- Quem será o primeiro? O mais afoito? Qual dos meus vizinhos e companheiros se atreverá a pôr a cabeça fora do ninho ou do buraco onde se recolhe? Quem terá coragem de convidar-se para um passeio nesta manhã tão fria? – Interroga-se o pardal, ainda sonolento, a espreitar, pousado sobre o beirado onde faz a sua casa.
- Se não fosse a Geada – chilra um pouco mais desperto –, era eu o primeiro a tomar o pequeno-almoço. Mas, assim…Brrrrrr! Com este frio! – E acomoda-se de novo no casaco de penas que lhe veste o corpo.
- Ora, não querem lá ver, o mal-agradecido! – Resmunga a geada ao ouvir o chilreio do pardal. – A queixar-se do frio…E eu, que culpa tenho disso? Acaso não cheguei na altura própria? Não estamos no Inverno? Então, o que quer que lhe faça? Se calhar do Vento, da Chuva e do Pedraço não se queixa ele. E olha que são sempre pontuais nesta época do ano. Além de serem muito mais fortes do que eu. Só não vê, o ingrato do Pardal, como me afadigo a enfeitar com teias de cristal estes campos sem fim… – amua a geada, suspiro branco na manhã mal desperta.
O que a geada não disse, por se ter esquecido ou por acanhamento, é que o seu corpo, feito de pequeninas gotas de orvalho, que congelam quando a temperatura desce, embora belo, não é benéfico. Porquê? Porque também ela é forte, apesar da sua leveza. Tão forte, que a formação dos seus cristais de gelo, tem a força do fogo. Por isso, queima o cetim das flores e as plantas que lhe servem de pouso.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Histórias que o Inverno me Contou”
Ed. Publicações Europa-América
Seguia eu por um dos passeios da Avenida Estados Unidos da América, quando o meu olhar me conduziu até à criança que se encontrava sentada no degrau da porta de um prédio daquela artéria.
Franzina, loirita, encolhida sobre si mesma, a saia puxada, a tapar-lhe os joelhos até aos pés. Pareceu-me que chorava. A seu lado, dois sacos de plástico com qualquer coisa dentro.
Avancei na sua direcção até ficar junto dela. Não se mexeu nem levantou os olhos. Chorava, confirmei. Falei baixo, um pouco a medo:
- O que foi, estás a chorar?
- Não vê que não!? – Respondeu, meio trocista, meio a precisar de ser consolada.
- Claro que estás a chorar. Mas porquê, queres dizer-me?
- Por isto! – Levantou um pouco a saia e atirou ao ar, com a ponta do pé, um sapato, que voou dois palmos até aterrar, deitado de lado, no empedrado do passeio.
- Por causa deste sapato? – Indaguei, curiosa.
- Então, não percebe? – Mostrou o outro pé, ainda calçado, levantando um pouco mais a saia. – Não percebe que não posso dar um passo com isto calçado? Que estou sempre a cair!? – E atirou, num gesto gémeo, o outro sapato ao ar.
- Tens razão. – Concordei. – São sapatos de senhora e de salto muito alto. Não tens outros? – Indaguei, embora consciente da ingenuidade da pergunta.
- Ora, ora. - Bateu, em ritmo acelerado, com os pés descalços sobre as pedras. – Acha que sim? Vê-se logo…
As lágrimas foi-as enxugando às costas da mão e o ranho à manga da camisolita barata.
- Bem, conta-me lá essa história para eu perceber…
- Foi assim. Eu vendo cabides de plástico. Estão aqui. – Apontou um dos dois sacos, junto dela. – E lembrei-me de ir às portas, porque não tenho vendido nada. Foi num prédio, ali em baixo. Toquei a uma campainha qualquer e abriram a porta. Havia elevador, mas eu subi as escadas. Estava escuro e tive um bocado de medo. Depois, toquei a uma campainha. Está a perceber? – Interrompeu, de súbito, a olhar-me interrogativa.
- Perfeitamente. – Respondi, interessada no desenrolar da história.
- Ainda bem. – Continuou: - Veio uma senhora e eu perguntei se queria comprar cabides. Não respondeu, mas disse: espera aí. Fechou a porta e eu fiquei ali, à espera, e já estava arrependida. Depois a senhora veio outra vez e entregou-me esse saco. – Apontou para o segundo saco de plástico. – Toma, disse ela. E fechou a porta. Saí do prédio e espreitei para dentro do saco. Queria saber o que é que ela me tinha dado.
Chegada a este ponto da descrição do acontecido, levanta-se, agarra no saco e despeja no passeio outro par de sapatos.
- Foi isto o que ela me deu! Estes e esses. – Aponta com o dedo, outra vez, agora para o primeiro par de sapatos acrobatas.
- Mas sabe – prossegue com um sorriso maroto –, à primeira impressão até achei giros. Tinha uns sapatos velhos, encostei-os lá a um canto, e calcei aqueles. – Voltou a apontar o primeiro par de sapatos. – O pior, é que conforme vim andando, vim sempre a tropeçar e a torcer os pés até chegar aqui. Não quero mais esta porcaria! – Vociferou, desta vez.
Não sabia o que dizer, nem que solução dar ao problema. Arrisquei:
- Se calhar, é melhor ires buscar os teus sapatos velhos…
- É o que vou fazer e já. A senhora toma conta disto?
“Isto”, eram os sapatos e os cabides dentro do saco.
E já numa corrida:
- Vamos lá ver é se ainda lá estão!
Fiquei a olhá-la, descalça, numa corrida lesta, por entre quem se cruzava com ela, até que a perdi de vista. Não tinha grande pressa e aguardei. Estupidamente, eu sei, dei por mim a pensar quanto seria bom os sapatos velhos não terem saído do lugar onde a garota os deixara.
A espera não foi demorada. Ei-la, arfante e vitoriosa a meu lado.
- Felizmente, ainda lá estavam. Não mos levaram! – E olhava para os pés onde, gastos, sujos e rotos, se mostrava um par de sapatos, dos quais nem suspeitas da cor primitiva.
“Felizmente, ainda lá estavam”, repeti a frase para comigo. "Quem os quereria?", interroguei-me.
- Então, está tudo resolvido. – Disse.
- Não, não. – O dedinho levantado, fazia a rotação dos ponteiros do relógio.
- Não!? – Repeti.
Desembaraçada, começou a enfiar os dois pares de sapatos no saco de plástico. Ajudei-a na tarefa.
- Agora, vou pô-los à porta da senhora que mos deu. Toco numa campainha qualquer da porta da rua. Só para entrar. Mas não toco à campainha da porta dela. Vou deixar o saco no tapete.
- Acho bem. – Respondi, a concordar com a ideia. E acrescentei:
- Já reparaste que estamos aqui há imenso tempo e ainda não me disseste o teu nome, nem quantos anos tens?
Saiu-me a frase tão repentinamente, que não tive tempo de travar a pergunta, tão inútil a achei depois.
- Chamo-me Gisela e tenho dez anos.
- Eu sou Eduarda, mas tenho mais anos. – Rimos as duas.
O vento, na sua insistência, acabara por soltar o saco onde a Gisela guardava os cabides. Tentei apanhá-lo, sem sucesso.
- Não faz mal, deixe-o ir. Prefiro vender os cabides sem saco. Os fregueses vêem melhor…
E correu, agora sem cair, passeio acima.
Fiquei com duas palavras escritas na frente dos meus olhos. Quando ajudei a Gisela a apanhar os sapatos, novos, bonitos, modernos, li neles um nome. A assinatura de quem os concebeu. Era esse nome, bem calçado, que dançava, uma dança sem sentido na frente dos meus olhos: Ana Salazar.
Soledade Martinho Costa
" Par de Sapatos ", Van Gogh
Vizela, Braga
Os campos alargam-se até onde o olhar alcança. Lindos, lindos sempre, mesmo no Inverno. Mesmo que a maior parte das árvores e dos arbustos se encontre despida de folhas.
Para acolher as aves e outros bichos que precisam de guarida durante a estação mais fria do ano, lá estão as plantas e as árvores de folha perene prontas a serem a casa, o agasalho daqueles que procuram abrigo. Enquanto isso, a terra dorme um sono descansado. E sonha. Sonho após sonho, sonha que os meses frios vão passar depressa e ela há-de voltar a vestir-se de verde. A florir. A ser fecunda. E prepara-se.
Aconchega a si as sementes que hão-de despontar e ser, por sua vez, planta, flor e fruto. Aconchega-as bem. De encontro a si. Com o jeito de quem sabe e a ternura de quem ama. Como se as sementes à sua guarda e protecção fossem meninos a dormir um sono no regaço de sua mãe.
Carinhosa, a terra. E mãos-largas. Pronta a dar tudo quanto tem.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Histórias que o Inverno me Contou”
Ed. Publicações Europa-América