São Martinho nasceu em Sabária da Panónia (actual Hungria) no ano de 316. Filho de um oficial romano, estudou em Pavia, embora o pai, na intenção de afastá-lo das influências cristãs, o inscreva, ainda muito jovem, no exército. Obrigado ao juramento militar, serve na Guarda Imperial até aos quarenta anos.
Sem abdicar das suas convicções religiosas, abandona o exército e torna-se discípulo de Santo Hilário (bispo de Poitiers, França, e padre da Igreja, 315-367), sendo por este ordenado. Mais tarde é sagrado bispo de Tours (França), lugar que veio a ocupar quando esta diocese ficou vaga em 371.
Apelidado o Apóstolo das Gálias, São Martinho ficou conhecido pela sua extrema caridade. A ele pertence o episódio de Amiens, que relata ter-se apeado certa manhã do seu cavalo, no rigor do Inverno, para rasgar com a espada e repartir com um mendigo a sua capa, que trazia sobre os ombros. Mais tarde, o mesmo mendigo ter-lhe-à aparecido em sonhos como Jesus Cristo, dizendo: «Martinho deu-me este vestuário.»
Retirado, a seu pedido, para um lugar isolado (Ligugé, perto de Poitiers), depressa reúne à sua volta discípulos atraídos pela sua fama de grande sabedoria e bondade. Ali funda o Mosteiro de Ligugé e, posteriormente, junto da cidade, o primeiro mosteiro de Marmontier. Morre em Candes (França) a 11 de Novembro de 397, com oitenta anos, tendo o seu corpo sido levado para Tours e sepultado no cemitério, à entrada da cidade.
Ao longo dos séculos foi considerado o santo mais popular da Europa Ocidental. Durante a Idade Média eram constantes as peregrinações ao seu túmulo, só comparáveis às que eram feitas aos sepulcros dos Apóstolos em Roma, tal a fama dos seus milagres.
A crença em São Martinho era tanta que os Merovíngios (nome da primeira dinastia que reinou em França), antes de partirem para a guerra, rezavam junto do seu túmulo, levando as tropas, na dianteira, a capa do santo como talismã. Os seus atributos são um cavalo branco, uma espada e um manto. Iconograficamente aparece galopando à frente dos exércitos.
No que respeita à alegoria «Verão de São Martinho», associa-se ao facto de se registarem, quase sempre no início de Novembro, alguns dias de temperatura amena e por vezes de calor.
Não se lhe conhece, todavia, qualquer ligação ao vinho. Supostamente, a sua celebração resultará da apropriação ou réplica cristã das festividades greco-romanas dedicadas a Baco, deus romano e grego do vinho, que tinham lugar em Roma e na Grécia por altura da abertura nas adegas do vinho novo (a 9 de Outubro).
Soledade Martinho Costa
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas, Vol VIII
Ed. Círculo de Leitores
O céu
Retém ainda
O voo das cegonhas.
Acendem-se braseiras
De histórias
E de mosto
Regressam as castanhas
No bico do capuz.
Há bruxas
Que povoam
As noites de Novembro
No oiro das laranjas
Pousa o luar em cruz.
Soledade Martinho Costa
A primeira referência às comemorações por intenção dos defuntos, efectuada anualmente e em data fixa associada à Festa de Todos os Santos, é atribuída a Santo Isidoro de Sevilha no século VII, conquanto se deva a Santo Odilão de Cluny a introdução do ritual no seu mosteiro entre 1025 e 1030, daqui se estendendo a festividade litúrgica aos demais mosteiros da ordem e depois a toda a Igreja.
Em 1915, por concessão de Bento XV, através da bula Incruentum, foi autorizado a todos os sacerdotes da Igreja Católica celebrarem três missas no dia dos Fiéis Defuntos. Este privilégio já havia sido concedido a Portugal, Espanha e América Latina pelo papa Benedito XIV em 1748 – devido à influência desse antigo e piedoso costume verificado na Igreja de Aragão –, enquanto Leão XIII estende a concessão a toda a Igreja, pedindo que «no último domingo de Setembro todos os sacerdotes celebrem uma missa pro defunctis, extensiva aos sacerdotes falecidos.
O Ofício de Defuntos é difundido pelos mosteiros a partir do século XIII, embora, desde os tempos apostólicos possam encontrar-se textos alusivos à oração pelas almas.
«ALMINHAS»
Independentemente das celebrações piedosas pelos defuntos, que englobam os dias 1 e 2 de Novembro, refira-se um outro culto que, desde há séculos, se presta às almas do Purgatório. Manifesta-se pela existência de pequenos altares ou nichos construídos em pedra ou cimento, guarnecidos por pequenas imagens religiosas, esculpidas em pedra ou barro, ou pintadas de forma singela em azulejo, alusivas a santos ou ao Purgatório.
Trata-se das «Alminhas», designação pela qual são conhecidos popular e piedosamente estes altares propiciatórios em favor e memória dos defuntos, sendo frequente depararmos com estas pequenas construções erguidas à beira das estradas, nos caminhos, nas encruzilhadas, ou mesmo no meio dos campos, quer em locais ermos ou habitados. A revelar, quase sempre, o acto de mão piedosa, dado pela deposição de algumas flores, ou pelo acender de uma vela, lamparina ou candeia de azeite, cuja chama, a alumiar a noite, nos faz lembrar os que já não se encontram entre nós.
Localidades há onde são entregues aos habitantes «correndo a roda às casa», a fim de que todos possam contribuir para a sua preservação, limpeza e alindamento. Aquele que a tiver a seu cargo deverá alumiá-la todas as noites até findar o seu mandato. Daí, o uso, em certos lugares, de continuarem a realizar-se «peditórios de azeite para as alminhas», ou proceder-se à entrega dele em cumprimento de promessa. É também usual, principalmente pela Quaresma, efectuar-se uma novena, em que durante esses nove dias a pessoa que fez a promessa vai alumiar as «alminhas» e fazer orações.
Símbolos da religiosidade e do sentido piedoso do povo, deve-se às confrarias das almas, no século XVII, a sua contribuição para a divulgação das pinturas do Purgatório nelas representadas. No século XVIII as irmandades e confrarias das almas espalham-se de norte a sul do País.
Nas suas inscrições, pedem apenas a quem por elas passar, uma breve oração em seu favor, ou tão-só, um pensamento piedoso por sua intenção.
«Irmão, lembrai-vos das Almas que estão no Purgatório com um Pai-Nosso e uma Ave-Maria», ou «Ó vós que ides passando/Lembrai-vos das almas que estão penando», ou ainda «Ó vós que aqui vindes tão descuidados de nós/Lembrai-vos das almas/Que nós nos lembramos de vós», são alguns dos dizeres afixados nesses altares.
Em Sesimbra, por tempos idos, as «alminhas» eram lembradas naquela vila (devido às terríveis epidemias de cólera e de febre-amarela que dizimaram a população em 1856 e 1857), praticando-se o piedoso culto de se subir ao Calvário, local situado no Forte de Santa Cruz, onde as vítimas foram enterradas por não haver espaço nos cemitérios, para colocar junto à cruz ali existente lanternas com azeite para «alumiar as almas».
As «alminhas» são uma criação genuinamente portuguesa, não havendo sinais deste tipo de representação da arte e da religiosidade popular em mais nenhum lado do mundo.
Soledade Martinho Costa
Do livro “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol. VIII
Ed. Círculo de Leitores
Foto de Fernando DC Ribeiro, aldeia de Amiar, Salto, Montalegre (Terras do Barroso).
Designado, primitivamente, dia de Nossa Senhora dos Mártires, esta data foi celebrada durante mais de dois séculos no dia 13 de Maio com um ofício próprio, enquanto por volta de 737 passa a ser incluída no cânone da missa uma alocução dedicada a todos os santos.
Caminhando apressado, o dia percorre a manhã. E como são largos os seus passos! Quem o diz é o Sol, quase no pino do meio-dia, a deixar cair centelhas de oiro sobre o povoado.
«Não há dúvida de que prefiro o Verão ao Outono. No Verão acordo mais cedo e estou muito mais tempo junto das coisas de que gosto. Mas deixá-lo! As horas passam e os dias correm. Depressa hão-de voltar as tardes longas, longas, que me agradam tanto. Nessa altura, os dias não serão pequeninos como agora, e não serei obrigado a deitar-me tão cedo» E, mais conformado, o Sol, estende os raios num abraço até onde o seu calor alcança.
«Daqui em diante - torna ele – terei mais vezes a chuva para me acompanhar nas minhas brincadeiras. Ainda ontem adormeci cansado, estafadíssimo, por causa daquelas loucas corridas pelo céu fora, atrás das suas gotas, que mais parecem lágrimas a cair das nuvens. E logo, ao fim da tarde, cá a espero, à mesma hora, como ficou combinado. Que venha! Que venha! Aborreço-me tanto aqui sozinho!»
Ouve-se, de repente, o pingar da chuva, numa cantilena sobre o povoado:
— Não foste pontual! - resmunga o Sol, a fazer-se rogado à brincadeira – Ontem chegaste mais cedo. Hoje já quase não tenho tempo para brincar…
— Anda, vamos, que tens tempo, sim. Para quê ficares zangado? Não vês, ainda é dia!
O Sol decide-se. Vontade não lhe falta. E lá vão os dois: a chuva à frente, o Sol atrás. A persegui-la por entre as gotas que correm em fio.
Numa casa do povoado ouve-se uma voz:
— «A chover e a fazer sol, estão as bruxas a comer pão mole!»
— Há bruxas, avó?
— Não minha filha. Só nos livros de histórias…
— E fadas? - torna a menina.
— Fadas? - fica-se um silêncio pela casa – Talvez, minha neta…
— Adeus! Adeus! Vou-me embora, são horas de partir! - grita o Sol para a chuva, a tombar, em gotinhas de vidro sobre o povoado – Amanhã estarei de volta. Volta tu também, se puderes. Mas volta mais cedo!
— Se puder. Se puder, eu volto. Brincaremos juntos outra vez. Adeus! Adeus! Eu ainda fico. É só o tempo de alagar a terra um pouco mais!
O caracol desce pelo tronco da macieira onde mora. Vai fechar-se na casca para adormecer. Gosta de se acomodar junto da raiz da árvore quando vai dormir. Talvez para voltar a sentir o prazer de subir pelo seu tronco quando nasce a manhã. É ali a sua verdadeira casa e o seu mundo. Mas, antes, o pequeno molusco, que também é herbívoro, irá dar a sua voltinha pelas redondezas da macieira – por ser, principalmente, durante a noite, que procura alimento.
— Dorme bem! - deseja ele à macieira do lado, um pouco ciumenta por ele não escolher o seu tronco para morada – Sabes que também gosto de ti... – diz, meigo, numa reprovação.
A árvore abana os ramos. As maçãs oscilam, vestidas de chuva. Responde por fim:
— Está bem, está bem! Eu sei que gostas de mim. Mas é aí a tua casa, não é? Por isso preferes a macieira minha irmã...
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que o Outono Me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
Maria era a sua graça
e a graça do seu sorriso
a coisa mais valiosa
que possuía de seu.
Maria usava uma trança
e uns brincos de cordel.
Maria não soletrara
nome de pai nem de mãe
e curtira os verdes anos
entre rebanhos
nos montes.
Nunca pudera ir à escola
Nunca calçara sapato
nunca sonhara agasalho
nem à vila sequer fora.
Que a vida negou-se farta
para si e outros mais.
Na tarimba onde dormia
junto dos molhos de feno
Maria olhava as estrelas
para além das frestas da porta
e perdia-se a pensar.
A pensar em coisas justas
a pensar em coisas certas.
Depois, mal adormecia
cansada de solidão
benta do cheiro do fumo
farta de naco de pão
sobre o rosto de Maria
descia o véu de uma sombra
como um dobre de finados
como dor que se descobre.
E a graça do seu sorriso
a coisa mais valiosa
que possuía de seu
foi sumindo, foi fugindo
foi morrendo em sua boca
deixou Maria mais pobre.
Soledade Martinho Costa
Do livro A Palavra Nua
Se o dia vier ao Mundo
Em que o gelo nos aqueça
E o Sol no céu arrefeça
O calor das nossas veias
Esse será o sinal
Decerto que a nosso lado
Alguma coisa acontece.
E se o riso
Que ontem vinha
Alegrar a nossa face
Morre aos poucos
Esmorece.
Nesse dia pedirei
A quem tiver
Por dentro de cada dia
Nada ter
A força que tem o vento
Que atravessa o pensamento
E liberta a nossa voz.
Nesse dia pedirei
À pressa que tem a vida
Que transforme essa corrida
Da nascente até à foz.
E se ao longe há um veleiro
Que se perde atrás do mar
Que se afunda em nosso olhar
Onde a água é nevoeiro.
Chamarei
Companheiro desta dor
E da raiva cada vez maior
Aperta na minha mão
O que a tristeza juntou.
Na estrada que percorremos
A desdita é coisa pouca
Comparada ao que sobrou.
Nesse dia pedirei
A quem tiver
Por dentro de cada dia
Nada ter
O perdão.
Soledade Martinho Costa
Do livro Um Piano ao Fim da Tarde
Edições Sarrabal
Aos que evitaram e evitam o risco
Aos que tentam não voltar a arriscar
Aos que já não podem tentar
Quem vier
Que venha em bem
E por bem.
Traçado
Traz
Um risco.
Que dele se afaste
Se aparte
Que se não belisque.
A trama
Que há-de ser tecida
A certifique
Para que não erre
Não se enrede
Nem arrisque.
Que de pontos sem nó
A vida é feita
E desfeita também
Mesmo com nó.
O dó
É saber-se de alguém
Que se esqueceu do risco
E arriscou.
O medo
Esse, vem.
Tarde ou cedo
Vem
E não vem só.
Dar à luz
É um pouco isto:
Ofertar ao destino
Alguém
Que não se sabe
Se com risco
Trama e nó
Sairá vencido
Ou vencedor
Por envolvido no risco
Que o cercou.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde»
Edições Sarrabal
É só um sonho este canto da cigarra
que escuto em cega-regra em meus ouvidos
a igualar no meu olhar quase adormecido
o denodo afadigado da formiga
na sua correria costumada
em defesa da fartura do celeiro
temente pelo final do Outono
que traz consigo
o granizo o frio e a geada
e a teia urdida no tear do nevoeiro.
Enquanto no semblante dos espelhos
o calendário vai desenhando outras feições
que juramos não serem nossas
a vida passa a somar as horas
os dias, os meses e os anos.
Os céus acordam sempre iguais
mesmo com Sol
continuam escuros
Onde se escondeu o passado
sem pedras no caminho
e o perfume das rosinhas de toucar
enamorado da cal que vestia os muros.
É então que soa um grito
que recorda ao coração
num sobressalto de espanto
os nomes que já não chamo.
nesta fria solidão.
E a tristeza que há em mim
porque desígnios não sei
vem juntar-se num abraço
à saudade e ao amor
na lembrança que não morre
dos nomes por quem chamei.
Soledade Martinho Costa
(Inédito)
ATÉ AO FIM DE MIM
De corpo e alma
Estou na tua frente
De corpo e alma e tua
Eis-me aqui
Mas sem trazer comigo
Das palavras
As que te conte
As vezes que morri.
Que foi pela tua mão
Eu sei que foi
Que a vida me escolheu
E me mostrou
Na solidão do meu nome
E de quem sou
Uma estrada onde o fado
A mim prendi
Com franjas de mistério
E de destino
No xaile todo negro
Que vesti.
De corpo e alma
Estou na tua frente
À espera de te ouvir
Dizer porquê
A razão desta mágoa
Deste canto
Desta voz que me deste
E reparti.
Soledade Martinho Costa
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