Não acredito quando alguns autores de obras para a infância afirmam que os seus livros se destinam a leitores dos 8 aos 80 anos. Ou, até, aos 90, caso recente de Miguel Sousa Tavares com o seu novo livro «Ismael e Chopin».
Acredito muito mais que um autor, ao iniciar um texto ou um livro, deva saber de antemão qual vai ser o seu destinatário: se uma criança de 8 anos, se um adulto de 80. As razões são muitas: na criança, há que ter em consideração o tema, o seu vocabulário ainda pouco enriquecido, os seus incipientes conhecimentos linguísticos, gramaticais, literários, e a ilustração, como complemento imprescindível dessa faixa etária. Embora saiba, também, que um senhor de 80 anos possa achar graça a esse mesmo livro. Sei, ainda, que existem excepções. Uma criança de 8 anos pode ter a acuidade e a capacidade para entender um texto para adultos, enquanto uma pessoa de 80 pode apreciar um livro para crianças. São coisas absolutamente diferentes, parecendo iguais.
Vem isto a propósito de uma «história» que vos vou contar. No meu entender, uma «história» para adultos. Para eles a escrevi.
Começa assim:
Era uma vez uma terra do concelho de Vila Franca de Xira chamada Alverca do Ribatejo. Hoje uma cidade, mas na época em que tudo aconteceu, não passava de uma pequena vila. Nessa terra existia uma longa estrada de terra batida. A seu lado, corria o canto transparente do rio Cró-Cós. Quer a estrada quer o rio, ladeados de choupos, que moravam ali há muitos, muitos anos. Tantos, que as pessoas da vila, geração após geração, se foram habituando à sua presença e à sua voz. Como se os choupos fizessem parte da família.
Se eram muitos? Sim eram muitos. As três fieiras somavam umas boas dezenas: duas ladeavam a estrada, uma delas rés ao rio, a outra, a terceira, ladeava o rio do outro lado das terras de cultivo.
Quando as pessoas passavam por essa estrada, punham-se à conversa com eles. Os choupos, por sua vez, contavam-lhes então a sua alegria por estarem ali, a cobrir de sombra e rumorejo a poeira da estrada. Depois, as pessoas seguiam, às suas vidas, os choupos acenavam os ramos num gesto de despedida e marcavam um novo encontro para outro dia.
No Outono as folhas dos choupos tomavam a cor do oiro e deixavam-se cair, num embalo, sobre a terra. Nessa altura, ofereciam às pessoas da vila um tapete estaladiço e fofo ao longo da estrada. Os ramos, esses, mal espreitava o Inverno, nus, erguidos ao céu numa prece, pareciam tiritar de frio, a pedir o regresso dos seus vestidos verdes. E contavam às pessoas a impaciência da sua longa espera. Para os consolar, elas diziam que não. Que o tempo passava muito depressa.
Quando a Primavera se anunciava no voo da primeira andorinha, que alegria para os choupos! Era vê-los num alvoroço a vestirem as suas grandes copas. A colocarem uma folha aqui, outra acolá, ao longo dos ramos. Folhas de um verde muito claro, a espreitarem lá dos troncos o céu, a terra, a estrada, o Mundo, o ciclo de uma nova vida.
As pessoas passavam, sorriam, davam-lhes as boas-vindas e pensavam que durante o Verão a sombra frondosa dos velhos choupos voltaria a proteger os seus passos do rigor do Sol. E que linda era a estrada na Primavera! E nas manhãs, e nas tardes, e nas noites de Verão!
Ao fundo da estrada, a Fonte, tão antiga quanto os choupos, emprestava ao ambiente mais encanto, maior beleza, maior frescura. Fonte do Choupal, era esse o seu nome. Também por Choupal era conhecida a estrada e o próprio sítio. Da sua água, dizia a tradição, quem dela bebesse, jamais sairia de Alverca do Ribatejo…
Um dia, quiseram construir «gaiolas de cimento» no Choupal. Pensaram em cortar os choupos. As autoridades da terra disseram que não. Os choupos eram centenários. Eram preciosos. Eram um património. E tinham tantos amigos!
Apesar da recusa, certa manhã, Alverca do Ribatejo acordou mais pobre, mais poluída, menos verde. Durante a noite, todos os choupos, os amigos e velhos choupos, haviam sido cortados, criminosamente, um após outro, junto à raiz. Por pessoas que não eram da terra, não gostavam da presença dos choupos, nem da sua voz, nem de conversar com eles, nem de ouvir as suas histórias. Pessoas que não entenderam a amizade entre os choupos e os habitantes da vila. Pessoas para quem não existe o Dia Mundial da Árvore, nem o Dia Mundial da Floresta, nem o Dia Mundial do Ambiente. Porque não gostam nem das árvores, nem das florestas, nem se preocupam com o ambiente. Porque só gostam de construir «gaiolas de cimento».
Quando souberam da morte dos choupos, os meninos e as meninas que cresceram habituados à sua companhia, à sua voz, à sua sombra, hoje homens e mulheres como eu, sentiram uma grande tristeza, uma grande saudade, uma grande pena. E ainda uma grande revolta. Tão grande e tão profunda, como a sua surpresa, a sua incredulidade, o seu espanto, o seu desgosto.
Os choupos, apanhados numa cilada criminosa, não tiveram tempo para se despedir. Não disseram adeus a ninguém. Não puderam, tão-pouco, pedir auxílio aos seus amigos da vila.
A história aqui fica. A lembrar os choupos da minha infância, da minha adolescência, da minha juventude. Com quem conversei, que sabiam da minha vida e da vida dos meus amigos, que me contavam, também eles, os seus segredos. Os choupos a quem não pude dizer adeus. A quem não pude agradecer a companhia, a beleza, a frescura que me deram durante tantos anos.
Bebi da água da Fonte e a magia cumpriu-se. Quanto aos velhos, aos amigos choupos, calculo que as suas raízes, debaixo do cimento, devem pensar: «Se ao menos conseguíssemos romper esta muralha, talvez os rebentos das nossas raízes pudessem, ainda, voltar à superfície, à luz, à vida, ao convívio dos nossos amigos. Talvez pudéssemos voltar a crescer e a transformarmo-nos de novo nos choupos que fomos, num prodígio verde, a coar o Sol, a ladear, como dantes, a estrada e o rio de que temos tantas saudades…»
O Choupal, hoje, não o reconheço. Não existe. Resta-lhe o nome: «moro no Choupal»; «fica na estrada do Choupal»; «a praça do Choupal». Mas poucos dos que lá moram ou passam, conheceram e amaram os velhos choupos. A Fonte, pobre dela. Está hoje «encastoada», num dos prédios ali construídos. Mal se vê, de tão despercebida. Provavelmente, só uma réstia de pudor, não deixou que a destruíssem.
Lembro os passeios do meu «grupo», até ao Choupal, rapazes e raparigas (éramos tantos!), no final das tardes sem nuvens na vida de cada um de nós. Nas noites de Verão, sentados nos degraus da Fonte, numa alegria de que apenas a juventude guarda o segredo. Das canções que cantávamos, felizes, porque só os sonhos habitavam o nosso pensamento.
Hoje não tenho sequer vontade de passar por lá. Se possível, evito. Depois da morte dos «meus» choupos, vítimas de homicídio voluntário, premeditado e não punido.
Soledade Martinho Costa
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