– Olha, lá vem a Pomba-Torcaz! Volta de férias no Norte da Europa. Que sorte! Eu, então, só conheço os arredores deste pombal… – lastima-se a senhora pomba-de-leque.
O senhor pombo-gravatinha dá a sua opinião:
– Cá por mim, não me queixo. Acho lindo o nosso povoado! Além disso, não tenho de me ralar sempre a fazer as malas. Uns regressam, outros vão-se embora. É o Outono, e está tudo dito. Partiram as Andorinhas, as Cotovias e os Rouxinóis. Estão de abalada os Cucos, os Melros e os Noitibós. Mas temos de volta os Patos-Bravos, as Rolas e as Narcejas. Calculo, senhora Pomba-de-Leque, as coisas interessantes que trazem para nos contar!
– Pois sim. Mas eu também gostava de viajar, de conhecer outros lugares… – responde a pomba, numa confissão.
O pombo-de-papo mete-se na conversa:
– Sabe, senhora Pomba, nós não somos aves migratórias. Somos pombos domésticos. Aí tem a diferença. – diz ele, a confortá-la. E acrescenta:
– Um destes dias, vou convidá-la a acompanhar-me num passeio à cidade. Verá os jardins onde as flores só brotam da terra graças às mãos dos jardineiros. As pessoas apressadas, que já nem sabem dizer bom-dia. E os prédios altos, mais altos do que as ondas do mar quando se enfurece. Verá também os carros barulhentos que poluem de cinzento a atmosfera. E as ruas estreias, tão estreitas, que o sol, por mais voltas que dê, não consegue lá entrar. Quando regressarmos, tenho a certeza de que vai achar muito mais bonita a praia, lá em baixo, e os arredores do nosso pombal!
A senhora pomba, olhinhos redondos como missanga, arrulha, num enleio:
– É capaz de ter razão…
E aninham-se os três, a senhora pomba-de-leque, o senhor pombo-gravatinha e o senhor pombo-de-papo, fora do pombal, a ouvir o mar, ao longe, para além do sítio onde fica a sua casa.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Histórias que o Outono me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
Andar passos antigos
Sem fadigas
Inesperados de rumos ou cautelas
Que nunca nelas meu temor gastei.
Caminhar sobre os anos percorridos
Ruas, nomes, portas e janelas
Trazidos de tempos esquecidos
Em chão onde lancei sementes
Onde criei raízes e sonhei.
Regressados são agora
Sem aviso
Na memória de fulgores antigos
Gravados no opaco dos cristais
Numa teima em lembrar comigo
As horas de outras horas que guardei.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde»
Edicões Sarrabal
Tela: Duy Huynh
Há perto de 30 anos, sempre que acordo, dou com este rosto de criança, de olhar enigmático, mas doce, sereno, talvez um pouco triste, e muito ataviada de enfeites, rendas e roupagens. Por baixo, numa chapinha dourada dois nomes: «Princesa Eleonora – Pourbus». Comprei o quadro em Lisboa, numa loja de decoração, que já não existe. Gostei do rosto da menina, da moldura, dos tons das tintas, da tranquilidade que todos esses elementos, no seu conjunto, nos transmitem. Umas vezes com mais tempo, outras com menos, tentei, depois, saber quem era esta princezinha que veio morar no meu quarto. Não foi fácil descobrir o mistério que se escondia por trás do seu olhar. Demorei muito tempo até conhecer, entre muitas figuras da monarquia estrangeira, quem era, afinal, Eleanora Gonzaga Princesa de Mântua. Comparando nomes, datas de matrimónios, nascimentos e falecimentos, acabei por ordenar toda a história, saindo bastante surpreendida com o final, inesperado, que se esconde muito para além do olhar desta criança.
Sua mãe foi Margarida de Sabóia Duquesa de Mântua (apelido herdado de seu marido, Francisco Duque de Mântua), nascida em Turim (Itália) em 1589. No ano em que o nosso país perde a independência (1580) e começa a ser governado por um vice-rei espanhol, Margarida de Mântua, em nome da dinastia filipina, é nomeada vice-rainha de Portugal, tomando posse do lugar em 1634. Reinava a Duquesa de Mântua, quando se dá a Restauração da Independência em 1640. Margarida, foi, assim, durante seis anos, a última vice-rainha de Portugal em nome da dinastia filipina. Presa no Convento de Santos, em Lisboa, de personalidade forte, buscando o poder e perfilhando a intriga, ainda tentou, na condição de prisioneira, uma contra revolução, mas sem êxito. Nesse mesmo ano, parte para Burgos (Espanha), onde acaba por falecer em 1656.
Viúva de Francisco Gonzaga Duque de Mântua e de Montferrat (falecido vítima de surto epidémico), foi mãe de três filhos: Maria; Ludovico (que faleceu ainda criança com o mesmo surto que vitimou o pai) e Eleonora, falecida no dia seguinte ao do seu nascimento, verificado a 12 de Setembro de 1612. E aqui temos a Eleonora que procurava desde há muito! Maria (já duquesa de Rethel e Montferrat), acaba por dar o nome da falecida irmã a uma das suas filhas: Eleonora.
Mas não se julgue que a história acaba aqui! Falta a pergunta que se impõe: se a bebé faleceu no dia seguinte ao do seu nascimento, como é que aparece retratada, como criança, pelo pintor Pourbus, conforme o atesta a chapinha do meu quadro?! Falemos, então, de Pourbus.
De seu nome Frans Pourbus, o Jovem (por ser filho e neto de pintores), nascido em Antuérpia (Bélgica, em 1589), pintou as mais notáveis personalidades do seu tempo – incluindo os monarcas de diversas casas reais. Seria este genial artista quem viria a pintar o retrato de Eleonora de Mântua, como uma menina já crescidinha, muito embora, ela se tivesse recusado a permanecer na Terra. Como foi isto possível? Guiando-se pela sua intuição de artista, valendo-se da sua arte, da sua imaginação, da sua fantasia, circunscritas à visualização de semelhanças, induzida, por certo, pelo conhecimento e contacto com os familiares da criança. E aí temos, finalmente, revelado, o segredo da «minha Eleonora de Mântua», graças ao engenho e arte de Frans Pourbus.
O retrato que mostra uma menina adornada com pulseiras e colares de pérolas, a segurar um fruto na mão direita, não é, afinal, o de uma menina verdadeira. Não existe, nunca existiu! A Eleonora de Mântua que mora há perto de 30 anos na parede do meu quarto, sobre a cómoda, não é mais do que o resultado da tocante invenção e criação de um notável pintor.
Agora, que descobri o segredo que se esconde atrás do seu olhar, que sei que se trata de um anjo que subiu aos Céus, só pretendo pedir-lhe protecção e passar a dar-lhe os bons-dias todas as manhãs.
Soledade Martinho Costa
Vestiram-se de luto
As cordas das guitarras
Calou-se a tua voz
Companheira de longas caminhadas.
Nossa Senhora do Carmo
A quem pedias
Que te acompanhasse
Em cada palco
Chamou-te um dia a si
E tu partiste
Ao encontro de quem por ti chamava.
Ficou o teu perfume no cristal
Aprisionado na distância e na saudade
Entre o silêncio
E o rolar da lágrima
Como quem espera a vinda sem sinal
De um barco que no mar
Está naufragado.
Lembrar agora as tuas mãos
Em sobressalto
E a solidão do teu olhar
É mais do que saber de ti
Onde tu moras.
É dizer que as rosas
Também choram
Quando lhes falta quem as ame.
Recordo a tua sala
Os sons, a luz
O teu retrato, o teu piano
Os objectos dispersos
Em sítios que a memória traz.
Hoje o teu nome
Como o da ave o roçar da asa
Bate diariamente à tua porta.
Sobe os degraus de pedra
E vai procurar-te
Ao lugar onde não estás.
Tu continuas a ser a tua casa.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde»
Edições Sarrabal/Lunadil Uni Lda.
(O vídeo está publicado no post acima))
Não me foi possível mencionar aqui, no passado dia 23 de Julho, o aniversário do «Sarrabal – 13 anos! O tempo passa, os anos somam e, muito embora os blogues tenham muito menos impacto do que já tiveram, este vai continuando. Já só tenho a agradecer um ou dois comentários feitos nos últimos tempos. Mas sei que as publicações vão sendo lidas. No Canadá, por exemplo, tenho um leitor fiel, conquanto não comente. Para si, Virgílio Pires, o meu abraço com a amizade de sempre!
O ano tem sido terrível, de tristeza e de preocupação. Mesmo assim, a vida continua, menos alegre, mais solitária. Muito diferente da vida que tínhamos meses atrás. Esperemos que voltem os dias felizes, em família, com os amigos, livre de medos e inquietações.
Para todos os leitores do «Sarrabal» vão os meus votos de protecção, de saúde e de felicidades. E um obrigada a quem me vai lendo!
Soledade Martinho Costa
Nunca contei como se deu o meu primeiro encontro com AMÁLIA. Era ainda muito jovem quando a vi nos palcos. Após o seu inigualável êxito no fado, estreia-se no teatro de revista (Maria Vitória) em 1940, como atracção do espectáculo em cartaz, Seguem-se outras revistas, também como atracção principal («Rosa Cantadeira»; «Essa é que é Essa»; «Espera de Toiros» e «Estás na Lua», entre outras). É protagonista da peça «A Severa», faz a opereta «Mouraria» e grava para a RTP «A Sapateira Prodigiosa». No teatro, actua no Brasil por longas temporadas. A sua estreia no cinema ocorre em 1947 com o filme «Capas Negras», seguido de outros, que continuam a deliciar-nos e a mostrar os dotes de uma artista versátil, multifacetada, sem contar com a sua evidente fotogenia.
Na altura em que a conheci pessoalmente, eu era cliente do Cabeleireiro Eva, no Edifício Palácio da Rotunda, no Marquês do Pombal, onde me mantive durante muitos anos. É certo que me ausentava por largos meses no Algarve ou na Beira Litoral, mas quando me encontrava na minha casa em Alverca do Ribatejo, era o Senhor Manuel Brito, o proprietário, que recebia a minha visita sempre fiel. AMÁLIA era sua cliente muito mais antiga. Desde o tempo do «Cabeleireiro Brito & Brito», reconhecidíssimo em Lisboa [Chiado], numa associação dos irmãos Manuel e Armando Brito. Curiosamente, ambas clientes do mesmo cabeleireiro durante anos, nunca nos tínhamos encontrado. Quando a técnica Celeste vinha «tratar de mim» era certo dar-me a novidade: «A Dona Amália esteve cá hoje, ou ontem ou esta semana!» Porque a Celeste era, também, a técnica de AMÁLIA! O Senhor Brito (sempre impecavelmente vestido) procedia ao penteado e dava os últimos retoques. A mim, nunca me penteou. O meu cabelo guiava-se pelos cortes mais actualizados, sem rolos, sem ripados, sem laca. Quem me penteava era a Rosi. Quando AMÁLIA tinha um concerto, a Celeste e o Senhor Brito deslocavam-se a sua casa na Rua de São Bento. O senhor Brito, vinha, sim, conversar comigo. Sempre tive na sua pessoa um amigo muito especial. Por norma, no final, vinha acompanhar-me, desde o último piso, na descida do elevador até à porta do edifício. São amabilidades que nos sabem bem e que não esquecem.
Mas tinha de chegar a ocasião! Um dia, entro na Eva, e deparo, na entrada, com AMÁLIA! Simplesmente vestida, com um casaco preto e de «sabrinas», facto que lhe acentuava a sua pouca altura. Entrámos ao mesmo tempo no salão, direitas «às mãos da Celeste». Sentadas uma ao lado da outra (depois, consecutivamente noutras cadeiras), era impossível não falarmos. Provavelmente, teria sido eu a dar início à conversa – que nunca mais parou! Perguntou-me o que fazia e vieram os livros e os poemas. Mostrou interesse em conhecer o que eu escrevia e pediu-me um livro. Contou-me, então, que estava muitíssimo triste pela morte, no início desse ano (Março de 1990), do seu grande amigo e autor de grande parte das músicas que cantava: Alain Oulman. Estendeu-me uma das mãos e mostrou-me um anel enorme, muito bonito: «Teimou em oferecer-me este anel, mas eu não queria aceitar. É uma jóia de família. Mas tanto insistiu, que aceitei.» Pouco depois, mandou vir um chá e uns bolinhos, que repartiu comigo. O chá foi trazido pela Lili, sua secretária, que a acompanhava quase sempre. Lili fora empregada, anos antes, num restaurante da Tonicha, que fechou. Nessa altura, AMÁLIA convidou-a para residir em sua casa como sua assistente A conversa prosseguiu, saltando de assunto para assunto, mas «sem perder de vista» os livros e os poemas. Confessou-me que não andava a sentir-se muito bem, pior ainda com a morte de Alain. Como «mais vale cair em graça do que ser engraçado», achei, de imediato, que tinha «caído em graça» à minha querida DIVA do FADO. Foi quando a vi abrir a mala, tirar um papelinho e uma caneta, e dar-me um o papelinho com a explicação: «Tem aqui o meu número de telefone. Ligue e apareça lá em casa. Fazemos uns serões engraçados. Gostava de a voltar a ver, para conversarmos melhor, aceita?» Disse que sim, meio comovida e retribui dando-lhe, por minha vez, o meu número de telefone. AMÁLIA sugeriu: «Quando me for visitar, leve-me um livro de poemas. Fiquei curiosa, sabe?» Acreditem que as suas palavras não se devem ao facto de eu ter enaltecido o meu trabalho. Nessa altura tinha dois livros de poemas publicados. Despedimo-nos com beijinhos. O encontro demorara anos, é certo, mas tinha merecido a pena! A simpatia de AMÁLIA, a sua simplicidade, a sua maneira desafectada e bonita (estava mais bonita depois de penteada por Manuel Brito!), deram-me a certeza de ter nascido entre ambas uma sólida amizade. E não me enganei. Cheguei a casa (também mais bonita devido às mãos hábeis da Rosi), feliz e ansiosa por dar a grande novidade à família: tinha conversado a tarde inteira com a mais bela voz do fado, de todos os tempos, em Portugal! A única, a intemporal, aquela que se ouve pela primeira vez e se fica a admirar e a amar para sempre: AMÁLIA RODRIGUES!
Estávamos em 1990. Foram 9 anos de convívio e de amizade – hoje, de eterna e agradecida saudade.
Soledade Martinho Costa
(Manuel Brito, faleceu em 2013, altura em que se dá por encerrado, definitivamente, o Cabeleireiro EVA. O filho, também de nome Manuel de Brito, editor da Contexto (que publicou obras relevantes e de excepção), por motivos de saúde, encerra também a sua actividade na Editora, em 2001, vindo a falecer no passado mês de Maio de 2019 com 68 anos de idade.)
(Alain Oulman faleceu a 29 de Março de 1990, em Paris, com 61 anos)
No dia 25 de Junho de 2020, dirigi-me ao Hospital Cuf da Infante Santo para fazer uma ecografia. Numa das porta a dar para o átrio, encontrava-se uma funcionária, munida de um termómetro e de um frasco de desinfectante. Mesmo comigo no passeio, tirou-me a temperatura e tentou despejar-me o desinfectante nas mãos, antes mesmo que eu lhas estendesse, como é costume, fazendo «conchinha».
Entrei depois no hospital e dirigi-me ao balcão para proceder à entrega da requisição médica e ao pagamento do exame. A funcionária, um pouco acanhada informou: «Além do preço da ecografia tem a pagar mais 7 euros e 50 cêntimos relativos a um kit.» Surpreendida, perguntei: «Que espécie de kit?» E a resposta: «Isso não sei. Sei que se trata de um kit. Nós não temos culpa. São ordens da administração.» Explicou, ainda mais embaraçada.
Ao entrar no exíguo compartimento onde deixamos a nossa roupa e pertences, vi que o estofo da cadeira estava molhado. Fiz o meu reparo à assistente que me acompanhava: «Ah! isso é do desinfectante, não tem importância!» Respondeu. Perguntei então: «Sabe dizer-me qual o kit que paguei, além do exame?» Fiquei, finalmente, esclarecida: «É o preço da desinfecção que fizemos a este gabinete e à sala onde está a médica que lhe vai fazer a ecografia. Cada utente paga um kit!»
Ultimamente, tenho sentido vergonha pelo comportamento irresponsável e reprovável de grande parte dos portugueses perante os cuidados a ter com o Covid. Essa vergonha acentuou-se, ao ver o espírito mesquinho da administração deste hospital, que faz a desinfecção das suas instalações à custa de quem ali se dirige, como forma de negócio oportunista para angariar mais uns euros. Ou não será da inteira responsabilidade dos centros hospitalares, em situação de epidemia como esta que o país atravessa, manter as suas instalações higiénicas e desinfectadas para uso confiável dos seus utentes? Quando as famílias portuguesas se debatem com graves problemas económicos, acrescentar mais uns euros aos exames clínicos já de si de valor elevado, resulta numa vergonha sem limites – que me faz duvidar, até, que um tal procedimento seja legal ou, mesmo, que a Lei o permita.
Dias antes, estive na Clínica Lusíadas na Amadora, para fazer uma ressonância magnética. À entrada, dois funcionários. Enquanto um me mediu a temperatura, o outro solicitou-me que tirasse a máscara que levava e a deitasse num recipiente próprio, enquanto me estendia uma caixa para que retirasse e colocasse uma máscara nova. Por fim, pediu-me para pôr as mãos em «conchinha» e deitou nelas o desinfectante. No gabinete respectivo retirei a roupa e vesti e calcei uma bata e umas «pantufas» descartáveis. Entrei depois na sala do exame, onde se encontrava o médico e dois assistentes. Ora, aqui, houve custos: a desinfecção do gabinete e da sala, além da bata e das pantufas descartáveis. No outro hospital nem sequer vesti bata nem calcei «pantufas». Aliás, fui logo avisada: «Não precisa descalçar-se!» (fora das medidas preventivas aconselhadas, que nós, até em nossa casa adopta-mos!)
Para finalizar, e feitas as contas, o Covid ainda veio dar um lucrozinho extra ao Hospital Cuf, não é verdade? São estes «cérebros privilegiados» que proliferam (e prosperam) neste país à beira-mar plantado!
Soledade Martinho Costa
Responde: RITA FERRO
DESABAFO: É a tangente, a derrapagem, a vertigem da confissão. Decorre de um estado de saturação brevíssimo, mas arriscado. Junto da pessoa errada, é um convite à devassa, à deturpação, ao paternalismo e à conclusão grosseira. Não é justo, é nervoso e parcial: diz apenas o necessário para que alguém nos aplique o penso rápido do consolo imediato. Nele a verdade é falsa, como diria Jorge de Sena.
SUGESTÃO: Uma vingança menor.
DISPARATE: Proferi-los ou executá-los pode custar tão caro como reprimi-los. Pode invejar-se mais um disparate do que um bem material. E é talvez por isso que os disparates que fazemos para nos salvarmos são muitas vezes os que acabam por nos afundar. Nós mandamos neles, mas as pessoas mandam em nós. E só fazendo disparates, muitos, é que se aguenta essa humilhação.
ESCÂNDALO: Uma factura que vale sempre a pena. Ou para quem a assina, e degusta o profano gozo da independência, ou para os que não ousam e necessitam de ser avaliados por comparação.
APLAUSO: É, em última análise, divertido: só nós sabemos o que valemos, e esse segredo, velhaco ou escarninho, é talvez o mais bem guardado da existência. E se não fosse injusto não causaria tanto incómodo.
EXPECTATIVA: Um desgaste desnecessário: nunca é a felicidade que está em jogo mas a solução provisória de que julgamos depender.
PREOCUPAÇÃO: Nasce no útero, durante a passagem estreita. Ninguém acredita que se pode caber em dois dedos de dilatação.
EMOÇÃO: Um falso estado de felicidade com muita procura. Não é tão serena como a felicidade, mas pode ser mais fecunda, generosa, criadora.
AMOR: Muitos acham que amar é acreditar (por um mês, por toda a vida) que o outro lhe lavará as chagas, protegerá do frio, saciará a sede, os amará corcundas ou doentes. Descobrem que não é amor quando se apercebem que outra pessoa lhes poderá prestar um melhor serviço com menos custos.
SAUDADE: A lástima de descobrirmos que, afinal, parte de nós são as coisas e os outros.
SONHO: Uma belíssima alternativa de vida para quem tem o sono pesado.
MEDO: Não posso. Não consigo. Não chego. Não sei. Uma paralisia convincente.
INTIMIDADE: A conquista da cegueira (ou até da estima, ou até do amor) do outro relativamente às nossas fealdades e menoridades. É prémio. É repouso.
FIGURA PÚBLICA MAIS: A que é amada, compreendida, perdoada.
FIGURA PÚBLICA MENOS: A que apenas realiza. A apenas pública.
CALENDÁRIO: Uma simples burocracia. O que há nos anos, nos meses e nos dias nunca são os anos, nem os meses nem os dias
Coordenação: SOLEDADE MARTINHO COSTA
Fotografia: RAÚL CRUZ
(Publicado pela primeira vez na revista Notícias/Magazine do Diário de Notícias)
O sopro da distância
Traz-me o som sem palavras
De um piano.
Em voos de borboleta
Que dedos afloram as suas teclas
Quem se debruça nelas?
Enquanto a tarde esfria
Nas notas que se abraçam
Ao perfume verde da paisagem
A melodia aquece o coração.
Sobrepõe-se e silencia
O rumorejo do arvoredo
E o marulhar das ondas
A oferecer uma orla de renda ao areal.
Mistério, fascínio, magia
São as palavras certas
Os acordes têm asas e soltam-se
Talvez por uma janela aberta.
O momento torna-se irreal
Fecho os olhos e penso
Quanta perfeição, quanta harmonia
Entre a música e a natureza.
Fecho os olhos e tenho a certeza
De que alguém, ao longe
Toca para mim.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Um Piano ao Fim da Tarde
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