Sábado, 31 de Outubro de 2009

PARABÉNS, SOLI!

                    

 
Minha querida «Segunda Imperatriz» (como sabes, a «Primeira Imperatriz» é a tua prima Teka e a «Terceira Imperatriz» a tua mana Xana):
 
É hoje o dia do teu aniversário, Soli:  aninhos lindos, ajuizados e muito, muito alegres.
 
Este ano a avó não vai poder fazer-te companhia, mas em pensamento estará contigo o dia todo, todo, inteirinho!
 
Um dia muito feliz para ti, meu amor! Estás cada vez mais crescida, Soli, já reparaste?
 
As flores aqui no Algarve estão tão bonitas como tu. Mais logo, quando estiveres menos atarefada, vou ligar para ti e conversamos as duas. Vais contar-me como passaste este dia tim-tim por tim-tim, está bem?
 
Uma das minhas prendas é o poema que podes ler a seguir. Espero que gostes, meu amor.
 
E não esqueças que fazes anos na véspera de um dia muito especial. Esta noite tem o nome de «noite dos prodígios» ou «noite mágica». Chamam-se assim as noites que antecedem dias importantes do calendário religioso. Amanhã é o Dia de Todos os Santos. Que todos eles te abençoem e façam feliz ao longo da tua vida, querida neta.
 
Beijinhos mil de parabéns da avó Sol!
 
 
                           O BANHO DA DONA PATA
 
                   
 
                                                         Dona Pata
                                      Patinha
                                      Patoca
                                      Leva os filhinhos
                                      A passear.
 
                                      - Quá-Quá!
                                      Que bela manhã
                                      Mamã!
 
                                      E os patinhos
                                      Amarelinhos
                                      Seguindo em fila
                                      Atrás da mãe
                                      Ao desafio
                                      Entram na água
                                      Sem terem frio.
 
                 
        
                                              - Miau! Bom-dia
                                  Dona Patoca!
                                  Diz-lhe do muro
                                  O Gato Maltês.
                                  Pelo que vejo
                                  Começou cedo
                                  A sua banhoca!
 
                                            - Quá-Quá!
                                Olá, olá!
                                Responde a pata.
                                Muito bom-dia!
 
                                            É como vês
                                Amigo Maltês
                                Se dantes sozinha
                                Já cedo o fazia
                                E tomava o meu banho
                                Com alegria
                                Mais cedo o faço
                                Tendo os meus filhos
                                Por companhia!
 
Soledade Martinho Costa
 
                               
 
Do livro «O Caracol que Sabe Música»
Ed. Vela Branca
 
publicado por sarrabal às 01:18
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Quarta-feira, 28 de Outubro de 2009

ABRE-LATAS - O DEUS DE SARAMAGO

 

O último livro de José Saramago vem mostrar que algumas figuras públicas, a partir de um dado momento, não passam sem continuar a ser o «centro das atenções». Pagam o protagonismo a qualquer preço. Saramago é livre de ter a sua opinião no que respeita a Deus e à Bíblia. Não pode é impô-la como verdadeira. A minha opinião (diferente) é tão válida quanto a dele. Estamos em pé de igualdade. Com uma diferença. Não perfilho livros que vão atingir e ferir sentimentos alheios. As religiões deviam ser intocáveis. Todas. A favor ou a desfavor. Questão de bom-senso.
 
De origens humildes, família de pais e avós pobres, Saramago vendia livros atrás do balcão de uma livraria no Chiado. Tirou apenas o curso comercial. Mas nasceu com um dom: o de escrever. Hoje é um Prémio Nobel da Literatura, que se dá ao luxo de provocar o Mundo. Foi um eleito – ser escritor, não se aprende. Não sei se Saramago já se perguntou «porquê?».
 
Saramago passou dificuldades na vida. Falta de dinheiro. Hoje é senhor de grande fortuna. A idade vai avançada. Esteve à beira da morte e continua vivo. É um eleito – raras pessoas têm tanta sorte. Não sei se Saramago já se perguntou «porquê?».
 
Saramago viveu numa casa alugada, modesta, de um bairro antigo de Lisboa (Madragoa). Não se dava bem com o amor. Hoje tem uma mansão na ilha de Lanzarote. A seu lado, uma mulher jovem, bonita e inteligente. É um eleito – raras pessoas têm tanta sorte. Não sei se Saramago já se perguntou «porquê?».
 
Saramago não precisa de nada nem de ninguém. Só precisa de chamar as atenções. E é perito a fazê-lo. Tem aquilo que desejou: ser falado. Não interessa os motivos. Foram os que decidiu que fossem. Acertou em cheio. Só duvido que o livro venda tanto como ele, apesar de tudo, deseja. As bolsas portuguesas não estão abonadas para uma ida às livrarias. Depois, o interesse pela obra é relativo: de um lado, a Igreja e os católicos, cuja maioria não vai comprar. Do outro, os ateus, cuja maioria também não vai ler, porque já conhece o conteúdo, principalmente, pela boca de Saramago. Ficam os curiosos, os estudiosos, os solidários de Partido e os pseudo-intelectuais do luso-provincianismo que não perdem, nunca, a oportunidade de expor na estante o último livro de Saramago - embora não façam a menor intenção de o ler.
 
Resta saber se Saramago tem medo da morte. Naturalmente, não. Se tem certezas absolutas. Naturalmente, não. Vamos, então, supor que Deus, um dia, lhe aparece à frente. Vamos, então, supor que vai perguntar-lhe: «porquê, Saramago?!».
 
Um Deus assim, que tudo deu a alguém que o renega e ofende – partindo do princípio que Deus tudo vê e prevê, que tudo sabe – não pode ser o mesmo Deus de Saramago.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                           
 
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Domingo, 25 de Outubro de 2009

O OURO - ENTRE O SAGRADO E O PROFANO

 

Senhor Santo Cristo dos Milagres, igreja do Mosteiro da Senhora da Esperança, Ponta Delgada, São Miguel, Açores.
 
As promessas de objectos pessoais em ouro feitas aos santos, na sua maioria peças de estimação, a simbolizar, no acto de quem delas se desfaz, o culto maior e o valor máximo da oferta atribuída, em troca da graça concedida (por vezes com a dádiva em dinheiro equivalente ao valor desse mesmo objecto), continuam a verificar-se nos dias actuais, com maior incidência no Douro Litoral e Minho, embora essa tradição religiosa se encontre quase perdida no resto do país.
 
                    
São Bento, Santuário de São Bento da Porta Aberta, Rio Caldo, Terras do Bouro, Minho.                
 
Uma das referências mais significativas vai para a grande romaria de São Bento da Porta Aberta, onde grande número de promessas são cumpridas com a oferta de objectos em ouro, parte deles expostos na chamada Casa das Estampas: pulseiras, cordões, anéis, alianças, medalhas, brincos (contando-se na peregrinação feita em Março de 2001 a oferta de onze pares), numa manifestação de religiosidade popular, a situar-se entre o sagrado e o profano.
 
                            
Escultura de Asclépio, que pode admirar-se em Epiduro, cidade da Grécia Antiga, famosa pelo templo a Asclépio e pelo majestoso Teatro, considerado Património da Humanidade pela Unesco.
 
O próprio culto a Asclépio, deus grego da medicina e protector da saúde (em Roma, Esculápio), era consumado com os doentes a agradecerem ao deus oferecendo-lhe objectos de ouro, que atiravam para a sua fonte sagrada, ao mesmo tempo que dependuravam ex-votos no seu templo.
                       
«Moisés com a Tábua das Leis», Rembrand, Museu Staatliche, Berlim.
 
Alguns autores relacionam a utilização do ouro nas práticas de religiosidade popular com a subida de Moisés (o vulto maior do Antigo Testamento) ao monte Sinai, a chamada «Ascensão de Moisés», quando o povo, na planície, julgando ter sido por ele abandonado, resolve juntar todo o ouro que possuía e construir com o metal precioso um bezerro, que passou a adorar, como se de um verdadeiro deus se tratasse.
 
 
                
Eventual protótipo do «Bezerro de Ouro», encontrado em 1990 nas ruínas da antiga cidade portuária de Ascalom, Israel
 
No regresso, Moisés, desiludido com a descrença do povo, destruirá o símbolo profano, pois só a um único Deus deveria o povo prestar obediência e culto.
 
Monte Sinai.
 
A oferta de ouro, poderá, então, simbolizar uma demonstração de veneração e arrependimento legada à humanidade, manifestada pela dádiva desse mesmo ouro «em pedaços» (que de pedaços foi moldado o bezerro), como sinal de respeito e de crença num único Deus e nos seus santos, em analogia ao «Bezerro de Ouro» despedaçado por Moisés ao descer do monte Sinai.
            
Por outro lado, se as promessas cumpridas com a oferta de objectos em ouro vão sendo mais escassas, continua a estar em uso, principalmente nas nossas comunidades rurais, o costume de utilizar o ouro proveniente de promessas para com ele adornar em datas festivas os santos que desfilam nos andores, além de ser o ouro, também, que enfeita as cruzes e os altares caseiros.
 
             
               Cruz Caseira, Vila Nova de São Bento, Serpa, Baixo Alentejo.
 
Nas Festas da Santa Cruz, em Vila Nova de São Bento (Serpa, Baixo Alentejo), cada cruz é ornamentada com objectos em ouro pertencentes aos donos da casa onde a cruz é erguida em cumprimento de promessa, juntando-se o ouro pedido e emprestado para essa ocasião.
 
Na Gaula (Santa Cruz, ilha da Madeira), no dia da festa e da procissão de Nossa Senhora da Luz, diz o povo que «a Virgem e o Menino ostentam o seu ouro», ou que «a Senhora vai carregadinha de ouro», numa afirmação onde a vaidade popular se confunde com a fé e esta com a adoração que, desta forma secular, se manifesta no culto prestado à sua padroeira.
 
Freguesia da Gaula, Santa Cruz, ilha da Madeira.
 
 Pode dizer-se que muitas festas e romarias são particularmente conhecidas pelo ouro que veste os seus padroeiros, caso, entre outros, de Nossa Senhora da Ortiga (Ortiga, Fátima, Vila Nova de Ourém), que sai na procissão coberta de ouro, oferecido, ao longo do tempo, pelos seus promitentes; de Nossa Senhora do Monte (Funchal), padroeira da ilha da Madeira, vestida com o ouro das promessas – peças do seu antigo «tesouro» composto por coroas, cruzes, anéis, pulseiras, arrecadas, cordões, fios, corações, e demais objectos de joalharia, quase todos incrustados de pérolas e pedras preciosas: esmeraldas, diamantes, ametistas, turquesas, topázios e outras («tesouro» vendido em parte a certo estrangeiro por volta de 1878 e já valioso em 1489); de Nossa Senhora da Piedade (Caniçal, Machico), a única procissão por mar realizada na ilha da Madeira, onde a imagem da Senhora ostenta grande profusão de ouro, a cobrir-lhe todo o peito, e de Nossa Senhora da Ajuda (Arranhó, Arruda dos Vinhos, Lisboa), com a parte da frente da imagem completamente coberta de ouro, numa profusão de cordões, arrecadas, fios, anéis, pulseiras, brincos, medalhas, medalhões e outras peças de ourivesaria – embora, por muitas se contem também as notas colocadas (pregadas) no andor pelas mãos dos devotos, igualmente em cumprimento de promessas.
 
        
Senhor Santo Cristo dos Milagres, no seu esplendoroso trono, forrado a veludo e cetim, bordado a ouro e ornado com flores de seda sob um dossel em talha de cedro dourada.
 
Outro imensurável «tesouro» pertence ao Senhor Santo Cristo dos Milagres (Ponta Delgada, São Miguel), onde a imagem, adornada ao longo de três séculos com riquezas de valor incalculável, resultantes de ofertas e promessas provenientes dos nobres ricos de épocas passadas  e  de devotos onde se inclui grande número de emigrantes açorianos espalhados pelo mundo, em particular na América, desfila na mais importante procissão dos Açores, representando a sua festividade uma das maiores manifestações religiosas açorianas.
 
             
 
Da infinidade de jóias de extraordinário valor material e artístico que a imagem ostenta, refira-se, entre outras, o relicário, com um enorme rubi e grande número de diamantes e brilhantes; a coroa, em ouro, ornamentada com mais de mil pedras preciosas, mandada fazer em Lisboa entre os anos de 1738 e 1759; o ceptro, onde se vêem vários ramos de folhas rematadas nas pontas por flores silvestres, decoradas com brilhantes, esmeraldas e rubis, espigas de trigo, com brilhantes e diamantes embutidos a servir de grãos, e grande laço de fita de ouro, em desenhos simétricos, num listrado de cinco faixas longitudinais, revestidas a pérolas, ametistas e esmeraldas, e as cordas que lhe atam as mãos, com mais de cinco metros de comprimento, compostas por cordões de pérolas enrolados entre si, intercalados numa corda entrançada em ouro.
 
                    
                         A veneranda imagem e o seu resplendor.
 
De toda esta riqueza e magnificência, destaca-se, sobretudo, o resplendor, peça verdadeiramente surpreendente, de platina folheada a ouro, com mais de seis milhares de pedras preciosas: esmeraldas, brilhantes, topázios, ametistas, safiras e rubis. Nele estão representados todos os símbolos da Paixão de Cristo, além da figuração de uvas e de espigas de trigo. Mandado executar em Lisboa, no século XVIII, encontra-se classificado entre os tesouros da arte sacra como «o mais valioso da Península Ibérica». Segundo a opinião dos especialistas, «absolutamente sem preço», só comparável à Custódia de Belém.
 
             
                                       Igreja Matriz de Quefes.
 
Recuando no tempo, em certas localidades do Algarve (Quelfes, Pechão, Santa Bárbara de Nexe, São Brás de Alportel, Querença, Lagoa, Estombar, Porches), pelo Natal, as mulheres percorriam as casas para recolherem os fios de ouro destinados a ornamentar o Menino, deitado numa caixa, cujo tampo, enfeitado com flores e estampas alusivas à quadra, era revestido no interior com um espelho, onde a imagem se reflectia ao abrir-se a caixa, dando a ilusão de levar maior quantidade de ouro do que aquela que na realidade continha. Este costume manteve-se na aldeia de Quelfes (Olhão) até aos anos cinquenta, com as mulheres a «sentirem orgulho por emprestarem o seu ouro para o Menino da Charola».
 
Mas existem também praxes de índole supersticiosa ligadas ao ouro. Na freguesia de Mar (Esposende, Minho) era uso, quando do primeiro banho do recém-nascido, fazer sobre ele uma cruz com o dedo polegar molhado na água, onde mergulhavam objectos de ouro na maior quantidade possível, de modo a que a criança, «durante a sua vida, fosse bafejada pela fortuna».
 
Soledade Martinho Costa 
       
                                                                                                          
 
Dos livros «Festas e Tradições Portuguesas», Vol. IV, VI e VII
Ed. Círculo de Leitores
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Sexta-feira, 23 de Outubro de 2009

PASSADO E PRESENTE - AS PROMESSA DO POVO

 

                                                  Fátima.
 
No culto pagão ou politeísta (que admitia a pluralidade dos deuses) e mesmo nas religiões monoteístas (que só reconheciam a existência de um deus único), praticavam-se três actos fundamentais: a oração, o sacrifício e a oferenda, que consistiam, por sua vez, em três propósitos: o propiciatório, na intenção de aplacar a fúria dos deuses, o expiatório, referente a qualquer mau procedimento, e o gratulatório, como gratidão pela graça concedida.
 
Três passos ainda hoje associados aos dias dedicados aos santos – aqueles que o povo consagra para desenvolver práticas de carácter específico (provenientes de remotos cultos agrários mágico/religiosos), que se mantiveram como elemento de sobrevivência, escolhidos, principalmente, para o cumprimento de promessas correspondendo à acção de graças obtidas dos santos advogados de um mal determinado, em rituais que representam uma das vertentes mais significativas e tradicionais das nossas romarias.
 
Sendo certo que a religião popular revela nas promessas a sua principal característica, não é menos verdade que algumas promessas de expressão penitente chegavam, mesmo, por tempos mais recuados, a tomar aspectos marcadamente dolorosos ou arrepiantes, como o de roçar a língua pelas paredes da capela, apresentar-se amortalhado ou ser levado em caixão de defunto.
 
Também as penitências que consistem em caminhar de joelhos durante um certo percurso, começam, por vezes, a partir do local de onde, pela primeira vez, a pessoa que a vai cumprir avista o santuário.
 
Fazem-se promessas de flores, rosários, ouro, círios, velas (que podem apresentar a altura ou o peso exactos da pessoa agraciada) e outros objectos em cera (figurações de animais e de partes do corpo humano), produtos da terra, gado, dinheiro, etc.
 
Entre outras, registam-se, especificamente,  promessas a Santa Luzia, advogada contra as doenças dos olhos, com a promessa de «olhos vivos» (animais vivos); a São Gil, advogado contra as doenças malignas, com promessas de flores e figurações em cera; a São Lourenço, advogado contra as dores de cabeça, dores de dentes e queimaduras (estas devido à tradição do santo ter sido queimado vivo numa grelha), com promessas de velas e figuras em cera, antigamente com a promessa de telhas; a Santa Marta, protectora das parturientes, com a promessa de «ir de luto», vestindo os promitentes roupa preta atrás da procissão (caso da romaria de Santa Marta de Portuzelo, Minho); a Santa Justa, advogada do leite materno e da esterilidade feminina, com a oferta de frangos e frangas brancos (representando o branco, na linguagem cristã, o símbolo da alegria, da inocência e da pureza) e a Santo Ovídeo, advogado contra as dores dos ouvidos e os maridos infiéis, neste último caso, com a antiga promessa (sem certeza de ter caído em desuso) da oferta de telhas, levadas com milho dentro, que teriam de ser roubadas pelo caminho até às capelas do santo.
 
Esta prática aparece como propiciatória no roubo ritual que se fazia outrora do Menino Jesus que Santo António segura ao colo, muitas vezes desaparecida das imagens do santo, tradição que se manteve até aos inícios do século XX, efectuada, segundo o povo, «para dar sorte».
 
Soledade Martinho Costa
                                  
                   
 
 Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.VI
Ed. Círculo de Leitores
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Terça-feira, 20 de Outubro de 2009

SANTOS PADROEIROS - ORIGENS

Santa Justa e Santa Rufina, Murillo, Museu de Belas Artes de Sevilha.
 
As promessas que se fazem e se cumprem aos santos, resultam da fé, da devoção e do culto religioso que o povo presta aos oragos de um lugar, de uma aldeia, de uma vila ou de uma cidade – ou, tão-só, ao titular de uma igreja ou de uma capela.
 
Anteriormente ao século VII, as catedrais, igrejas ou localidades não possuíam santos titulares ou padroeiros. Apenas as basílicas e igrejas que conservavam as relíquias de um santo mártir podiam adoptar o seu nome como santo padroeiro ou titular desses lugares sagrados.
 
A partir desse século quase todas as igrejas começam a organizar-se no sentido de elegerem os seus padroeiros, sendo escolhidos, em primeiro lugar, naturalmente, as figuras do Divino Salvador e da Virgem Maria, seguidas dos Santos Mártires.
 
Por altura da conquista da Espanha pelos Árabes, já todas as igrejas possuíam um santo padroeiro, a dar o seu nome ao templo e a servir de patrono às comunidades.
 
Em documentos da Idade Média, é usual o nome das localidades ser antecedido do nome do seu padroeiro, datando dessa época o processo da constituição das paróquias formadas em núcleos sociais, a assinalar a vida comunitária e religiosa das populações.
 
Reposto o culto cristão após a Reconquista, reatou-se esta tradição cristã (que nunca deixou de manter-se), a englobar capelas, igrejas, mosteiros e lugares, numa reafirmação da religiosidade popular.
 
Os novos colonos das comunidades, que tomaram para si as terras abandonadas pelos Mouros, no sentido de as povoar e cultivar, acabaram por ser eles próprios a contribuir para devolver às populações as práticas da devoção cristã, incluindo as do culto prestado aos seus santos padroeiros, procedendo à reconstrução ou edificação de capelas e igrejas, entretanto destruídas, de modo a que o povo pudesse praticar os preceitos religiosos da sua devoção em locais sagrados.
 
À frente dos templos, como responsáveis e orientadores pastorais dessas mesmas comunidades, eram colocados sacerdotes, por esse tempo a designarem os fiéis por fili eclesiae («fregueses»), designação que se estendia à localidade, dando-se-lhe o nome de  «freguesia» - a substituir a anterior denominação, «paróquia», actualmente recuperada, embora de certa forma circunscrita às actividades paroquiais (religiosas) de cada terra.
 
O processo de reorganização e formação das comunidades rurais, conquanto moroso (vai do século V ao século XI), é retomado a partir de então, agora com a igreja ou a capela sob a invocação dos santos a associar-se, em estreita união com as populações, no sentido de passar a celebrar-se em data fixa o dia dedicado ao orago, escolha a recair no seu dia litúrgico, estipulado pela Igreja Católica, ou em datas ligadas a acontecimentos importantes ocorridos no seio das comunidades e relacionados com a figura do santo.
 
Por outro lado, a origem das romarias deriva, supostamente, das peregrinações da era apostólica ao túmulo de Jesus, em Jerusalém, às quais se seguiram as peregrinações a Roma, capital da Igreja Católica, com grupos de peregrinos em cumprimento de promessas aos túmulos dos apóstolos São Pedro e São Paulo.
 
Como alguém escreveu, «os crentes iam a Roma, romeavam, eram romeiros», diferindo das grandes peregrinações o facto de as romarias serem realizadas anualmente em caminhadas de menor percurso.
 
Às peregrinações a Roma e a outros santuários de invocação a Cristo ou à Virgem Maria, associaram-se depois as de veneração aos santos, acrescentando-lhe o povo a parte profana – a diversão –, ou, simplesmente, mantendo-a, vinda de épocas pré-cristãs.
 
Com o passar do tempo, em certas localidades, alguns dos antigos padroeiros acabaram por ter pouco significado, verificando-se, mesmo, a extinção da sua festa, quer por motivos da ruína dos templos e consequente desinteresse das populações, quer por terem sido ultrapassados, no decorrer dos anos, por uma devoção maior a outro santo.
 
Símbolo da fé do povo e sinónimo de protecção à comunidade paroquial – a delimitar, por vezes, o próprio território que lhe cabe, como guardião das terras e dos seus respectivos habitantes –, o santo padroeiro significa o amparo e o confidente, o protector, aquele que, por sua intercessão junto de Deus, tem a faculdade e a missão de defender e obter para quem a ele recorre, o louva e nele confia, as graças pedidas em oração e voto de promessa – particularmente, nas alturas mais precisas e difíceis da vida de cada um.
 
 
Soledade Martinho Costa
                                                         
                                          
                            Capela da Senhora de Alcamé, Vla Franca de Xira.
 
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.VI
Ed. Círculo de Leitores
 
publicado por sarrabal às 00:03
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Quarta-feira, 14 de Outubro de 2009

REDUTO

 
Construído
De muros transparentes
Fiz um jardim
Sem flores.
 
Semeei nele
Montes de razões
E reguei
Com gotas de saudade.
 
Ao fundo
Tem um caminho
Que conduz   
Até às frustrações
Feito de atalhos
E sebes sem verdade. 
 
É lá
Nesse jardim
Que me perguntas
Às vezes:
És feliz?
 
E eu respondo a rir
Que sim.
 
Só esta lágrima
De manso
Contradiz.
 
Soledade Martinho Costa
 
Do livro “Reduto”.
publicado por sarrabal às 22:29
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Segunda-feira, 12 de Outubro de 2009

SEGREDOS - RECORDAR AMÁLIA

 

                     

 
Nos últimos tempos de vida de Amália, durante os serões em sua casa, falava-se muito do que tinha ficado para trás na carreira da Artista: dos seus sucessos, das suas viagens, dos países onde actuou, das suas recordações. Por fim, os serões começaram a ser preenchidos, quase exclusivamente, com a passagem de filmes que mostravam o êxito alcançado por Amália no mundo inteiro. Seguiam-se os comentários feitos pelos presentes e as explicações complementares dadas por Amália.
 
Estas visitas ao passado, por muito bem intencionadas – tendo como propósito uma espécie de lenitivo para a Artista –, surtiam, em minha opinião, um efeito contrário ao desejado. O desfiar constante de recordações, acabou por tornar-se um hábito diário e os serões a parecerem uma romagem de saudade. Em consciência, temia que a situação contribuísse para despertar em Amália a certeza de que os seus sonhos começavam a ficar cada vez mais distantes e inatingíveis. Receios que não foram infundados.
 
Nesses anos, a sua alegria (que lembro das minhas primeiras visitas) dera lugar a uma tristeza que se reflectia no rosto dos anjos que esvoaçavam nos painéis de azulejo a vestirem as paredes da sala, desde meio até ao chão. Uma tristeza igual à que nos invade quando ouvimos um fado. Ou quando sentimos saudades de um tempo que já não nos pertence. Tristeza que teimava em fazer-nos companhia pela noite dentro.
 
Nesses serões, Amália já não tinha vontade de contar anedotas, de dizer versos, ou de cantar e dançar para os amigos – como chegou a fazer, somente para mim, privilégio que me deixava sempre deslumbrada, espantada com a minha sorte, como é de supor.
 
Por essa altura, o chá, as bolachinhas, o pão e o queijo, servidos ao serão, deixaram de ter o mesmo sabor.
 
Cheguei a consolar Amália, buscando nas minhas palavras uma força que não sentia. Aconteceu em certo serão. Ao ver no vídeo as suas imagens, agarrou o meu braço, dizendo com lágrimas nos olhos: «Como eu era e como eu estou, uma doente. Já não sou ninguém!». Não foi fácil para mim ouvir este desabafo. Onde encontrar argumentos que a convencessem do contrário? Que lhe mostrassem quanto estava enganada? Que lhe dessem a certeza que continuava a ser, apesar de todo o infortúnio, a nossa Amália, a única, a insubstituível?
 
A prova é o que tem estado a verificar-se neste mês de Outubro, em que passam dez anos sobre a sua morte, com as homenagens que lhe têm sido prestadas.
 
Amália será sempre Alguém. Alguém muito querido. O público que a ama por todo o Mundo – especialmente o público português – continua a ver nela a grande Artista que sempre foi. Única. Inigualável. Público que vai continuar a recordá-la: bonita, sorridente, simples, bondosa, uma mulher culta, de estrema sensibilidade e inteligência, grande poetisa e uma voz sublime, eterna, irrepetível.
 
Amália, mesmo acompanhada, sentia-se só. Um dia, disse-me: «Penso muito. Sempre fui assim. Ponho-me a pensar, a pensar, vou por aí fora, vou, vou, olhe, vou até ao fim de mim!» Sorri, ante a maneira tão sua, tão pessoal de Amália se expressar. Poucas pessoas conseguiam fazê-lo de forma tão singular, tão inteligente.
 
Teimava em chamar-me romântica: «Você, você é uma romântica!». Deixei de manifestar a minha discordância – embora aceite que, de vez em quando, possa dar essa impressão. Numa das fotos que me ofereceu, escreveu na dedicatória: «Para uma romântica, de uma sozinha».
 
O facto de saber que não podia voltar a cantar, roubou a vida de Amália antes da morte ter chegado. Acredito que tenha sido esse, nos últimos tempos, o seu maior desejo: partir.
 
Soledade Martinho Costa
 
          
                            Recanto da sala de Amália Rodrigues
 
 
publicado por sarrabal às 00:32
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Sábado, 10 de Outubro de 2009

SEGREDOS - O ENCONTRO

             Casa de Amália Rodrigues, na Rua de São Bento, Lisboa.     

  

      

             Amália Rodrigues                                     Dulce Pontes

   

Muitas vezes se pronunciou o nome de Dulce Pontes em casa de Amália Rodrigues. Nos serões (inesquecíveis), falava-se de tudo um pouco, sem que nunca ficassem de fora os cantores, os fadistas, a música, os músicos, os poetas e a poesia.
 
Sobre Dulce, Amália costumava dizer: «Tem uma grande voz. Mas não para cantar o fado. Ela deve cantar canções. Mesmo jazz. Fado, não!»
 
Concordando ou discordando desta opinião, uma coisa é certa: Amália sentia-se melindrada (e disso não fazia segredo) pelo facto de Dulce Pontes ter gravado o álbum «Lágrimas» (onde se podem ouvir muitos dos fados de Amália), argumentando: «Devia ter tido uma atenção para comigo. Um simples telefonema bastava.» Nessas ocasiões, costumava lembrar-lhe que Dulce lhe dedicara esse trabalho. Mas Amália não abrandava o melindre.
 
Sendo eu também amiga de Dulce, e ouvindo-a enaltecer constantemente Amália Rodrigues, este desentendimento entristecia-me. Saber aquelas duas grandes vozes, não direi de costas voltadas, mas com um muro invisível a dividi-las, fazia-me pensar.
 
Certa vez, Dulce, confessou-me: «Num espectáculo em que participei, vi a dona Amália sentada na plateia. Fiquei aterrada. Quando entrei no palco, as minhas pernas tremiam como varas verdes!». A admiração de Dulce por Amália não tinha limites. A admiração de Amália por Dulce era limitada, devido a «um simples telefonema» que não fora feito.
 
Um dia perguntei a Dulce Pontes se gostaria de visitar Amália. A resposta veio, num entusiasmo: «A Soledade fazia isso? Fazia? Era a coisa que mais desejava!». Faltava-me «investigar» a outra parte.
 
Foi fácil. Quando falei a Amália na grande vontade de Dulce em visitá-la, mostrou-se amuada: «Ora, ora. E porque foi que não me telefonou? Era assim tão difícil?». Expliquei que Dulce se sentiu inibida, mas que a adorava desde criança. Antes do serão terminar, disse-me: «Então, traga lá a pequena. Ela que venha. Marcamos uma noite destas.» Assim aconteceu.
 
Marcou-se o dia, depois do jantar, por volta das dez da noite. Combinámos o encontro à porta de Amália, na Rua de São Bento, indo eu de Alverca do Ribatejo e a Dulce do Montijo. Quem chegasse primeiro, esperava.
 
É aqui que entra um dos meus costumados «pequenos trocos» (trocas). Dei, à Dulce, o número da porta de Amália mas…errado! Quando visitava Amália, nem reparava no número; conhecia o prédio de cor. Nessa noite, não. Cheguei primeiro, olhei o número da porta e apercebi-me que não era o mesmo que havia dado a Dulce Pontes!
 
Nessa altura (já lá vão uns anos), não tínhamos, como hoje, um telemóvel à mão. Com Dulce a caminho, restou-me uma alternativa: deixei a pessoa que me acompanhava à porta de Amália (não fosse Dulce ter dado pelo engano) e, pelo sim, pelo não, fui postar-me à porta do número errado – para meu azar, situado bem lá ao fundo da Rua de São Bento. Pouco depois, ao longe, era alertada por gestos: Dulce tinha chegado à porta de Amália!
 
Resumindo. Ao dar ao taxista a morada de Amália (Dulce tinha carta e carro mas não conduzia), este alertou: «Esse não é o número da porta da dona Amália. Mas não se preocupe. Eu conheço bem o prédio».
 
Dulce Pontes estava bonita: vestido comprido, com casaquinha justa, em tom pérola, botinhas e chapéuzinho na mesma cor. Nas mãos um bouquet de rosas. Quando lhe relatei o meu lapso, respondeu-me, para consolo da minha auto-estima: «Ora, Soledade, isso não é nada, comparado com o que se passou comigo. A poucos minutos de chegar, lembrei-me de abrir o CD que trago para oferecer à dona Amália. Estava vazio! Devia ter sido a minha mãe para o colocar na aparelhagem. Pedi ao taxista para me levar rapidamente ao Centro Comercial das Amoreiras e fui comprar, imagine, o meu próprio CD! Olhe se calha não o ter aberto?!»
 
No meio de risos, subimos e aguardámos na sala. Amália jantava tarde, adormecia tarde e levantava-se tarde. Quando entrou, simples no vestir, como sempre  acontecia quando estava em casa, pigarreou. Lembro-me das suas primeiras palavras: «Lá está o meu pigarro. Fico sempre pior quando estou nervosa». Não. Não era pigarro. Era a doença ainda não detectada.
 
O serão foi especialmente agradável. Depois de Dulce ter confessado a Amália «que se tinha mantido em silêncio, por acanhamento», a conversa tornou-se solta e tomou o seu rumo: falou-se de mil e uma coisas, incluindo «alguns comportamentos» de editoras discográficas, de edições piratas, de espectáculos, de viagens – pelo meio, com Amália a insistir no conselho: «A Dulce deve cantar boas canções. Fado, não. Aquilo que canta não tem nada a ver com o fado!». Para logo acrescentar, num elogio meio discreto: «Olhe que fui eu quem deu o seu nome e o da Teresa Salgueiro para os espectáculos lá em Tóquio, por serem duas boas vozes!»
 
Trocaram-se sugestões sobre chás: Dulce a indicar o «chá de perpétuas roxas», que Amália prometeu experimentar, esta a sugerir o «chá de cebola», que Dulce garantiu ir experimentar também. À saída renovou-se o convite: «que Dulce voltasse para outro serão». Pouco faltava para as quatro horas da manhã quando saímos de casa de Amália – que veio despedir-se à varanda, como sempre fazia.
 
Senti-me feliz. Com a sensação de um dever cumprido. Juntar as duas maiores vozes femininas do fado e da canção nacionais, aproximá-las, fora dos palcos, na compreensão, no companheirismo, no respeito mútuo, sem esquecer o beijo de despedida que trocaram, constituiu, para mim, um acontecimento que jamais esquecerei.
 
Pouco tempo depois, era diagnosticada a doença de Amália, seguindo-se a sua ida para os Estados Unidos, onde se manteve durante meses. Dulce telefonava-lhe. Quando Amália regressou, enviou-lhe flores. Mas a visita não se repetiu. Ficou a amizade entre as duas. A admiração de uma pela outra.
 
Ficou, igualmente, o meu espanto por ser eu a juntá-las. E ainda a pergunta que faço a mim própria até hoje: porquê, eu? Nunca saberei responder. Provavelmente, porque o destino me colocou no caminho de ambas. Deve ter sido.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                                          
                                                    Guitarra portuguesa
publicado por sarrabal às 00:40
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Terça-feira, 6 de Outubro de 2009

UMA ROSA PARA AMÁLIA

                

 

               10 ANOS DE PRESENÇA E DE SAUDADE

 

 

                

                 

                               
                   De corpo e alma e tua
              Eis-me aqui
              À espera de Te ouvir
              Dizer porquê.
 
              A razão desta mágoa
              Deste canto
              Desta voz que me deste
              E reparti.
 
              Soledade Martinho Costa

 

publicado por sarrabal às 00:45
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Segunda-feira, 5 de Outubro de 2009

BORDA D'ÁGUA - O LINHO (CONCLUSÃO) - «DEPOIS DO OIRO É O LINHO»

«As Fiandeiras», Diego Velásquez, Museu do Prado, Madrid.
 
 
Parte I - Da Flor à «Baganha»
Parte II - Da Roca e do Fuso à Dobadoira
Parte III (Conclusão) - «Depois do Oiro é o Linho»
 
 
Considerada ainda não há muitos anos uma espécie de símbolo da coesão familiar, o linho representava, por isso mesmo, uma herança transmitida de pais para filhos, quer constituída por reservas de roupa branca de vestir e destinada à casa, quer em roupas do «bragal» (enxoval) das raparigas ou em peças inteiras guardadas em rolos nas grandes arcas, como um tesouro de real valia.
 
                 
 
De um modo geral, tudo se fazia com o linho: lençóis, toalhas de mesa ou de rosto, colchas, camisas, saias, coletes, toalhas de altar e os antigos «sacos de côngrua», enfeitados com uma renda na abertura – que serviam para meter o milho oferecido em certas aldeias, pela maior parte das pessoas, ao padre no dia da visita pascal – o «compasso» –, como acontecia no Sobrado (Valongo, Porto).
 
                      
 
As peças de vestuário ou destinadas à casa, confeccionadas em linho, na sua maioria bordadas, continuam, nos dias actuais, embora dispendiosas, a ser amplamente comercializadas, tendo em conta a sua beleza e sentido da verdadeira riqueza que representam no contexto da nossa tradição artesanal – bem elucidativo, em termos de valor, no ditado local de Ponte de Lima (Minho): «Depois do ouro, é o linho».
 

 

Os «tomentos» eram antigamente utilizados em panais para a apanha da azeitona, colchões e sacos para guardar os cereais, enquanto a estopa era usada em calças, saias e aventais de trabalho – hoje a servir à confecção de carpetes, tapetes, reposteiros e ainda à execução dos trajos destinados aos ranchos folclóricos, onde se aplica, igualmente, a estopinha.
 
         
                              Rancho Folclórico da Golegã.
 
Por merecer reparo, registe-se que, no Porto, na noite de São João, mandava a tradição que fosse colhido um raminho de linho em nove linhares, formando com eles um único ramo, que se guardava depois com fins mágico-propiciatórios.
 
Linhal.
 
Em Santo Tirso (Porto), era igualmente hábito, entre Maio e Junho, irem casais de jovens aos campos de linho, antes deste ser arrancado, para formarem pares e rolarem sobre os linhares, num evidente ritual pagão de fecundidade, chamado ali, o «talhar da camisa» – tradição não completamente esquecida, pelo menos nas aldeias ao redor de Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto, Minho), onde os mais antigos e os mais novos continuam a manter o preceito. Por isso, a quadra: «Raparigas e rapazes/Ó jovens de Portugal/Vinde talhar a camisa/Em cima do meu linhal.»
 
                 
  
Considerada uma actividade caseira, praticada especialmente por mulheres, mostrava-se mais desenvolvida na região norte, com várias centenas de artesãs concentradas, sobretudo, no Vale do Sousa. Na sua forma artesanal, o linho pode apresentar trabalhos misturados com lã, seda, algodão ou estopa.
 
             
 
Na Beira Baixa (Alcains, Caria, Belmonte, Pêro Viseu, Oleiros e, principalmente, na Covilhã) o número de tecedeiras, por volta de 1865, segundo estatísticas da época, era de mil trezentas e noventa e cinco, que possuíam teares, enquanto o total de linheiras, que trabalhavam apenas os fios de linho, era de cento e uma.
 
                
                          Tear, Zagalho, Penacova, Coimbra.
 
Actualmente, com o linho, na sua maioria, importado de Itália, Bélgica e Irlanda, para «urdir» (ir ao tear) e para «tapar» (já tecido), o número de tecedeiras e bordadouras é de alguns milhares espalhados por todo o país, embora, mais marcadamente, em certas localidades e regiões, casos de Apúlia (Minho); Guimarães, Boucos, Agra e Arouca (Douro Litoral); Simões, Vilarinho, Bilhó, Mondrões e Agarês (Trás-os-Montes); Castro Daire (Beira Alta); Vale de Cambra e Almalaguês (Beira Litoral) – com destaque para os bordados manuais de Lixa, Felgueiras, Lousada e Paços de Ferreira (Douro Litoral), que apresentam bainhas abertas, ponto aberto, crivo, matiz, alto-relevo, richelieu, etc…
 
Tear, Sendim, Miranda do Douro.
 
Lugares onde ainda se semeia e tece o linho tradicionalmente, cada vez mais raros, por não ser economicamente viável, vamos encontrá-los, entre outros, em Pedraça, Predaído, Corrilhã, Moreira, Covide e Apúlia (Minho); Tropeço, Nespereira e São Pedro de Raimonda (Douro Litoral); Soutelo e Paradela do Rio (Trás-os-Montes); Cruz dos Madeiros (Monchique, Algarve) e Lombo do Curral (Santana, ilha da Madeira), lugar conhecido, antigamente, por «fazer os melhores panos de linho».
 
          

 

Algumas das localidades em que se procede à encenação das antigas espadeladas, como espectáculo recreativo e cultural, situam-se em Corredoura (Guimarães), a cargo do rancho folclórico local; Moreira (Monção), a cargo da Casa do Povo de Vale da Gadanha; Barroças e Taias (Monção), a cargo da Junta de Freguesia e Ribeira de Pena (Trás-os-Montes), a cargo da Câmara Municipal.

 

 

Soledade Martinho Costa
 
                                         
 
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol. VI
Ed. Círculo de Leitores
 
publicado por sarrabal às 21:44
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