«Anjos do Beijo», William Bouguereau.
Mais de uma vez a minha amiga se me havia queixado da empregada doméstica. O serviço andava atrasado, a hora do almoço (há uma) escorregava sempre para mais tarde, as pratas não tinham sido limpas, a roupa por engomar continuava a mostrar algumas peças deixadas para outro dia.
- Não sei o que se passa com a Elvira, mas as coisas não andam bem. – Repetira-me, durante uma das minhas visitas. – Calcula que dá agora em levantar-se mais tarde. Sinceramente, não compreendo.
A empregada, fixa, há mais de um ano que trabalhava em casa da minha amiga e não havia, até então, razão de queixa. Pelo contrário. Era cuidadosa, trabalhadora, mantinha a casa em ordem, a comida era bem feita. Nova, vinte e seis anos, simpática, bonitinha, até.
A minha amiga ocupava apenas uma parte da casa, no Bairro Azul. Ou seja, passava o tempo, quando não saía – e saía muitíssimo – entre o seu quarto, a sala de visitas e a salinha de trabalho. Almoçava na marquise, cheia de luz e de plantas, e mal punha os pés na sala de jantar, no quarto de visitas ou na biblioteca. À cozinha ia de vez em quando. Mas este problema com a Elvira, para ela, pessoa organizada, senhora do seu feitio, começava a originar uma situação incómoda, a pôr em risco (pensei eu) o emprego da rapariga, que adorava a casa e a patroa, apesar do seu carácter impetuoso.
Habituada a receber bem, a sua casa fora lugar de tertúlias, onde escritores e políticos faziam ponto de encontro. Mais tarde, com o marido e o filho no Brasil as coisas mudaram. Ela é que não. Tratava-me por tu, eu tratava-a pelo nome: Alice. A diferença de idades era grande. Eu tinha, exactamente, a idade do filho, na altura vice-reitor da Universidade de São Paulo, no Brasil.
Alice não beijava ninguém. Detestava beijos. Lembro-me da minha filha ter tentado cumprimentá-la com dois beijinhos. Logo o braço se estendeu a impossibilitar a tentativa, coisa que magoou e hostilizou a garota até bem tarde. Algumas pessoas ficavam escandalizadas. Só quem conhecia a sua aversão aos beijos levava a bom porto o cumprimento.
Sem vaidade, era eu a única pessoa que usufruía de tal privilégio. Quando nos encontrávamos eu recebia dela dois beijos e ela outros dois dados por mim. Dizia: «Em muitas coisas, vejo em ti a minha continuidade.» E acrescentava: «Depois, sabes, és da idade do meu filho. Só tu é que levas beijos meus. E dás!» E a conversa seguia o seu rumo.
Dinâmica, costumava acordava-me com um telefonema: «Então, preguiçosa, ainda estás deitada? Vê bem o que eu já fiz hoje:» E aí vinha o rol de tarefas cumpridas muito menos da manhã chegar a meio.
À noite, invariavelmente, repetiam-se os telefonemas: «Já estás deitada ou ainda não? Eu já estou na cama, mas apetece-me conversar um bocadinho…». E foi assim ao longo dos anos.
Familiares seus e alguns amigos surpreendiam-se por me dar optimamente com uma pessoa apontada como difícil no que respeitava ao relacionamento com os outros. Na verdade, sempre me dei bem com pessoas consideradas de índole difícil. Talvez uma táctica que utilizo e dá resultado. Saber ouvir é o primeiro passo. Não contradizer demasiado, mas fazer respeitar a minha opinião, o segundo. Os passos seguintes vêm por acréscimo. Costumo chegar à conclusão de que há nestas pessoas qualidades escondidas que superam os defeitos visíveis à superfície.
Só uma coisa me metia medo. Os convites da minha amiga para almoçar, jantar ou tomar chá. No tempo da Elvira, um mar de rosas. No tempo pós- Elvira, um calafrio. Os ingredientes, as misturas, os condimentos assustavam qualquer um. A minha amiga não era dotada para a cozinha. Mas insistia. Não havia tacho ou panela que resistisse muito tempo em bom estado. A chama dos bicos do gás, sempre altíssima, acabava-lhes rapidamente com as respectivas asas. A comida, a maior parte das vezes, também ficava agarrada ao fundo. Felizmente, nunca me senti indisposta. A indisposição vinha sempre antes da refeição.
Com os chás acontecia o mesmo medo. Era uma tentação para ela experimentá-los, misturá-los, utilizando uma série de chás que tanto podiam vir da Índia, como da China, de Londres (vá lá!) ou do Brasil. Tomar chá em casa da minha amiga, para mim, constituía um risco. Bebia a medo um gole ou dois e ao convite: «Bebes mais?», respondia invariavelmente: «Não, obrigada.» E a Alice, a rir: «Tens medo, é?» À cautela, o meu chá ficava-se pelas torradas e as bolachinhas…
Mulher corajosa, extremamente frontal, inteligente, trabalhadora incansável em prol da Criança e das jovens desprotegidas, esteve presa por antifascista na cadeia do Aljube, em Lisboa, juntamente com o marido, durante dois anos. Costumava dizer-me: «Desse tempo, resta-me a consolação de termos feito o meu filho, o João Paulo.»
Impedidos de exercer a carreira de professores liceais em escolas do Estado, contava-me que tinha sido por intermédio (paradoxal) de Fernanda de Castro, mulher de António Ferro, que haviam conseguido colocação no Ensino Privado. Até então, limitavam-se ambos a dar explicações em casa. «Tempos difíceis esses, muito difíceis.» Recordava. Mais tarde o divórcio e a ida do filho para o Brasil, para se juntar ao pai. Ficou sozinha. José Régio, padrinho do filho, propôs-lhe casamento, mas Alice rejeitou. Por fim, a doença do irmão mais novo, que foi buscar em fase terminal para lhe morrer em casa, rodeado de carinho e de cuidados.
Esta última provação marcou-a profundamente. De tal forma que acabou por sofrer as inevitáveis consequências: a marginalização de que fora vítima não se limitou ao exercício da sua profissão. Acompanhou-a pela vida fora. Um espinho aqui, outro acolá, o seu nome constava de uma «lista negra», que não lhe dava tréguas. Mas batalhou até ao fim. Comentava muitas vezes que tinha sido marginalizada «antes e depois do 25 de Abril».
É dela uma «carta aberta» que me dirigiu, publicada no extinto Jornal da Educação, do nosso comum e saudoso amigo Afonso Praça. Sim, porque eu própria fiz da caneta (teclado?) lança e andei por aí a lutar, não contra moinhos de vento, mas contra os ventos que sopravam em desfavor da Literatura Portuguesa para a Infância e de muitos autores consagrados. Tão marginalizados quanto o era a minha amiga Alice – acrescidos outros motivos.
Nesses anos encabeçava eu um movimento que fez história. Abaixo-assinado (três dezenas de escritores, menos os que não puderam assinar por razões politico-partidárias, embora por carta, telefone ou pessoalmente se mostrassem solidários com o grupo), reunião com o ministro da Educação da altura. Artigos, muitos, assinados por mim. A começar no “Expresso” e a acabar no extinto “Diário Popular”. Recordo-me de um deles, a duas páginas centrais, com o título «Ditadura Cultural Exercida sobre as Crianças» – título da responsabilidade da redacção, exemplarmente escolhido.
Quando a doença chegou, inesperada, brutal, sem nada que a pudesse pressagiar, a minha amiga deixou de me querer ver. Que não, não fosse lá a casa, preferia assim. Fiz-lhe a vontade. A enfermeira permanente à sua cabeceira fazia a ligação. Por fim, pedia ao filho, regressado do Brasil, para me ligar. A partir de um certo dia o telefone emudeceu. Ficou a recordação. Até hoje. Vítima de doença prolongada, nem sequer o foi. Bastaram-lhe três a quatro meses. Voltei a sua casa para lhe levar dois ramos de flores.
Certa vez, vaticinou: «Quando morrer, se calhar, nem vais ao cemitério pôr-me uma florinha!» Protestei. Mas ela acertou. Por mim, tudo em vida, depois…Daí, fazer de conta que estas linhas representam a flor que não lhe levei e prometi.
Num dia em que a visitei, arrastou-me para a salinha de trabalho e num alvoroço segredou-me:
- Já sei o que se passa com a Elvira. Já descobri!
- Então o que é? – Perguntei.
- Livros, filha, livros!
- Livros?! Não percebo.
- Já vais perceber. A Elvira vai à biblioteca e é um livro atrás do outro. Por isso é que atrasa o trabalho. É que adormece tarde e acorda tarde de manhã!
- Mas como é que sabe, Alice?
- Porque fui dar com ela sentada na cozinha a ler um livro. Quando me viu escondeu o livro atrás do peitilho do avental. Depois, contou-me. Fiz-lhe perguntas. Sabes que mais? Já estou arrependida de a ter mandado aprender a ler! – Rematou.
Ao ouvir estas palavras nem quis acreditar. Vindas de uma escritora e pedagoga não era caso para menos. Fiquei decepcionada, confesso. Mas logo a luzinha brilhou ao fundo do túnel.
- Bom, como a rapariga descobriu o gosto pelos livros, agora só tenho é de arranjar-lhe um horário compatível para a leitura, não achas? – Piscou-me um olho e sorriu.
Lá tinha eu, de volta, a amiga a quem admirava e que muitos conheciam tão mal. Ou não quiseram conhecer.
A minha amiga era a escritora Alice Gomes. O marido, o poeta Adolfo Casais Monteiro e o irmão mais novo o escritor Joaquim Soeiro Pereira Gomes.
Soledade Martinho Costa
Alice Gomes, Adolfo Casais Monteiro e Soeiro Pereira Gomes