São Martinho de Anta, Sabrosa, Vila Real.
Não são apenas as festividades rurais ligadas ao primeiro de Maio a merecer reparo pela sua expressividade popular, cumpridas, ciclicamente, em rituais e crenças. Também os dias 2 e 3 de Maio são celebrados entre nós com idênticas manifestações de carácter festivo, comportando todas elas praxes cerimoniais específicas.
Enquanto algumas têm origem em ritos pagãos campestres perfilhados pela Igreja, outras têm por intenção invocar, tão-só, factos ou mitos considerados dignos de relevância. Umas e outras a misturar na sua componente o histórico, o religioso e o profano, particularmente entre a comunidade rural, onde crenças e práticas rituais continuam a verificar-se em datas festivas, como herança perpetuada até aos nossos dias. Já na antiga Roma tinham lugar nos dias 1, 2 e 3 de Maio, as Florais ou Florálias, festas celebradas em louvor de Flora, deusa das flores e mãe da Primavera.
"A Primavera", Alessandro Filipepi (Botticelli).
Amada por Zéfiro, vento do oeste, e venerada pelos Sabinos – antes da submissão deste povo aos Romanos, em 220 a.C., e da própria fundação de Roma – , Flora apresentava-se no seu templo, no Quirinal, uma das sete colinas onde foi construída Roma, permanentemente adornada com grinaldas de flores.
Flora, pomenor do quado "A Primavera" de Botticelli.
As celebrações tiveram, de início, um carácter campestre e popular, com jogos e danças, mas acabaram por tornar-se extremamente licenciosas.
Daí, ser provável, a eventual relação entre as celebrações a Flora e as comemorações rituais campestres que se efectuam no nosso e noutros países nos três primeiros dias de Maio, principalmente no dia 3 – dia da Santa Cruz, ou dia das Cruzes, dia da Bela Cruz, ou dia da Vera Cruz – , data em que se regista uma das mais antigas solenidades litúrgicas da Igreja, já celebrada em Jerusalém no tempo do imperador romano Constantino, baseada na exaltação do triunfo de Cristo sobre a morte.
Constantino I, o Grande, imperador de Roma.
Constantino Magno foi o legislador da paz para a Igreja, ajudando a consolidar o Cristianismo como religião nova no Império Romano.
Várias são as tradições que apontam este dia como um dia santificado, ao qual estão ligadas diversas lendas, como a que se refere ao milagre do achamento da verdadeira Cruz de Cristo, por Helena, mãe de Constantino, quando da sua viagem à Palestina, na intenção de procurar o madeiro da Cruz em que o senhor foi crucificado.
Santa Helena.
Segundo alguns investigadores, existem registos desse achado no século XIII, dando-o como ocorrido no século III.
Santo Lenho ou a Cruz de Cristo.
Assim terá acontecido, tendo Helena dado a seu filho parte do Santo Lenho como preciosa relíquia.
Relicário do Santo Lenho, em exposição na Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Alentejo.
A restante foi repartida pelo mundo cristão, representando a Relíquia Sagrada, que acompanha em relicário e sob o pálio a imagem do Senhor nas procissões, conquanto nem todas as dioceses a possuam.
Relicário do Santo Lenho, Igreja Matriz de São Miguel de Travassô, Águeda, Aveiro.
A Festa do Achamento da Cruz passou, entretanto, de Jerusalém para todo o Oriente e logo depois para o Ocidente. Roma realizou estas festividades pela primeira vez no século VII.
Capela de Santa Helena, Praia Formosa, Santa Cruz, Torres Vedras.
Segundo a lenda, o Santo Lenho, roubado séculos mais tarde pelos Persas, terá sido recuperado pelo imperador Heráclio, que o levou às suas próprias costas, desde Tiberíades até Jerusalém, onde a Cruz foi entregue ao patriarca Zacarias, no dia 3 de Maio de 630 - data que recebeu a designação do Dia da Santa Cruz ou Invenção da Santa Cruz.
A sumptuosa Basílica de Santa Cruz, em Jerusalém, foi depois mandada construir por Santa Helena para receber as Relíquias do Santo Lenho, ali abrigadas há mais de 15 séculos
Basílica de Santa Cruz, Jerusalém.
Sob a mesma designação, o acontecimento do Achamento da Cruz é celebrado, oficialmente, no calendário católico a 14 de Setembro.
Das inúmeras festas e romarias que têm lugar nestes dias de norte a sul do País, uma praxe é comum a todas elas: a de enfeitar com flores variadas, verdura, rosmaninho e «cordões de maias» (giestas) as fontes, os cruzeiros e, até, as campas dos cemitérios e as encruzilhadas – neste último caso, para «proteger as pessoas e os animais dos malefícios das bruxas, quando à noite por ali passarem».
Serra da Freita, Aveiro.
Assim acontece nas localidades de Fronteira (Cabeço de Vide, Alto Alentejo); no Ribatejo, em aldeias do concelho de Alenquer (Tojal, Casais de Maçaricos, Mossorovia); na serra da Freita (Aveiro, Beira Litoral); no Vimieiro (Beira Alta) e em Alpalhão (Alto Alentejo), entre outras.
Alpalhão.
Designado em Alpalhão pelo «dia em que vão esperar a Dona Rosa», a denominação poderá representar, também ela, uma reminiscência dos rituais praticados na Grécia Antiga, no dia 3 de Maio, em honra de Cíbele, deusa da terra e dos animais, que tinham por finalidade «receber a Primavera», simbolizada por uma jovem vestida com flores e verdura, transportada pelos campos num andor.
Alpalhão.
Antigamente, este dia era também chamado pelos Alpalhoenses «o primeiro dia da sesta», por ser a partir dessa data que eram permitidas aos trabalhadores rurais duas horas diárias para descanso.
Alpalhão.
Situação idêntica verifica-se em Almalaguês (Coimbra), quando os habitantes da freguesia se dirigem à ermida da Senhora da Alegria, no dia que lhe é consagrado.
Ermida da Senhora da Alegria, Almalaguês, Coimbra.
Na volta «traz-se a sesta». Ou seja, a partir da festa da Senhora da Alegria passa-se a dormir a sesta após o «jantar» (almoço), para recuperar as forças, que a lida nos campos não dá tréguas e começa cedo.
Soledade Martinho Costa
"A Sesta", Vincent Van Gogh
In “Festas e Tradições Portuguesas”, Vol. IV
Ed. Círculo de Leitores