A todos os meus leitores desejo um Santo e Feliz Natal!
Soledade Martinho Costa
(Foto protegida ao abrigo do código do direito de autor)
«[…] houve uma solução para a minha teimosa aversão às filhoses. Numa manhã em que nós, as crianças, nos dirigimos à cozinha para ver os presentes, tinha eu no meu sapato, além dos brinquedos, um cartucho de papel pardo (será que existe ainda tal coisa?) cheio de filhoses. Os direitos de autor […] desta criativa ideia vão inteirinhos para a minha tia Bé. Disse-me ela, perante a minha deslumbrada admiração, que fazia mal em não comer aquelas filhoses, porque não eram iguais às outras. Aquelas «tinham sido feitas no Céu pelo Menino Jesus». Agarrei no cartucho como o presente mais precioso que alguma vez tivesse recebido. E saboreei como coisa divina as filhoses […] que as fazia totalmente diferentes das que via amassar na cozinha da avó Maria Estrela. E nunca mais, até hoje, me parece ter comido outras com o mesmo sabor do «logro» da minha infância. Imaginava o Menino Jesus lá no Céu, de manguinhas arregaçadas, às voltas no alguidar com a tarefa de aprontar a massa das filhoses. E fiz com elas o que costumo fazer com os livros: fecho o livro e comparo. Quando já li mais páginas do que as que me faltam ler, passo a reduzir o tempo de leitura. Para render. Foi exactamente o que fiz com as filhoses: fui olhando para dentro do cartucho e comparando. Quando já faltavam poucas, dava só uma trincadinha. E assim as fui comendo, até restar apenas o cartucho. Nos Natais seguintes, as «filhoses do Menino Jesus» passaram a ser o presente mais ansiado por mim na manhã do Dia de Natal. Por poucos anos, porque a infância passa depressa. Foi um sonho lindo com cheirinho a canela. Mas como os sonhos se vão perdendo de nós sem nos pedirem licença, também esse se foi afastando de mim ao longo do tempo, até chegar hoje, intacto, a esta página que escrevo.»
Soledade Martinho Costa
Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»
Edições Vela Branca
Que foi que aconteceu
Jesus?
Eu peço que me digas.
Se o meu olhar agora
É mais profundo
Se a minha esperança
É quase uma saudade
E se instalou o medo
Pelo Mundo.
Que foi que aconteceu
Jesus
Nesta Noite de Incenso
E liturgias?
Onde estão os pastores
E os seus afagos
Porque vestem de luto
Os Três Reis Magos
Que te oferecem no berço
As mãos vazias?
Que foi que aconteceu
Jesus?
Eu peço que me digas.
A razão desta angústia
Deste peso
Que em mim se fez pertence
E fez cativo.
Desta mágoa
Que me chega ao coração
Como se fosse Heródes o motivo.
Desta mágoa
Que me chega ao coração
Em línguas que não falo
Nem conheço.
Em línguas
Onde apenas reconheço
Em cada direito violado
Em cada morte
Em cada grito
O choro das crianças
Universal e aflito.
Soledade Martinho Costa
Do livro a publicar «Um Piano ao Fim da Tarde»
Tela: «Madona e o Menino» (pormenor), Sandro Botticelli
«Uma preocupação constante para mim, mal se aproximava o Natal, era como entravam o Menino Jesus e o Pai Natal pela chaminé. O receio de o Menino se magoar ou de o Pai Natal escorregar e cair no fogão da cozinha – pior ainda se o peru estivesse ao lume. Nos Natais da minha infância, o peru ficava sempre a cozer até altas horas (principalmente se fosse um peru já velho), enquanto decorria a Consoada. De manhã estava ainda quente, e depois era só continuar a cozinhá-lo para ser servido no almoço do Dia de Natal. (…) A sala grande da avó Maria Estrela apinhada de família, a grande mesa cheia de lugares para tanta gente, as nossas correrias pela sala e pela casa inteira (minhas e dos meus primos), o cheirinho bom, vindo da cozinha, as mãos da minha mãe e das minhas tias enfiadas nos grandes alguidares, mangas arregaçadas, a mexer a farinha misturada com a abóbora, o fermento e os ovos. Alguidares tapados depois com um pano, para que a massa levedasse até chegar a altura de as frigideiras a receberem, colherada a colherada, num ritmo certo, para dançarem de roda no óleo fervente. Deitadas a seguir nas travessas, o açúcar por cima, a canela, o cheirinho no ar, a anunciar uma noite e um dia especiais no calendário dos nossos poucos anos. A expectativa da chegada dos presentes pela manhã na velha chaminé, trazidos pelo Pai Natal ajudado pelo Menino Jesus. A noite, sempre agitada, exactamente por isso. Tanta coisa boa e tão longe a dormir o sono da distância quando a casa era habitada pelas vozes das palavras todas. Pelos risos (ainda) felizes, na comunhão de uma grande família, amiga, unida, fraterna.»
Soledade Martinho Costa
Do livro «Uma Estátua no Meu Coração»
Edições Vela Branca
Onde a magia dos Natais de outrora
O presépio dos olhos da infância
São José, a Virgem, o Menino
Figuras modeladas
Quase gente
A mostrar-se ao espanto
Dos pastores que vinham
Em fila pelo musgo dos caminhos
Para ofertar cordeiros e presentes.
Onde a azáfama do rumor das mãos
Nos alguidares de barro onde a farinha
A abóbora, os ovos, o fermento
Tomavam forma e gosto tão distantes.
Aonde o sono arredio que não vinha
Nessa Noite Sagrada em que os pinheiros
Choram saudades de bosques e de estrelas
Sob a caruma de luzes e de enfeites.
Onde o mistério que seguia os passos
Dos adultos no ranger das tábuas
Em nossos passos furtivos de criança
Na ânsia de encontrar em qualquer canto
De barbas e de saco o Pai Natal.
Quantos Natais assim em que a Família
Se reunia inteira à grande mesa
Da sala de jantar tão velha e gasta
Mas que nessa noite por magia
Transformava em cristal os vidros baços.
Quantos presépios retidos na memória
Quantos aromas ainda a Consoada
Quantos sons a deixar nos meus ouvidos
Os risos, os beijos, os abraços.
Quantas imagens cingidas na penumbra
Desta lembrança que se fez saudade
Dos rostos, dos gestos, das palavras
Na lonjura das vozes e da Casa.
Noite Divina em que torno a ser criança
Ante o meu olhar adulto e me desperto
Na emoção que nos traz os anos:
O meu Natal é hoje mais concreto
Mas muito menos belo e mais deserto.
Soledade Martinho Costa
Do livro a publicar «Um Piano ao Fim da Tarde»
Tela: Domenico Ghirlandaio
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