Sábado, 24 de Abril de 2010
GAIVOTAS (1971)
No meu país
Igual ao teu país
Onde esvoaçam gaivotas junto ao rio
Asas feitas de mar
Voando ao vento
Sobre o beijo que o Sol pousa nas ondas
Morrem em cada verso mil poetas
Por mil razões caladas do seu povo.
País de Sol e sal
País defunto
Onde se alaga em prantos a muralha
E em pleno dia a noite é mais profunda.
País irmão do teu
País igual
Aonde chegam turistas com roteiros
À procura de sonhos nos mosteiros
Dos olhos pacientes
Que não partem.
País de pranto e fel
País de medo
Silenciado à força de degredo
Onde a palavra se cala e compromete.
País irmão do teu
País igual
Onde as gaivotas do rio
Que esvoaçam
Asas nimbadas de teimas e de lutas
Sobre os cascos dos barcos que apodrecem
À noite
No convés
Quando adormecem
Vão sonhando o sal de outras marés
E o voo de novos horizontes.
PALAVRAS DE FATO NOVO (1974)
Da sombra da mentira moribunda
Nasceram-nos flores
Aves e frutos
Falamos
Livres
Dos homens e das coisas.
E as palavras que escrevo
E que se entregam
A tecerem diferente este poema
Parecem-me meninas buliçosas
Vaidosas por estrearem fato novo.
Soledade Martinho Costa
Do livro «A Palavra Nua»
Domingo, 18 de Abril de 2010
- Oiça, dona Coruja,
diz o pirilampo,
diga-me uma coisa
se não for segredo:
por que é que a senhora
nunca sai de dia?
É porque tem medo
ou é por mania?
Responde-lhe a coruja
na sua voz mansa:
- Então, por quem é,
senhor Pirilampo,
à sua pergunta
não há quem resista:
não saio de dia
por causa da vista!
E no mesmo tom
logo lhe afiança:
Mas olhe que embora
saindo à noitinha,
à hora em que todos
dormem descansados,
nem assim me livro
dos mal-educados!
Soledade Martinho Costa
Do livro «A Festa na Capoeira»
Ed. Vela Branca
Quinta-feira, 8 de Abril de 2010
Quando cheguei ao Bom Velho de Cima, disposta a recuperar a casa em ruínas que adquiri, fui instalar-me numa outra, pertencente a uma amiga, pagando, por insistência minha, uma renda simbólica. A espaços, por lá permaneci longos meses. Além da sala de entrada, a casa tinha dois quartos a darem para um terraço com uma vista magnífica. Dali, podia o nosso olhar percorrer, como numa tela, os vales, os pinhais e o denso arvoredo que circundam a aldeia.
Enquanto punha a casa a meu jeito, ia fazendo visitas diárias aos pedreiros e carpinteiros que avançavam na minha obra. Espécie de fiscal atento, para meu bem e aprendizagem de quem para mim trabalhava – fiscalização mais no sentido estético do que técnico, diga-se a verdade. Essa ficava para quem, melhor do que eu, sabia tratar do assunto. Ninguém se melindrava e as minhas correcções e sugestões eram aceites e cumpridas, servindo de diversão. «Lá vem o fiscal da obra!», ouvi várias vezes e achava graça.
Pouco depois de instalada na casa da minha amiga, comecei a ver do terraço, aos longe, dois gatos amarelos sentados ou deitados sobre os muros de pedras sobrepostas, que separam terrenos e courelas. Não se mexiam, parecendo duas estátuas de pêlo amarelo, mas de olhar fixo na direcção da casa. Via-os diariamente e comecei a chamá-los, sem que os bichanos se mostrassem interessados. Na posição em que estavam, assim ficavam.
Perguntei na aldeia a quem pertenciam os dois gatos: «São do tio Leopoldino, está velhote e foi morar com o filho. Deixou a casa e os gatos. Mas não são dois, são três. Um deles, não sai do quinteiro. Os outros, andam por aí…» – Disseram-me.
Um dia em que o tio Leopoldino veio de manhã, muito cedo, como era seu costume, fazer a visita semanal à casa que deixara, aproveitando para dar uma espreitadela à adega e à vinha, meti conversa: «Como é que os seus gatos se alimentam, senhor Leopoldino?» – Pergunta ingénua, a minha. «Ora, minha senhora, de ratos e de pássaros! São bons caçadores. Aquele, ali – e apontou o terceiro gato, para mim até então desconhecido, embora uma réplica dos outros – ia sempre comigo como se fosse um cão. Às vezes, andávamos quilómetros. Os outros, não.». Foi a resposta do tio Leopoldino.
O tempo passava e comecei a reparar que os dois gatos encurtavam cada vez mais a distância entre os muros e a casa. Um dia dei com eles no terraço que ficava à entrada da porta. Pensei: «Saltaram o portão e instalaram-se!» À minha aproximação, assustadiços, voltaram a saltar o portão e sumiram-se por entre o tojo. Nesse dia não voltei a vê-los. Insisti, chamei, mas sem resultado. No dia seguinte, coloquei um prato com leite no terraço e aguardei. Quando espreitei, lá estavam os dois. Do leite, nem vestígios.
E foi assim que os dois bichanos começaram a fazer parte da casa e do meu quotidiano, sempre que me encontrava no Bom Velho de Cima. Um deles, uma gata, era um bicho grande, bonito, robusto. O outro, tão magro e enfezado que se lhe notavam os ossos sob o pêlo. Comiam e dormiam no terraço e dali não arredavam pata. Sempre que me ausentava da aldeia, notava-lhes a tristeza no olhar, ao dizer-lhes adeus, já dentro do carro. Quando regressava, era uma festa. Na minha ausência, soube depois, os animais não deixavam o terraço – naturalmente, à espera de me verem chegar. Comigo, vinham os mimos e novas ementas, que de ratos e pássaros deviam andar fartos.
Numa outra vez, voltei a encontrar o tio Leopoldino: «Então, os meus gatos agora são da senhora! Já sei que se mudaram para casa da Isabelinha (a minha amiga). Ora, não, bom trato, barriga cheia…Bem fazem eles!» Nessa altura fiquei a saber o nome dos tarecos: Badaneca, a gata-mãe, Badanico, o gato-filho – que o tio Leopoldino também me esclareceu qual o parentesco entre os dois.
Analisando o comportamento dos bichanos, até batia certo. A Badaneca, mais «sisuda», sonolenta, comilona. O Badanico, por vezes a brincar com ela e a levar uma sapatada, mas tão magrinho e tão «piqueiro» (como se diz na aldeia), que na comida mal tocava. Badaneca, essa, comia a parte dela e acabava por comer a que o filho deixava.
Um dia, para meu desgosto, o Badanico, sem que nada o fizesse prever, apareceu morto no terraço. Nos últimos dias tinha reparado que se agravara a sua magreza, que mal tocava na comida. Mas não imaginei um desfecho assim. Sempre ouvi dizer que «os gatos têm sete foles». Julguei que o ditado fosse verdadeiro.
Badaneca, continuou impávida, a fazer as suas sestas no terraço, aninhada no banco corrido, de madeira, seu poiso favorito, e a comer por dois, não parecendo dar pela falta do Badanico.
Ainda assim, semanas depois, notei que a Badaneca não estava bem. Sintomas? Falta de apetite, coisa que nela não augurava nada de bom. Ao lembrar-me do Badanico, chamei o veterinário. Um jovem médico que diagnosticou uma pneumonia. Provavelmente, disse, o mesmo que vitimara o Badanico – agravado pelo facto da sua debilidade crónica. Tratamento? Antibióticos em comprimidos, dissolvidos no leite (por vezes, desfeitos e introduzidos à força na boca da Badaneca), e em injecções. Logo nesse dia levou a primeira. O veterinário ficou de voltar até terminar o tratamento.
Quando souberam do sucedido, foi um espanto na aldeia. Um médico para um bichano vadio?! Pagar uma consulta, remédios e a vinda do clínico para aplicar as injecções?! Sacrilégio! O veterinário só era chamado quando adoecia uma vaca, um porco, uma ovelha ou uma cabra. Isso, sim! Principalmente, quando os animais estavam para parir e o parto se apresentava complicado.
Casos que fui conhecendo bem, por ter presenciado alguns, coisa que me afligia bastante, de nada me servindo apelar para que lhes fosse prestada assistência urgente. Acontecia, por vezes, os animais estarem para dar à luz, sofrendo dias a fio, sendo o veterinário chamado já em último recurso, com o animal em agonia. Se calhava, salvavam-se os dois, se não calhava, morriam os dois ou salvava-se apenas o filho, raramente a mãe. A vida nas aldeias é assim e cada qual sabe da sua. São princípios ancestrais. O trabalho rural é duro, e as pessoas, talvez por isso, não podem dar-se ao luxo de se deixarem emocionar – ou ser piegas.
Passados dias, a Badaneca estava «como nova». Voltou-lhe o apetite, por conseguinte, a saúde. Assim tivesse acontecido com o Badanico. Mas aprendi a lição.
Entretanto, mudei para a casa nova. A Badaneca não se atrevia a aparecer por causa dos cães, de vigia à aldeia, sempre a rondarem a minha porta e o portão do jardim. Ia regularmente mudar-lhe a água e levar-lhe comida ao quinteiro do tio Leopoldino, para onde a Badaneca voltou. Como a adivinhar que de nada lhe servia agora esperar por mim no terraço da outra casa – onde tinha sido uma gata feliz, assim como o seu filho Badanico. Isto, diria a Badaneca se porventura falasse. Tenho a certeza.
Soledade Martinho Costa
Sábado, 3 de Abril de 2010
Simbolicamente, o «folar» continua a representar o presente dos padrinhos aos afilhados, impondo-se como preceito irem estes recebê-lo a casa daqueles no domingo de Páscoa («ir pedir o bolo»). Praxe precedida pela oferta de um ramo de flores, ou amêndoas, dos afilhados aos padrinhos no domingo de Ramos.
Folar
Com o decorrer do tempo, a palavra «folar» deixou de pertencer ao seu primitivo significado, isto é, ao bolo cerimonial da quadra pascal, para passar a designar o presente de Páscoa dos padrinhos, expresso por qualquer objecto, roupas, amêndoas ou dinheiro.
Substituído, embora, por outros presentes, a obrigação da oferta do «folar» cessa depois da maioridade ou do casamento dos afilhados. Neste caso, o ritual obriga (ou obrigava) a que os afilhados no dia seguinte ao do casamento, levem aos padrinhos a «fatia» (uma fatia de bolo de noz, de chocolate, pão-de-ló ou outro), enquanto os padrinhos oferecem aos afilhados um último «folar» na Páscoa a seguir à boda. Este procedimento continua a verificar-se em muitas localidades do nosso país.
Pia baptismal do Mosteiro de Leça do Balio, Matosinhos.
Menos relevante do que antigamente, o parentesco cerimonial entre padrinhos e afilhados, assume, ainda hoje, aspectos de protecção familiar, determinando que famílias com menores posses assegurem bons padrinhos para os seus filhos, menosprezando, até, os laços do parentesco e da amizade.
Outrora, em Nisa (Alto Alentejo), chamava-se à criança «mourinho» antes do baptismo. O nome, de acordo com o preceito, era escolhido pelos padrinhos. Presentemente, e de um modo geral, são os próprios pais a fazer a escolha. O uso obrigava também que os primeiros filhos de um casal tivessem como padrinhos os avós, os tios ou parentes mais próximos. Eram igualmente os padrinhos do baptismo os escolhidos para padrinhos do casamento.
Vela de baptismo.
Os dias preferidos para os baptizados recaíam, por norma, um pouco como hoje, no dia de Natal, no dia de Ano Novo e no domingo de Páscoa. No dia do baptismo, era hábito os padrinhos virem à janela ou à porta para distribuir pelas crianças que ali se juntavam, maçãs, castanhas, nozes e bolos.
Actualmente, em Nisa, as crianças continuam a ir «pedir o bolo» a casa dos padrinhos no domingo de Páscoa. Levam uma bolsa própria para este dia, na qual recolhem depois o pão e o bolo. O primeiro, um pão normal, mas de formato grande, feito propositadamente para esta data, o segundo, o chamado «bolo dormido», com uma cruz funda ao centro, marcada com a mão no acto da cozedura, a substituir o antigo «bolo de sementinhas» (anis ou erva-doce).
A bolsa, passada em muitas famílias de geração em geração, é feita com pedacinhos de damasco (sobras de colchas), leva um folho de organdi em volta e um cordão de seda para apertar. Nas casas mais pobres, em vez de seda, eram utilizados quadradinhos de pano. Quem a não tem, chega a pedi-la emprestada, para que os filhos possam cumprir a tradição
Trouxas de ovos
Em Beja (Baixo Alentejo) era uso os padrinhos, na festa do baptismo, oferecerem um prato com «trouxas-de-ovos» e outro com doce de gila e fios de ovos, constituindo a oferta «um doce de rigor nestas ocasiões».
«Bolo Ferradura»
Nos arredores de Idanha-a-Nova (Beira Baixa), o «folar dos padrinhos» continua a ser simbolizado por um bolo em forma de ferradura, untado por cima com azeite para «ficar bonito e brilhante».
Na serra de Arga (Caminha, Minho), antigamente, no dia do baptizado, deixava-se o lume aceso toda a noite e pregava-se («serrava-se», no dizer local) um prego no chão da cozinha «para ali nunca se entornar vinho», sinal de mau augúrio. Guiados por velhas superstições, competia à mãe acender uma candeia e fazer no chão uma cruz com milho painço (miúdo) «para que as «meigas» (bruxas) não atormentassem o filho até ao dia do baptismo». Enquanto não chegasse esse dia, as pessoas da casa não podiam dar esmola a ninguém.
Na mesma localidade (onde as crianças continuam a ser baptizadas apenas ao domingo), na altura do banho molhavam os dedos na água, colocavam-nos junto da boca da criança e diziam o salmo: «um bocadinho de água para o meu menino beber, outro bocadinho para o meu menino crescer, outro bocadinho para o meu menino falar, para chamar pelo pai, pela mãe, pelo padrinho, pela madrinha e por toda a gentinha».
«Madona Solly», Rafael, Gemaldegalerie, Berlim.
Esta prática andará associada à tradição de que a Sagrada Família, ao regressar a Israel e ao chegar a Belém, terá tido conhecimento da peste que grassava por lá e que atacava os olhos das crianças. Os pais levavam então os filhos a Maria. A Virgem dava-lhes a beber um pouco da água onde o Menino tinha tomado banho e as crianças ficavam curadas. Daí, talvez o antigo uso no Algarve de darem a beber às crianças a água que servira ao banho «para que o mal não entrasse no seu corpo».
Na freguesia de Mar (Esposende, Minho) era costume as mães só entrarem na igreja depois do baptizado do filho, a lembrar os antigos ritos de purificação. Ainda ali, ao saírem da igreja, enquanto os sinos repicavam festivamente, os padrinhos ofereciam guloseimas à garotada que os esperava no adro, fazendo o mesmo depois, ao longo do percurso até à casa dos pais do recém-baptizado.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas». Vol. III
Ed. Círculo de Leitores