quando comecei a aperceber-me da atitude dos donos: cessavam por completo a assistência alimentar aos bichos, que deveria ser da sua responsabilidade. E comecei também a ter consciência de que aquilo que fazia por amor aos animais estava a tornar-se numa quase obrigação imposta pelos donos dos bichos. Um dia perguntei:
- Então, deixaram de dar comida aos vossos cães? – E logo a resposta:
- Ora, para quê, a senhora dá. E tão boa que chega a ser pecado. Aquilo não é comida para cães, é comida para gente!
Ignorei a crítica e prossegui:
- Bom, mas o que fazem à comida que lhes davam antes de eu chegar?
- Os nossos restos? São para as galinhas e os porcos. Para a engorda.
Não gostei da resposta. Não gostei mesmo nada. De tal maneira que, aos poucos, a partir daí, com alguma pena minha, conquanto continuasse a dar-lhes um ou outro «acepipe», deixei de ser a cozinheira dos pobres rafeiros.
Certo dia entrei num outro talho, que não o do costume. A dona, que estava ao balcão, explicou:
- Aqui não vendo bofe nem miudezas de frango. Mas tenho outra coisa de que os cães gostam muito: são goelas de borrego; cartilagens. Já estão embaladas e congeladas. É o que dou aos meus e olhe que são cães de raça!
Confiei. Aquisição feita, levei para casa o saco congelado, sem conseguir ver, por isso mesmo, o seu conteúdo. Deixei descongelar e, para meu espanto, verifiquei que goelas de borrego havia uma ou duas se tanto, o resto eram apenas ossos tão limpos de carne e tão grandes, que nem um leão teria dentes para eles. Meti tudo no saco e no dia seguinte voltei ao talho.
Coloquei o saco sobre o balcão e disse à senhora que na véspera me tinha atendido:
- Está aqui o saco que levei ontem. Não é um saco de goelas, como me disse, mas um saco de ossos. Não venho pedir-lhe a devolução do dinheiro, embora não goste de ser enganada. Os cães do Bom Velho, mesmo rafeiros, com pulgas e carraças, quando comem enchem a barriga…
E a dona do talho, numa repetição:
- Mas é aquilo que eu dou aos meus cães e são cães de raça!
- Pois pode dar-lhes estes também, que já estão descongelados. – Alvitrei.
No talho, vazio de fregueses, encontrava-se somente um homem que me pareceu estar apenas à conversa. Volta-se para ele a dona do talho:
- Ó senhor João, não é destes sacos que costuma levar para os seus cães?
Resposta do homem, numa atitude de quem sabe, na altura própria, estar do lado que mais lhe convém:
- Sim, senhora. É desses que levo e os meus cães chamam-lhe um figo!
Saí do talho a sentir-me duplamente ludibriada. Porque o saco não continha goelas mas ossos e porque me pareceu duvidosa a resposta do homem. Passos andados, dirigi-me ao talho do costume, onde sempre comprara o bofe ou as miudezas de frango. À saída, no passeio em frente, vejo o tal senhor João. Não me contive. Atravessei a rua e dirigi-me ao homem:
- O senhor desculpe, mas queria só fazer-lhe uma pergunta, posso? – Perguntei com um sorriso, na intenção de obter a resposta certa.
- Faça favor, minha senhora. – Respondeu
- É o seguinte: há pouco, ali no talho, disse que costumava comprar aqueles sacos de ossos para os seus cães…
- Exactamente. – Confirma o homem.
- Diga-me então uma coisa. – Continuei – Os seus cães comem os ossos?
O homem ficou calado por uns momentos, olhou-me depois com um ar um pouco acanhado e respondeu:
- Bom, comer, comer, eles não comem. Lambem.
- Pronto, senhor João, fiquei a saber aquilo que já sabia, obrigada, sim?
Segui o meu caminho a pensar que os cães do Bom Velho, apesar de tudo, eram cães com sorte. E mais: que enganar a fome dos cães tem os seus preceitos e os seus adeptos. Preceitos e adeptos a que não escapam nem os cães de raça.
Soledade Martinho Costa