Sexta-feira, 31 de Outubro de 2008
Hoje é dia de festa! Parabéns, Soli, pelos teus 6 aninhos! Feliz aniversário, minha «segunda imperatriz», com montes de prendas, a companhia dos priminhos, muitas coisas boas e muito, muito amor de todos nós.
Esta noite comemora-se a «Noite das Bruxas», ou o «Halloween». Poderia chamar-te «bruxinha linda». Mas não quero. Prefiro dizer que logo à noite (a partir da meia-noite) começa uma «noite mágica» ou «noite de prodígios». É assim que se chama às noites importantes do calendário católico. Lembra-te que nasceste na véspera do Dia de Todos os Santos. Que todos eles te protejam e acompanhem pela vida fora, minha querida.
Deixo-te um poema que escrevi para os mais pequeninos. Aqui fica ele, inteirinho para ti.
Um abraço apertadinho do tamanho do mundo da Vó Sol.
JOANA E A TARTARUGA
Dona Tartaruga
Seja boazinha
Estique a cabecinha
Lá da carapaça
E diga a quem passa:
Quantos anos tem?
É que ouvi dizer
Que tem mais de cem!
Quer saber quem sou?
Eu sou a Joana
E tenho um irmão.
Sou muito pequena;
Só tenho seis anos…
Mas já sei fazer
Bolas de sabão!
Se eu ando na escola?
Claro que sim;
Sei a tabuada melhor que ninguém!
Agora responda
Seja boazinha
Estique a cabecinha
Lá da carapaça
E diga a quem passa
Quantos anos tem?
Por que é que pergunto?
Pois bem
Para saber.
É que há muita coisa
Que eu ainda não sei.
Que eu ainda não sei
Mas que hei-de aprender!
Se gosto de bichos?
Não hei-de gostar?
Tenho um periquito
Um grilo-grilão
Um galo-da-Índia
Três pombos-correios
Um gato e um cão!
Mas vamos
Responda
Não seja mazinha
Nem faça pirraça.
Estique a cabecinha
Lá da carapaça
E diga à Joana
Quantos anos tem?
É mesmo verdade
Que tem mais de cem?
Soledade Martinho Costa
Do livro “Um-Dó-Li-Tá”
Ed. Vela Branca
Sexta-feira, 24 de Outubro de 2008
De vez em quando somos surpreendidos com mecanismos escolares pedagógicos curiosos e, provavelmente, eficazes. É o caso da folhinha de «comportamento» que os pais podem verificar em casa ao fim de semana, respeitante ao modo como os seus filhos se comportaram na escola durante as aulas. Refiro-me ao Ensino Básico.
Não sei se o método é novo ou não. Para mim é novidade. Trata-se de uma folha onde está descrito o comportamento dos alunos utilizando-se o desenho de uma lagarta feito com bolinhas para colorir, assinaladas no centro com a respectiva data: do dia 1 até ao final do mês. Conforme o seu comportamento, a criança pinta diariamente uma das bolinhas: uma bolinha pintada de verde = bom comportamento; uma bolinha pintada de amarelo = comportamento mais ou menos; uma bolinha pintada de vermelho = mau comportamento. As bolinhas pintadas de azul dizem respeito aos fins-de-semana.
É uma destas «lagartinhas», dentro de uma capa plastificada introduzida num dossier, que a Soli traz para casa. A professora indica à criança a cor com que deve pintar a bolinha da lagarta no final de cada dia. A induzi-la, obviamente, no sentido do bom comportamento…
Um destes dias vi a folhinha da Soli com a tal lagarta e verifiquei que tinha, apenas, duas bolinhas pintadas de verde, enquanto cinco estavam pintadas de amarelo.
Sabemos que a Soli fala na aula, que se levanta muitas vezes do lugar e é um «bocadinho desorganizada». Também sabemos que é muito irrequieta, muito viva, muito alegre. A seu favor tem a saída da pré-primária, onde a disciplina é muito pouco ou nada rigorosa e, de repente, ainda com cinco anitos, a entrada no primeiro ano do Básico. Aí, as coisas mudam um pouco de figura. A disciplina é importante e a sua aprendizagem terá de ser feita aos poucos, dependendo muito do carácter, mais ou menos irrequieto, de cada criança. A Soli há-de aprender a refrear os seus impulsos, a ser mais organizada, mais disciplinada. Por outro lado, desde que entrou na escola, conta com pouco mais de um mês de aulas.
Perante a cor das bolas da «lagartinha», chamei a atenção da Soli. Mostrei-me decepcionada. Disse-lhe, mesmo, que me sentia desgostosa. Nesta altura, a Soli olhou para mim e explicou, com uma cara de anjinho bem comportado e incompreendido:
- Não costumas dizer que a tua cor preferida é o amarelo? Então? – Interroga com ar cândido, mas que não engana ninguém, na tentativa de escapar à reprimenda.
Ainda surpreendida com o sentido irónico, mas a um tempo astuto da Soli, argumento:
- Não, não. Eu gosto do amarelo, mas não gosto de lagartas amarelas! Muito menos quando se trata de «lagartas» relacionadas com o teu comportamento na escola. Aí, o meu gosto muda de cor: gosto do verde, bem verdinho, Soli…
O olhar dela é agora mais sério. Responde:
- Daqui para a frente, vou pintar de verde todas as bolinhas da lagarta, prometo…
- Espero que sim. Quero ver esta lagarta vestida de verde, sinal do teu bom comportamento. Isso do «mais ou menos», não me agrada. Nem à tua professora, imagino…
- Mas eu até me porto bem! – Replica a Soli – Não vês que tenho duas bolinhas verdes!?
- Pois tens. E as outras, que são em maior número e são amarelas? – Pergunto.
Soli vai guardar a folha na mochila e volta a sentar-se no meu colo. Segreda-me e repete:
- Vou pintar a lagarta toda de verde. Vou portar-me muito bem…
Não sei se as próximas «lagartas» virão verdes. Mas uma coisa é certa. No fim-de-semana seguinte à nossa conversa a «lagarta» tinha mais três bolinhas pintadas de verde – das duas amarelas não merece a pena falar. Aguardemos que a Soli cumpra o prometido. Mesmo com sacrifício, é evidente.
Soledade Martinho Costa
Domingo, 19 de Outubro de 2008
Desta vez a distinção que o Sarrabal recebeu, foi este selo com um risonho golfinho. Muita gentileza a tua, Ricardo N.!
Cá fica o prémio «Blog Simpático» com a minha simpatia por ti – tu que no teu blog (http://golfinhoalegre.blogspot.com) és alegre e muito, muito simpático para com os teus leitores e amigos. Além dos teus posts serem sempre «interessantes». (Onde irás buscar notícias tão «curiosas»?). Como costumas colocar no título dos teus posts, este selo está «espectacular». Bem-hajas!
Soledade Martinho Costa
Quinta-feira, 16 de Outubro de 2008
Do meu amigo Rui Vasco Neto – brilhante jornalista e bloguer do «7Vidas como os Gatos» – recebi, em comentário, ao que ele chama «uma gracinha» (em alusão ao «Recado da Vinha», publicado no post abaixo, «Borda-D’Água - A Vinha II»). Com sua permissão, e porque me pareceu um desperdício uma gracinha destas, «que não lhe deu qualquer trabalho, pois saiu de rajada e nem sequer teve revisão», ficar apenas na caixa dos comentários, resolvi colocá-la em post para agrado de todos. Tenho a certeza. Aqui está:
Poda-me em Janeiro
Empa-me em Fevereiro
Cava-me em Março
Em Abril deixa-me dormir
Em Maio dá-me um arrendasso
E depois verás o que eu faço. («Recado da Vinha» - Beira Litoral)
Verás como sei pagar
com juros de cento inteiro
o trabalho de podar
que tiveste em Janeiro.
Verás como o teu cavar
de Março, tão dedicado
vai dar ao mundo a provar
um néctar mais apurado.
E num pingo de magia
dou-te pinga que inebria
espírito em gotas mil
para que bebas dia a dia
numa malga de alegria
o meu soninho de Abril.
E quando chegar o Maio
do arrendasso do escol
que vai ficar no final
é dançar o verde gaio
e beber o bom tintol
que se faz em Portugal.
RVN
Quarta-feira, 15 de Outubro de 2008
Até à vindima, efectuada nos finais de Setembro, princípios de Outubro, a resultar no vinho, na água-pé, na jeropiga e na aguardente, que fazem o sabor e o apreço na transparência do copo, muita foi a canseira, a sabedoria e a arte dos homens.
Em Dezembro, Janeiro ou Fevereiro a vinha é podada. Há quem ponha a videira com «vara» («vinha à vara») – quase sempre quando se trata de uma vinha forte - , deixando-se na videira, geralmente, nove «olhos» (para rebentar em Março ou Abril), segurando-a com uma espécie de argola feita também de vide, para «não tombar». A esta operação dá-se o nome de «empar», dizendo-se que «a videira não foi (ou já foi) empada».
Outra forma de podar a vinha consiste no chamado «talão» (utilizado nas vinhas mais fracas), deixando apenas três «olhos» - para dar cachos maiores, segundo dizem, «com seis cachos garantidos por videira…».
Chegado o mês de Março a vinha é cavada e enxofrada (quando o cacho começa a aparecer), para «aquecer» (crescer mais rapidamente), operação que se repete até quase ao fim da vindima.
A vinha é ainda sulfatada, em número maior ou menor de vezes, dependendo das condições atmosféricas. Antigamente em várias operações, agora numa só, com o enxofre, hoje molhável (outrora apenas em pó), que se junta ao sulfato. Nesta operação utiliza-se, regra geral, a «tropilha» – em tempos ainda não muito distantes, a enxofradeira, quando a videira apresentava poucas folhas, ou o fole, sempre que as parras eram abundantes. Na tarefa seguinte, marcada para o mês de Maio, procede-se ao «desladroar» a videira (retirar-lhe os rebentos verdes, que enfraquecem a cepa velha).
Pelo São João (Junho) verifica-se a «desponta», ou «desfolha» (a que chamam «podar em verde»), para retirar as pontas das vides, de modo a isolar as videiras umas das outras e limpá-las das «gavinhas» (elos enrolados em espiral, conhecidos, na linguagem popular, por «abraços»).
Se o ano for de chuva, a vinha ganha com facilidade o míldio – doença que impede a maturação da uva, a dar pelo nome de «ferrugem» ou «mil-diabos» – sendo necessário sulfatá-la mais vezes. Afirma quem sabe, que a vinha, para ser uma boa vinha, terá de plantar-se o bacelo bravo em Janeiro.
Quinta da Bela Vista, Parada de Todeia, Paredes.
Em Janeiro ou Fevereiro do ano seguinte deve a vinha ser escavada, retirar-se a terra ao redor do pé do bacelo e colocar-lhe um «garfo» (vide de videira mansa), atado com ráfia, para enxertar, cobrindo bem com terra macia, de modo a rebentar em Maio.
Recado da Vinha (Beira Litoral):
Poda-me em Janeiro
Empa-me em Fevereiro
Cava-me em Março
Em Abril deixa-me dormir
Em Maio dá-me um arrendasso
E depois verás o que eu faço.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol.VII
Edição Círculo de Leitores
Domingo, 12 de Outubro de 2008
O menino dava voltas e mais voltas dentro da cama, sem conseguir dormir. Ora cerrava os olhos com muita força e tapava o rosto com a dobra do lençol, ora atirava o lençol para trás, num gesto repentino, e se punha de olhos muito abertos a investigar a escuridão do quarto.
- Era tão bom nunca ser preciso dormir. Se pudesse, ficava a noite inteira com a luz acesa! – Dizia ele a conversar com os botõezinhos do pijama. – Não gosto nada do escuro. Não gosto nada da noite!
A noite, que estava dentro do quarto do menino, ficou triste ao ouvir as suas palavras: «Se ele soubesse como sou sua amiga!» – pensou ela muito desgostosa. E aproveitando o momento em que a Lua se escondeu atrás de uma nuvem que passava, a noite aproximou-se mais da cama do menino.
- É verdade que não gostas de mim? – Perguntou ela numa voz tão mansa como o sopro da brisa sobre as pétalas das flores.
Ao ouvir aquela voz, o menino abriu ainda mais os grandes olhos negros e olhou ainda com mais atenção o escuro do quarto.
- Quem está a falar comigo? – Interrogou ele.
- Sou eu, a Noite.
- A noite?! – Exclamou o menino sentando-se muito depressa na cama. – Mas a noite não fala. A noite é quando está escuro e eu tenho de dormir!
- Enganas-te. Eu falo. Não estás a ouvir a minha voz?
- Estou. – Respondeu o menino cheio de espanto. – Mas…mas eu não gosto de ti, pronto! – Replicou ele.
- É pena, porque eu sou muito tua amiga. – Disse a noite. – Quando o dia termina, venho zelar pelo teu descanso. Sou eu quem faz repousar o teu corpo e o teu espírito depois de um dia de brincadeira. O sono nocturno é muito necessário ao equilíbrio das pessoas. – Acrescentou ela.
- Mas eu não sou uma pessoa crescida! – Protestou o menino.
- Por isso mesmo precisas de mais horas de sono para te poderes desenvolver e crescer com saúde. – Explicou a noite.
- Mas eu não gosto de ti. Tens uma cor preta e o meu quarto fica escuro! – Teimou o menino sem se deixar convencer.
Perante a sua obstinação, a noite achou que o melhor seria tentar uma espécie de jogo. Talvez assim o menino mudasse de opinião. Então, com ternura e paciência, murmurou, na sua voz mansa como o sopro da brisa:
- Lembra-te que as andorinhas são negras e são as aves do céu. Que os teus olhos são negros e, para a tua mãe, são os olhos mais lindos do Mundo…
- Isso são coisas boas. – Concordou o menino.
- Pois são. – Disse a noite. – Mas há muitas outras coisas importantes e boas e que são negras.
- Diz mais coisas.
- Digo que as amoras negras são as mais doces. Que o fumo é negro, quando o forno está a cozer o pão…
- Tens razão. – Concordou o menino.
- Que é negra a tinta que imprime nos livros as histórias que lês e de que tanto gostas. Que é negro o carvão que alimenta a fornalha onde os homens o transformam em fonte de calor…
- Pois é. – Disse outra vez o menino.
- Que é negro o quadro da escola onde aprendes a escrever e a fazer contas. Que são negros os grilos cujo canto embala o sono das searas nas noites de verão…
- Que é negro o meu cão Farrusco! – Riu o menino, por fim, entrando no jogo.
- Ora aí está. – Riu a noite com ele, num riso mavioso como o marulhar das ondas na orla da praia quando o mar adormece.
- Afinal, já gosto de ti! – Disse o menino.
- Ainda bem. Fico muito contente. – Respondeu a noite, cheia de satisfação. – Um dia, quando fores mais crescido, saberás outras coisas a meu respeito.
- Quando estudar naqueles livros grandes, com muitas folhas?
- Sim, quando estudares nesses livros, ficarás a conhecer-me ainda melhor.
- Tenho tanto sono! – Murmurou o menino, deitando-se e puxando a roupa para si.
- Então, dorme, que o dia não tarda a chegar.
- Agora já sou teu amigo! – Disse ainda o menino antes de adormecer.
De mansinho, pé ante pé, a noite afastou-se da cama do menino. Em seguida, muito lentamente, levantou as asas negras cheias de estrelas e voou pela janela do quarto. Cá fora, suspirou e sorriu: «Pronto, já posso partir descansada. A Madrugada não tarda a chegar e eu acabo de ganhar um novo amigo!»
E a noite voltou a suspirar, e lá foi, no voo silencioso das suas asas negras e brilhantes, porque eram horas de abalar para o outro lado do Mundo onde ela já conhecia outros meninos de quem era amiga.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Seis Histórias numa História de Todas as Cores”
Ed. CEBI (Fundação José Álvaro Vidal)
Quarta-feira, 8 de Outubro de 2008
O Sarrabal conta hoje com o contributo poético de um grande nome da nossa Literatura: Daniel de Sá.
A partir de um convite meu, teve a gentileza de enviar-me dois poemas. O segundo será publicado em breve. Por agora, deixo-vos com este belo e comovedor poema em estilo arcádico, escrito, conforme me informou o seu autor, a pedido de um grande amigo seu, o escritor brasileiro Assis Brasil, que lho pediu para o “citar” como sendo de uma das personagens do seu mais recente romance.
Condecorado no passado dia 10 de Junho (Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas) com o grau de oficial da Ordem do Infante – facto que escondeu, e o Sarrabal tem a honra de revelar –, a distinção pretendeu premiar o valioso conjunto da sua obra, que inclui: romance, novela, contos, crónicas históricas e uma peça de teatro, somando catorze os seus livros publicados.
O Sarrabal agradece penhorado.
Soledade Martinho Costa
Ai meu filho, ai meu filho, se eu pudesse
Fechava, pelos teus, estes meus olhos
Que a dor cega, e de novo tu verias.
Ai meu filho, ai meu filho, tens escritas
A ferro e fogo as marcas do destino,
Na pele que era seda tão macia
E os olhos orvalharam de tristeza,
Ai meu filho, ai meu filho, estes que choram
Lembrando que de ti eu sempre soube
Que meu seria só teu sofrimento.
Como doía, ai Deus, e dói ainda,
O tronco, o viramundo, a gargalheira,
Ou a peia, a gonilha e os mais tormentos
Com que viveste a morte em cada dia!
Mas eu devia rir, que já não sofres!
Ai meu filho, ai meu filho, eu cantarei
«Aleluia!Aleluia!» Finalmente
És ave libertada, és anjo, és tudo
O que eu mais desejava que tu fosses,
Porque menos que a morte não podia
Da própria morte em vida libertar-te.
Daniel de Sá
Sábado, 4 de Outubro de 2008
Hospital Novo, Celas, Coimbra.
Há uns tempos atrás, estando na minha casa no lugar do Bom Velho de Cima (Condeixa-a-Nova), dirigi-me ao Hospital Novo de Celas, em Coimbra, ali a dois passos.
Antes de passar ao que lá me levou, mostrei cartões, assinei papéis, levantei papéis. O costume. Por fim, uma funcionária, gentilmente, acompanhou-me para me levar até uma colega onde teria de entregar um dos documentos. Foi durante esse pequeno percurso que olhei, casualmente, para o papel que levava na mão. Também casualmente, os meus olhos foram pousar numa linha onde se lia: «Profissão». À frente estava escrita a palavra «escriturária». Sem intuito de menosprezar ou minimizar esta profissão, a verdade é que esta não é a minha profissão. Julgando ter havido um erro, informei a minha acompanhante da incorrecção, embora a gravidade do facto não fosse nenhuma.
Para meu espanto, a funcionária desfez as minhas dúvidas com a seguinte explicação: «Sabe, no nosso ficheiro não consta a profissão de escritora. A palavra mais parecida é escriturária. Por isso é que está aí escrito.» - E acrescentou: «Já há uns meses esteve cá um escritor e aconteceu a mesma coisa, nós escrevemos escriturário, lembro-me muito bem. Ele chamou-nos a atenção, mas como disse, essa profissão não consta do nosso ficheiro.»
Visivelmente comprometida (coitada), a minha prestável acompanhante remeteu-se ao silêncio constrangido, enquanto eu lhe afiançava, um pouco hipocritamente, é certo: «Não se preocupe, não tem importância». Mas acabando por alvitrar: «No entanto, era bom que corrigissem este tipo de lapsos, não é?»
Acabei por achar graça ao sucedido e já tenho contado o caso à laia de anedota. Principalmente, quando se fala em direitos de autor. Ou, para ser mais exacta, nos direitos que não temos. E nos outros, que, por vezes, também não temos – quando as editoras esquecem que nos assiste o direito de receber os nossos direitos. Isto é, quando as editoras não pagam nos prazos estabelecidos nos respectivos e minuciosos contratos os nossos legítimos direitos autorais.
Soledade Martinho Costa
Quarta-feira, 1 de Outubro de 2008
Quem impôs aqui tamanha solidão
Quem impediu o sol de atravessar estas vidraças
Quem recusou a palavra
O gesto
No momento exacto?
Quem impediu a vida nas veias sedentadas?
Quem se esconde para além deste silêncio
Destas portas trancadas
Destas cadeiras de rodas
Destas mesas de ferro
Deste cheiro a urina
Que se agarra ao encerado?
Quem paga estas paredes nuas
Estes cobertores tecidos de vigílias
Este abandono que flagela os corpos rejeitados?
Soledade Martinho Costa
Do livro “A Palavra Nua”
Ed. Vela Branca