Quarta-feira, 25 de Novembro de 2009

COISAS DA VELHA DO ARCO - ALGUÉM VIU A FILOMENA?

 
O domingo tinha acordado chuvoso. Dia frio o suficiente. Um vento irritante, numa teima de quem pode e manda, fazia dançar a rama das laranjeiras de laranja amarga que se lembraram de plantar ao longo dos passeios. Fevereiro não tem por costume ser um mês ameno.
 
A campainha tocou. «Quem será?», pensei. Espreitei pelo ralo da porta. Vi apenas o cimo de uma cabeça, sinal de que o visitante era de estatura pequena. Não me enganei. Na minha frente estava uma criança. Uma menina. Olhos grandes de um azul pardo a fitarem-me embaraçados e um pouco temerosos: «A senhora precisa de mulher-a-dias?» Ouvi-lhe a voz quase de repelão, rápida e trémula, sem me dar tempo de lhe perguntar ao que vinha.
 
«Mulher?! Mulher aquela criança que não aparentava mais do que uns onze anos de idade?!» Não consegui responder. Entre as ombreiras da porta, agora era eu, de olhar embaraçado, que lhe mirava o rosto magro, os cabelos loiros, húmidos da chuva, e as roupas gastas que lhe vestiam o roer do frio no corpo franzino.
Disse-me chamar-se Filomena. Tinha treze anos (quem diria?!). Na escola andou até à terceira classe. Não continuou. Não pôde. O pai morreu no trabalho. Caiu de um andaime, numa obra. Além dela, a mãe ficou com mais quatro filhos; tinha quatro irmãos, todos rapazes. «Somos muitos, temos que fazer pela vida…», acrescentou, num encolher de ombros, entre resignado e triste.
 
Enquanto conversávamos a dona Mariana subia a escada. Parou a meio do lance, antes do patamar. Olhou a menina. E logo a pergunta, entre surpresa e curiosa: «Tu não és a Filomena? Não foste minha aluna?» E a resposta: «Sou sim, minha senhora. Fui sim minha senhora.» Confirmação dada a custo, voz sumida, ar envergonhado de quem, apanhado em falta, deseja enfiar-se num buraco, olhos presos na ponta das botas largas e velhas, mãos nervosas a rodar nos dedos o cabo do chapéu-de-chuva de cor vermelho vivo – como se a pobreza fosse um crime.
 
A professora subiu o resto dos degraus. Nova pergunta, desnecessária: «E o que andas tu a fazer por aqui?» Nova resposta: «À procura de trabalho.» Dona Mariana abanou a cabeça. Entrou em casa, mas não fechou a porta. Reapareceu com alguns pedaços de pão e uma laranja. «Toma lá.» Disse, e estendeu a oferta à Filomena.
 
Fiquei de novo a sós com ela. A minha filha era um pouco mais velha. Havia sempre roupas que deixava de vestir. Arranjei dois sacos. Meti neles o que pude. «Não são muito pesados?», que não, não eram, podia bem com eles. «Afinal, onde moras, Filomena?» Precisava da informação. Explicou-me. Lá para o «choupal», passando a Formigueira, depois da ponte. Prometi procurá-la, enquanto ela descia as escadas. «Os meus irmãos vão ficar contentes.» foram as suas últimas palavras.
 
Passou algum tempo. Sem custo consegui localizar o local onde morava. Um amontoado de casas, onde a privacidade de cada um era apenas a de um passo entre uma e outra porta. As cores das tintas demasiado garridas, desajustadas. Um mural de desencanto a vestir o labirinto das paredes mal rebocadas.
 
Uma vizinha assomou à estreiteza da janela. Perguntei pela Filomena. «É ali, onde estão aqueles gaiatos à porta.» Informou. Dirigi-me às crianças. Dois rapazinhos de olhos assustadiços, seis, oito anos: «É aqui que mora a Filomena?» Perguntei. Olharam um para o outro. O mais velhito, ar medroso, acabou por dizer: «É.» Insisti: «Ela está?» Que não, não estava. «E a tua mãe?» Também não estava.
 
A vizinha aproximou-se, numa curiosidade aceitável e natural: «Precisa de alguma coisa?» Sim, precisava de saber da Filomena. «Ah, essa já cá não está!», foi a informação. Completa logo a seguir: «Uma senhora veio buscá-la e levou-a para Lisboa.» Entrei no carro. Voltei para casa.
 
Ainda hoje penso naquele rosto magro, naqueles cabelos loiros, húmidos de chuva, nos olhos da Filomena, grandes, de um azul pardo, onde apenas cabia o segredo dos seus sonhos mal sonhados. «Uma senhora tinha-a levado para Lisboa». Menos uma boca a comer naquela casa pobre. Para quê indagar junto da mãe?
 
Ao fim destes anos, não resisto a perguntar: alguém viu a Filomena?
 
Soledade Martinho Costa                                                                    
                                                
                                                   
publicado por sarrabal às 15:56
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BORDA-D'ÁGUA - MATANÇA DO PORCO (III)

                      

É com o sangue do porco, a escorrer devagar para um tacho, que se fazem as famosas «papas de moado», doce tradicional do Baixo Mondego, desde Penacova a Buarcos (Figueira da Foz, Beira Litoral). Além do sangue do animal, as papas levam água, um pouco de farinha, açúcar, banha de porco, sal, cominhos, cravinho, casca de limão, pinhões, passas de uva, nozes e canela – mexendo sempre para o mesmo lado, como manda o preceito.
 
É também com o sangue cozido do porco que se prepara, principalmente no Norte, o apreciado «sarrabulho», bem condimentado, misturado, por vezes, com papas de milho. Em terras do Minho recheia-se com «sarrabulho» e mel o bucho do porco, assado depois no forno, enquanto nas Beiras o bucho é recheado com a mistura do enchido das morcelas, a que se junta arroz. Em Sarzedas, come-se o sangue cozido, cortado às fatias, temperado com salsa, alho, vinagre e azeite.
 
Na ilha da Madeira, pelo Natal, após a primeira «Missa do Parto», quando se procede à matança do cevão, madrugada dentro, o sangue é utilizado para o tradicional «sarapatel», confeccionado com o sangue do porco temperado com sal, ao qual se juntam passas e nozes. As «buchaninhas» (bucho do porco recheado com arroz), costumam ser oferecidas em pratinhos às pessoas mais gradas e aos amigos. Nas ilhas dos Açores, quando se diz «já fiz o meu Natal», significa «já matei o meu porco».
 
Quanto ao apreciado presunto (cortado da perna), após bem esfregado com sal, alhos e vinho branco, fica em repouso até ao dia seguinte. Nessa altura é completamente introduzido em sal, numa salgadeira bem tapada, onde permanece durante quarenta dias – chegando, na Beira Litoral, a ficar no sal durante dois meses ou mais.
 
                                     
 
Passado esse tempo, lava-se com água ou vinho branco, para retirar o sal, e vai ao fumeiro não mais de uma semana, por vezes metido numa saca de papel grosso para não ficar muito negro e a cheirar a fumo. Por fim, é barrado com uma mistura feita com massa de pimentão, colorau e azeite. O presunto só deve ser comido um ano depois, havendo mesmo quem prolongue esse espaço de tempo – é evidente que nos estamos a referir ao bom presunto. Mas há também quem o coma bem mais cedo.
 
As várias gorduras retiradas ao porco, destinam-se, depois de derretidas, à feitura da banha, resultando os resíduos nos torresmos. Outra espécie de torresmos, muito apreciada, é feita com a gordura da «barrigueira», à qual se junta pedacinhos de bofe, de fígado e de coração.
 
A banha mais fina é conseguida com a gordura que envolve o bucho do porco, de aspecto arrendado, a dar pelo nome de «véu», «lencinho», «ressó», «riçol» ou «redenho», conforme as localidades – dizendo o povo ter sido a partir dele «que a mulher teceu a primeira renda».
 
Soledade Martinho Costa
                                         
 
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores, Vol. VIII
publicado por sarrabal às 12:52
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Domingo, 22 de Novembro de 2009

BORDA-D'ÁGUA - MATANÇA DO PORCO (II)

 

 
Depois dos tradicionais repastos conjuntos para celebrar a matança do porco, dá-se início à tarefa, entregue às mulheres, de lavar as tripas e migar para os alguidares as carnes destinadas aos enchidos: paios, chouriços, linguiças, farinheiras e morcelas grossas e finas, picado esse que, em Aljezur, continua a ser benzido e marcado («sulcado») com uma cruz e depois bem tapado até ao dia seguinte.
 
Mais recuadamente, por essas aldeias, cada família criava o seu porco para a matança anual e, por vezes, dois suínos. A manter hábitos antigos, de norte a sul do País, os animais são criados junto da casa dos donos, em pocilgas ou «furdões», e alimentados «à pia»: restos de comida, «farinha da saca» (a chamada «ração») a substituir os farelos cozidos (parte grosseira da farinha de milho depois de peneirada, que dá mais gordura ao porco, hoje pouco utilizada), frutos sorvados ou tocados, hortaliças, etc., pois de tudo o suíno se alimenta.
 
Outra praxe mantida na Beira Baixa, consiste em oferecer aos familiares, amigos e vizinhos, que não estiveram presentes na matança, uma «fritada», constituída por um pedaço de fígado, outro do lombo, uma morcela e outros pedaços de partes do porco, tudo em cru, levado num prato, presente retribuído depois por quem o recebe, quando, por sua vez, mata o seu suíno.
 
Em Aljezur e noutras localidades do Algarve oferece-se a «moleja», outrora sangue e pedacinhos das miudezas do porco, cozidos em água, a que se juntava arroz, hoje constituída pelos mesmos pedacinhos das miudezas e um naco de carne (crus), uma morcela, uma farinheira e um pouco do caldo onde se cozeram as morcelas, destinado às «papas mouras», para «serem feitas na casa de cada um».
 
Outro uso da Beira Baixa, que já não se verifica, consistia na chamada «adua», podendo os animais pertencer a um ou a vários donos. A pastagem principiava no dia 20 de Janeiro (dia de São Sebastião), quando os sobreirais eram «largados» pelos respectivos proprietários, depois de colhida a «lande» (bolota) da azinheira e dos sobreiros, terminando o pastoreio dois meses depois.
 
O pagamento ao guardador fazia-se «por cabeça» (consoante o número de porcos). A prática comunitária deste pastoreio, ou da «adua», exigia que durante esse período de tempo os animais fossem conduzidos apenas pelo mesmo guardador.
 
Por essa época, localidades havia rodeadas de frondosos sobreirais, caso de Alcains. Por isso se cantava: «Sobreiro que dás bolota/Porque não dás coisa boa?/Cada um dá o que tem/Conforme a sua pessoa.»
 
Também em terras da Beira Baixa, quando um porco está doente, é costume ainda hoje, o dono do animal prometer ao santo da sua devoção (quase sempre a Santo António) um chouriço do comprimento do porco na altura da matança. Daí, em Sarzedas, os «chouriços das promessas» serem colocados num andor e vendidos depois num leilão que tem lugar no adro da igreja, com o dinheiro a reverter para melhoramentos no templo – antigamente com os chouriços metidos em cestos e entregues a um rapaz encarregado de os vender pelas ruas no dia da festa do santo.
 
Prática semelhante verificava-se em Mós (Moncorvo, Trás-os-Montes e Alto Douro), onde, dias antes do Natal, tinha lugar uma romaria à Capela do Menino Deus («hoje restaurada, porque nem sequer um altar possuía») para levar um porco, oferecido em promessa pela população.
 
Soledade Martinho Costa
  
                               
                                                        
 Do livro «festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores,Vol.VIII
publicado por sarrabal às 21:14
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Quinta-feira, 19 de Novembro de 2009

BORDA-D'ÁGUA - MATANÇA DO PORCO (I)

                  

                                 Valpaços, Vila Real, Trás-os-Montes  
             
Em diversas zonas do País, Novembro não significa apenas os «magustos» e a prova do vinho novo, com o abrir dos tonéis e das pipas. Simboliza também um acontecimento da maior relevância no conjunto das tarefas cíclicas do nosso calendário rural: a matança do porco – pretexto para a reunião da família, dos amigos e vizinhos e motivo para os repastos conjuntos, onde a fartura da carne não impede o vinho de ser rei.
 
A matança do porco pode ir até inícios de Fevereiro – na ilha da Madeira começa a partir do dia 8 de Dezembro, sempre de madrugada – beneficiando do tempo mais frio e a constituir, na grande parte das aldeias portuguesas, uma das mais tradicionais celebrações familiares rurais.
 
Ocasião festiva e acontecimento que se reveste de particular importância do ponto de vista económico, uma vez que as carnes, os enchidos, o toucinho e a banha representam alimentos fundamentais da família ao longo do ano, a matança do porco encontra-se associada a algumas praxes e rituais mantidos até hoje no seio da comunidade rural.
 
Ficamos a saber que as mulheres, durante o período menstrual, «não devem aproximar-se da carne», nem mesmo «do lugar onde decorre a matança», segundo o povo «porque podem, sem querer, estragar a carne». Outro costume consiste em colocar sobre a carne, depois de temperada com sal e pimentão, algumas rodelas de laranja «sempre em número ímpar».
 
Em certas localidades da Beira Baixa, antes do suíno ser agarrado, continua a observar-se a praxe dos donos do porco oferecerem a quem toma parte na matança (ou «matação») figos secos, vinho e aguardente. No Algarve mantém-se a oferta de filhoses, café e aguardente de medronho, oferta que continua a estender-se às pessoas conhecidas que passam na rua.
 
Depois de morto e chamuscado, o porco é pendurado pelo «chambaril» (antigamente um pau curvo, hoje um ferro, que se enfia nos «jarretes», parte posterior da articulação do joelho do animal), num local apropriado, de cabeça para baixo, tarefa nem sempre fácil quando se trata de um cevado de grande porte, ocasião que obriga, na Beira Baixa, a que os presentes digam bem alto: «Porco acima, vinho abaixo!», a dar motivo para se beberem mais uns copos…
 
Nessa posição é feita a «abertura», ou seja, é aberto pela barriga, sendo-lhe retirada em primeiro lugar a tira de gordura («barrigueira»), com febra no interior (há quem lhe chame toucinho), que vai da parte inferior do pescoço até entre as pernas traseiras, e de seguida as vísceras (miudezas) e as tripas. O toucinho ou entremeada encontra-se agarrado, de lado, à costela baixa.
 
O sangue do animal é recolhido num alguidar, onde se deitou sal e vinagre (ou vinho), que se vai mexendo com uma colher de pau para não coalhar, só parando esta operação quando o sangue se encontra completamente frio.
 
O porco fica no «chambaril» até ao dia seguinte, para arrefecer, altura em que a carne é «desmanchada», separando-se as «peças» destinadas ao fumeiro (enchidos) e as que vão ser guardadas nas arcas frigoríficas – outrora nas salgadeiras, embora o toucinho continue a ser conservado no sal.
 
Os paios, as morcelas, as farinheiras e os chouriços só devem permanecer no fumeiro no máximo oito dias «para não azedarem». Anteriormente os enchidos eram conservados submersos em azeite, dentro de potes de barro, chamados, na aldeia do Bom Velho de Cima (Condeixa, Beira Litoral), «açucareiros».
 
Segue-se o «almoço da matança», mantendo-se o costume, na Beira Baixa, conquanto mais raramente, de servir-se a tradicional sopa de pão e ovos, introduzidos no caldo onde se cozeram os nabos, a hortaliça e o feijão. Da ementa fazem igualmente parte a carne de carneiro assada no forno com batatas, o arroz com miudezas de porco, o guisado de galinha e outros acepipes, comidos ao jantar desse dia e no dia seguinte – ou não seja o dia da matança aquele em que se fazem convites «como se fosse uma boda», visto marcar-se a matança quase sempre para um fim-de-semana.
 
Em Cafede (mesma região) era servido antigamente ao almoço um caldo de castanhas piladas com arroz e «laburdo». Desaparecido o caldo, mantém-se o «laburdo»: um guisado feito com as miudezas do porco (fressura, fígado, coração, bofe), toucinho da barriga (a «barrigueira») e sangue, ao qual se acrescenta, no final, ainda durante a fervura, algumas rodelas de laranja.
 
No Bom Velho de Cima faz-se uma sopa, já com a «queixada» do porco (carne magra das bochechas do suino), batatas, cenouras e hortaliça, sendo a carne da «queixada» servida à parte, acompanhada com arroz cozido no caldo da sopa. Saboreia-se também o «guisado de torresmos», feito com a «barrigueira» e miudezas, umas vezes com batatas já misturadas, ou apresentadas separadamente. Ao jantar fazem honras ao repasto as febras assadas na brasa.
 
Em Vila Alva e noutros locais do Baixo Alentejo serve-se a «rechina», uma espécie de guisado confeccionado com o sangue e as miudezas do porco, a que se junta sopas de pão.
 
Em Aljezur (Algarve) ao almoço come-se polvo ou bacalhau cozido com batatas, galinha de cabidela ou galinha de molho (apenas refogada com cebola e temperos) e ao jantar pedacinhos de carne de porco frita e sopa de couve branca («coração»), «que leva miudezas, chispe, orelha, toucinho, chouriço e morcela». No segundo dia da matança, como manda a tradição, servem-se as «papas mouras», que se fazem juntando ao caldo onde se cozeram as morcelas a farinha de milho grossa e o sangue do porco.
 
Actualmente, é hábito generalizado petiscar-se assim que termina a matança, antes mesmo do porco arrefecer, retirando-lhe umas febras, a «cachola» e pedaços de entrecosto e de orelha, assados depois na brasa. Em Alcains (Beira Baixa) a «cachola» e o entrecosto são condimentados com alho e vinagre e regados com vinho novo tirado da pipa, quase sempre aberta nesse dia.
 
Soledade Martinho Costa
                                 
                                                        
                                                                               Fumeiro
  
Do livro «festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores, Vol. VIII
  
publicado por sarrabal às 16:41
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Terça-feira, 17 de Novembro de 2009

HISTORINHA - CONVERSA DE POMBOS

                

                                                         Pomba-de-leque

          

                    Pombo-gravatinha                               Pombo-de-papo

 

 - Olha, lá vem a Pomba-Torcaz! Volta de férias no Norte da Europa. Que sorte! Eu, então, só conheço os arredores deste pombal… – Lastima-se a senhora pomba-de-leque.

O senhor pombo-gravatinha dá a sua opinião:
- Cá por mim, não me queixo. Acho lindo o nosso povoado! Além disso, não tenho de me ralar sempre a fazer as malas. Uns regressam, outros vão-se embora. É o Outono, e está tudo dito. Partiram as Andorinhas, as Cotovias e os Rouxinóis. Estão de abalada os Cucos, os Melros e os Noitibó. Mas temos de volta os Patos-Bravos, as Rolas e as Narcejas. Calculo, senhora Pomba-de-Leque, as coisas interessantes que trazem para nos contar…
- Pois sim. Mas eu também gostava de viajar, de conhecer outros lugares. – Responde a pomba, numa confissão.
O pombo-de-papo mete-se na conversa:
- Sabe, senhora Pomba, nós não somos aves migratórias. Somos pombos domésticos. Aí tem a diferença. – Diz ele, a confortá-la. E acrescenta:
- Um destes dias, vou convidá-la a acompanhar-me num passeio à cidade. Verá os jardins onde as flores só brotam da terra graças às mãos dos jardineiros. As pessoas apressadas, que já nem sabem dizer bom-dia. E os prédios altos, mais altos do que as ondas do mar quando se enfurece. Verá também os carros barulhentos que poluem de cinzento a atmosfera. E as ruas estreias, tão estreitas, que o Sol, por mais voltas que dê, não consegue lá entrar. Quando regressarmos, tenho a certeza de que vai achar muito mais bonita a praia, lá em baixo, e os arredores do nosso pombal!
A senhora pomba, olhinhos redondos como missanga, arrulha, num enleio:
- É capaz de ter razão…
E aninham-se os três, a senhora pomba-de-leque, o senhor pombo-gravatinha e o senhor pombo-de-papo, fora do pombal, a  ouvir o mar, ao longe, para além do sítio onde fica a sua casa.  
 
                                   
 
 Soledade Martinho Costa
                                                                                          
                                                                      
Do livro «Histórias que o Outono me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
publicado por sarrabal às 11:21
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Sábado, 14 de Novembro de 2009

COISAS DA VELHA DO ARCO - UMA QUESTÂO DE CORES

 
A minha neta Soli brincava no jardim. Uma outra menina, um pouco mais velhinha, aí para os nove, dez anos, fazia-lhe companhia. De repente a Soli dá uma corrida na minha direcção e informa, entusiasmada:
- Vó, aquela menina, vês? – E aponta a outra criança. – Vai para Angola!
- Ah, sim? – Respondo.
O entusiasmo da Soli devia-se ao facto de ter vivido em Angola alguns dos seus poucos anos de vida. Tudo o que diz respeito a África, sobretudo a Angola, lhe desperta interesse.
A outra criança, interrompida a brincadeira, aproxima-se também. A Soli apresenta:
- É a Filipa, Vó, mora ali. – E aponta, agora, para um dos prédios que circundam o jardim.
- Olá, Filipa! – Digo e acrescento à saudação uma pergunta: - Já sei que estás de partida para Angola, é verdade?
- É. – Confirma a Filipa.
Sem razão aparente, insisto em saber mais, talvez por ter amigos em Angola:
- E para que zona vais, sabes?
A resposta veio, explícita, sem rodeios:
- Sei. Vou para a zona dos ricos!
«Eis a zona de Angola para onde vai a Filipa», penso para mim.
- Como é que sabes? – Intromete-se a Soli, atenta à conversa, pergunta feita num tom entre o curioso e o recriminatório.
- Disse-me o meu pai. Ele é que disse «vamos para a zona dos ricos»! – esclarece a menina.
- Muito bem, Filipa. – Rematei. – Desejo que gostes muito de lá estar, tu e os teus pais. Tens irmãos? – Perguntei, por fim.
- Não. – Foi a resposta.
Pelo aspecto modesto da criança e do prédio onde morava, já antigo, deduzi que a meta da pessoa pobre continua a ser a mesma: chegar a rica.
Para a família da Filipa, suponho que a meta seja Angola. «Lá é que se ganha bem, é que está o dinheiro», diz-se, ultimamente. O objectivo desta família, será, portanto, o de melhorar as condições de vida, porventura difíceis em Alverca do Ribatejo, ou em Portugal, o que vem a ser a mesma coisa.
 
O que me surpreende pela negativa é que se incuta a uma criança a noção, naturalmente sem grandes explicações, de que existem classes sociais distintas: pobres e ricas. É uma verdade, eu sei. Até sei (e passe o lugar-comum) que os pobres do meu país estão cada vez mais pobres e os ricos cada vez mais ricos. Só não aceito que uma criança vá atrás de um sonho que não é seu, mas do pai. Pode ser que o sonho se concretize, ou não. Neste caso, que resposta dará o pai à Filipa? Que têm de mudar para a «zona dos pobres»?
 
A riqueza devia trazer implicações sociais obrigatórias: ajudar os outros, ser solidário, dar a quem precisa o muito de que não se precisa. Uma utopia? Sem dúvida.
 
Não raras vezes penso nos ordenados milionários que muita gente recebe em Portugal. Para não destoar, os jogadores de futebol. Mas não apenas esses. Temos os políticos e aqueles que, em diversas áreas da vida nacional, pública e privada, ocupam lugares de destaque. Uma vergonha e um escândalo num país de tantas carências. Sem falar na corrupção que grassa em Portugal, a fazer concorrência  à epidemia da gripe A -  mas sem esperança de vacinação à vista.  
 
Será que para além das famílias, essas pessoas ajudam alguém? Que pensam um pouco nos desempregados, com dívidas e outras dificuldades? Nos idosos com reformas de fome? Nas crianças com necessidades de toda a ordem? Rodeados do seu bem-estar e gozando da sua milionária qualidade de vida, será que essas pessoas se lembram dos que precisam de ser ajudados? Aceito que achem estas palavras moralistas, simplórias, piegas. Pois é. Às vezes, acontece.
 
«Zona dos ricos» implica de antemão uma divisória. Um muro. Uma linha invisível (ou não) de separação entre os seres humanos. O pai da Filipa sabe. A Filipa ainda não. Mas com o passar do tempo, a Filipa irá aprender algo tão certo, tão real, quanto cruel: em Angola, como em outros lugares do Mundo, não é só a cor da pele que divide as pessoas. Há outras cores a dividi-las. Uma delas, a cor do dinheiro.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                         
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Quarta-feira, 11 de Novembro de 2009

DIA DE SÃO MARTINHO - PREGADORES, CHOCALHADAS e QUEIMA DE SÃO MARTINHO (ANTIGAS TRADIÇÕES)

                   

                «São Martinho e o Mendigo», El Greco, National Gallery of Art, Washington   

 

Por tempos idos, muitas eram as situações de perfeita embriaguês que se verificavam no dia de São Martinho na intenção de louvar o santo. Assim acontecia em Alcains e noutras localidades da Beira Baixa, onde se festejava o São Martinho com os homens a beberem sem conta nem medida.
 
Mal a noite descia, vinham para a rua grupos de amigos do tinto, do branco, da água-pé e da jeropiga, uns cantando, outros tocando gaitas-de-foles e guitarras. Bebendo, cantando e tocando, em grande algazarra, já fora de horas, galgavam então, quando era caso disso, as escadas e varandas das casas, para melhor serem ouvidos, pregando de lá os populares «sermões de São Martinho». Davam-se vivas ao santo, à videira, aos lavradores e aos amigos, acordavam-se os que não se metiam em tais andanças, e, por vezes, havia desacatos.
 
Quando o Sol rompia, o espectáculo não deixava de ser insólito: corpos adormecidos junto das portas, roupas num desalinho, garrafões e garrafas estilhaçados, os instrumentos musicais e o livro do sermão abandonados onde calhava, e o sono profundo dos «compadres», cansados da bebida e da noitada.
 
Este género de manifestação festiva e báquica, era comum e perfeitamente natural, repetindo-se nestes moldes pelo menos até à década de cinquenta, particularmente nas nossas aldeias. Assim acontecia também em Monsanto (mesma região), com os «pregadores de São Martinho», eleitos todos os anos (por vezes os mesmos), a dirigirem-se no seu discurso à «irmandade de São Martinho», sendo eleitos como «mordomos» e «mordomas» os homens e as mulheres que mais frequentemente se embriagavam.
 
Hoje celebra-se o santo mais moderadamente, embora não deixem de verificar-se alguns excessos, sobretudo nas localidades em que o vinho – independentemente do São Martinho – continua a ter (e antes o não tivesse) grandes amigos.
 

Ainda por aldeias da Beira Baixa, onde, à semelhança do que acontece por todo o país, São Martinho representa o advogado dos ébrios, era na noite de dez para onze de Novembro que se dava início à tradicional festa de homenagem aos maiores bebedores da terra. Nessa noite, os rapazes das aldeias, munidos de chocalhos que retiravam do gado, dirigiam-se em grupo a casa dos «festeiros de São Martinho» – eleitos sem que para tal tivessem dado o seu consentimento –, entoando cantigas alusivas à ocasião e ao santo, convidando o «festeiro» por eles escolhido a abrir a porta da sua adega.

 

Se o convite era aceite, abria-se a porta, bebiam-se uns copos de vinho, de água-pé ou jeropiga, davam-se vivas ao «festeiro», faziam-se as despedidas e o grupo seguia, dirigindo-se às casas dos restantes «festeiros» por si eleitos nessa noite. No caso de algum deles recusar abrir a porta da adega, era contemplado com uma estrondosa «chocalhada», acompanhada da ritual «assuada» (piadas e zombarias), nem sempre bem recebida.

 
Terminada a primeira ronda, elegiam-se os «festeiros» para o ano seguinte (sempre escolhidos entre os maiores bebedores da terra), seguindo-se nova ronda pela aldeia para os felicitar, aproveitando-se a oportunidade para convidá-los a deixá-los entrar na adega e a provar do seu vinho.
 
Uma vez que nem todos aceitavam de bom grado a eleição, recusando-se a abrir a porta, repetia-se a ensurdecedora «chocalhada» e a respectiva «assuada», a pôr a nu pecados escondidos. A festança terminava de madrugada, com aqueles que conseguiam, de pé, levar a festa até ao fim.
 
Noutras aldeias da Beira Baixa, também por tempos distantes, o dia de São Martinho costumava ser celebrado com os rapazes a improvisarem um andor onde colocavam um boneco de palha vestido com roupa velha. Ao som de campainhas e de chocalhos, o andor era levado pelas ruas, enquanto os elementos do cortejo e os acompanhantes que se iam juntando, principalmente a garotada, entoavam cantigas alusivas ao santo, sendo o boneco queimado no final da celebração. A «queima do São Martinho» verificava-se em diversas regiões, embora o ritual, ao longo dos anos tenha caído em desuso.
 
Consagrado por tradição à abertura nas adegas do vinho novo e da água-pé, o dia de São Martinho reveste-se, entre nós, país vinícola, de um simbolismo ainda marcadamente pagão. Daí, dizer-se, que as festas populares da abertura do vinho novo no mundo pagão grego-romano vieram a ter a sua réplica cristã nas festividades em louvor de São Martinho.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                
                     
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas»
Ed. Círculo de Leitores, Vol. VIII
publicado por sarrabal às 00:30
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Sábado, 7 de Novembro de 2009

HISTORINHA - A CEGONHA E OS SEUS VIZINHOS

                                

                                                          

           

 
No cimo da torre da capela, um vulto destaca-se no azul do céu.
- Está hoje muito calada, senhora Cegonha! – Nota, em jeito de puxar conversa, o relógio que mora sob o ninho da ave pernalta.
- Faço o contrário do vizinho, que mal abre a boca, não há ninguém que não oiça aquilo que diz!
- O que digo?! Ora essa! Digo as horas! – Abespinha-se o relógio. – E se não falasse tão alto, havia de ser bonito…
- Pois eu, sempre ouvi dizer que falar alto é uma coisa muito feia. – Comenta a cegonha para o irritar.
- Mas não quando se trata de um relógio. E muito menos de um relógio da torre de um campanário! – Contradiz o relógio, a adiantar-se, tiquetaque, com o nervosismo.
O sino, vizinho de ambos, atalha, apaziguador:
- Então, então, meus amigos, temos agora vizinhos quezilentos?
- Eu apenas disse que falar alto não é bonito. – Defende-se a cegonha.
- E eu respondi que, muito embora tenha o costume de falar alto, ainda há por aí quem diga que não me ouve. – Explica o relógio num tiquetaque mais acelerado.
O sino resolve dar a sua opinião:
- Como é do vosso conhecimento, não gosto de discussões. Mas sou forçado a reconhecer, senhora Cegonha, que não foi muito simpática aqui para o nosso vizinho relógio…
- E sabe porquê, amigo Sino? Sabe porquê? – Interrompe a ave migratória. – Porque estou, praticamente, em jejum. É verdade. Em jejum! – Repete, a justificar-se. – E olhe que não é à falta de manter os olhos bem abertos desde que rompeu o dia. Mas cobras e ratos, não há quem os veja… – Lamuria ela.
- E por causa da sua pouca sorte, atira o azedume para cima de mim! – Protesta o relógio, ainda agastado.
- Tem razão. Desculpe. – Pede a cegonha, à beira do ninho, pescoço curvado, o bico quase a tocar o ponteiro dos minutos.
O relógio abranda o tiquetaque.
- O que lá vai, lá vai. – Responde. – Há tanto tempo que somos amigos…
Feitas de um cheirinho a verdete, ouvem-se as palavras do sino:
- Era o que faltava, ficarem zangados. Demais, agora, que chegou o Outono e a senhora Cegonha está de abalada para o Norte de África.
E logo, a quebrar o silêncio que se intrometeu:
- Domingo, no final da missa, tenho dois baptizados. Vai ser um tão-badalão de se lhe tirar o chapéu! – Informa, num entusiasmo.
- Pois eu, vou dar outra volta. Pode ser que desta vez tenha mais sorte… – Despede-se a cegonha, em busca do almoço.
E o relógio da torre da capela, tiquetaque, acrescenta meia hora ao dia que arrefece.
 
Soledade Martinho Costa
   
                                                          
Do livro «Histórias que o Outono me Contou»
Ed. Publicações Europa-América
 
 
publicado por sarrabal às 12:01
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Terça-feira, 3 de Novembro de 2009

SEGREDOS - OS SAPATINHOS DE VERNIZ

                        

                                                 Farol de São Pedro de Muel.
 
O meu filho teria pouco mais de três anos de idade. Mas a memória guarda as imagens e as palavras, por vezes tão nitidamente, tão fielmente, que nem damos pela passagem do tempo. Tempo que nos traz de volta momentos que considero verdadeiras preciosidades, guardadas nos olhos, nos ouvidos e no coração.
 
É verdade que noutras ocasiões não acontece assim. O que sucedeu dilui-se, esfuma-se entre outras recordações, sem que possamos sequer lembrar um pouco só que seja do episódio acontecido, por mais boa vontade que tenhamos, por mais esforço que façamos na intenção de recordar, com maior ou menor exactidão, o que passou. Pode dizer-se que se trata, nestas circunstâncias, de uma espécie de amnésia total. Não é o caso. Pelo contrário.
 
Por essa altura era moda as crianças, meninos e meninas, usarem sapatinhos pretos de verniz. Era bonito, ficava bem e eu comprei uns sapatinhos ao meu filho. A minha filha, mais velha do que o irmão vinte e um meses, não chegou a usar. Nos meninos, sim, gostava de ver, nas meninas nem tanto.
 
O certo é que nesse dia foi uma festa lá em casa. O Luís Miguel não se cansava de calçar e descalçar os «sapatinhos de verniz», ou de os guardar na caixa, para logo os retirar de lá. Nesse e nos dias que se seguiram, falava e mostrava os sapatos ao pai, ao avô, à avó, aos amigos ou a quem passou lá por casa nessa ocasião. A caixa ficava à vista no quarto e a conversa do meu filho, volta não volta, tinha como tema «os sapatinhos de verniz», que, entretanto, já calçara por diversas vezes.
 
Sei que as férias chegaram por essa altura. Aliando uma coisa à outra, penso que a compra dos sapatos terá sido feita no mês de Julho, pela certa, visto as nossas férias, nessa época, recaírem no início de Agosto.
 
Por esses anos, a «nossa praia» era São Pedro de Muel, onde eu já passava férias desde os meus quinze anos. Praia linda, mar perigoso, tempo incerto, casacos de fazenda à noite, sempre – mesmo em Agosto. Uma praia em que as famílias, vindas de Coimbra, de Leiria, mas, principalmente, da Marinha Grande, formavam uma grande família. Ali todos se conheciam, todos conviviam, todos se estimavam. Hoje um pouco diferente, mesmo assim, São Pedro de Muel continua a conservar muitas das características de tempos mais recuados. Permanece o costume da caminhada tradicional em grupo, a dar pelo nome da «volta aos sete» – sete quilómetros de um percurso maravilhoso por entre o pinhal, a contornar S. Pedro e a terminar nas arribas da praia; o passeio obrigatório ao farol; a apanha das camarinhas pelos pinhais de D. Dinis e os concorridos e animados piqueniques sobre o denso tapete da caruma, à sombra dos pinheiros e dos medronheiros.
 
As jovens desses anos, como eu, são agora avós, e são os netos, ainda pequenos, a usufruírem da praia, sempre bonita, limpa e apetecível, do pinhal que a circunda, com o eterno «Bambi» (esplanada) sob os pinheiros, ponto de encontro, ainda hoje, de adultos e crianças, que se conhecem entre si, a fazerem até ao final da tarde (actualmente mesmo à noite) o convívio de mais um dia passado em agradável cavaqueira e companhia amiga.
 
Na primeira manhã dessas férias, já preparados para seguir rumo à praia, a pé (ainda hoje os carros em São Pedro praticamente não circulam), vejo o meu filho junto a mim com os sapatinhos de verniz na mão. Convém lembrar que, nesses anos, era de bom-tom em São Pedro de Muel, a partir da tarde, adultos e crianças «vestirem bem». E também à noite, se esta se mostrava convidativa para dar um passeio até à «esplanada da praia», lugar de encontro nocturno das famílias (hábito que se mantém), ou ao Casino (já desaparecido), que não passava de outro lugar aprazível para dançar e conviver.
 
Edificado rés à areia, terraço debruçado sobre o mar, orquestra, salão de buffet e de baile, sendo um edifício antigo e simples, de um só piso, o Casino, nos meses de Verão, constituía o centro da vida social de São Pedro de Muel. A entrada das crianças era livre e os sapatinhos de verniz davam, neste caso, um certo jeito. Actualmente, é menor a preocupação com o vestir.
 
Ao olhar o meu filho com os sapatos na mão fiquei por momentos sem atinar com o motivo da sua atitude. Mas o meu «porquê» depressa obteve resposta: «Vou calçar os sapatinhos de verniz, posso?» A minha reacção foi imediata. Que não, que os meninos não iam à praia com sapatinhos de verniz. «Mas eu ando só na areia!» insistia o meu filho, procurando uma argumentação mais válida. Expliquei que uma coisa dessas era impossível. Que os meninos não calçavam sapatinhos de verniz para ir à praia, muito menos para andarem com eles na areia. Dei as minhas razões, contrapus, enfim, disse redondamente que não. Nessa altura surgiu outro pedido, tão inesperado quanto o primeiro: «Mas posso levá-los dentro do saco da praia, deixas?» Aí, dei-me por vencida. Os olhos que me fitavam, ansiosos, a expressão suplicante à espera da minha resposta, foram a gota de água e condescendi: «Pronto, está bem, vamos levar os sapatinhos dentro do saco.» A alegria do meu filho não teve limites.
 
Durante vários dias os sapatinhos de verniz foram levados até à praia, embrulhados, dentro do saco das toalhas. Se lhes fez bem o ar do mar, é coisa que estou ainda hoje por saber. Agora que o meu filho se sentiu uma criança feliz, isso, posso garantir que sim.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                         
publicado por sarrabal às 15:22
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Segunda-feira, 2 de Novembro de 2009

DIA DE FINADOS

 
Flores da nossa saudade.
 
  
Soledade Martinho Costa
publicado por sarrabal às 11:37
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