" Salomé com a cabeça de São João Baptista ", Caravaggio, Palácio Real de Madrid.
Filho de Zacarias, sacerdote judeu, e de Isabel, prima afastada de Maria, mãe de Jesus, São João Baptista, o Precursor (por ter anunciado e preparado a vinda de Cristo), com vinte e quatro anos parte para o deserto em retiro espiritual, alimentando-se apenas de gafanhotos, ervas, raízes, frutos e mel. Mais tarde, baptiza Jesus Cristo nas águas do rio Jordão, na Palestina, apresentando-O ao povo como o Messias.
Foi decapitado no ano 31 a pedido de Salomé, princesa judia, que solicitou a cabeça do santo a seu tio Herodes Antipas – tetrarca da Galileia, que julgou Jesus Cristo. Este pedido, segundo a tradição, terá sido feito por exigência de Herodíade, mãe de Salomé e cunhada de Herodes.
A degolação de São João Baptista é celebrada a 29 de Agosto.
Esta data associa o santo, uma vez mais, aos banhos rituais e profilácticos, assinalados já na celebração do seu nascimento: 24 de Junho.
Com efeito, festas e rituais diversos relacionados com os banhos santos, continuam a verificar-se todos os anos um pouco por todo o país, numa estranha e complexa conjugação em muitas festas e romarias consideradas das mais antigas e populares celebradas entre nós. Avaliando, contudo, a água como um dos elementos essenciais à vida (é ela que envolve desde logo o embrião humano) e também como símbolo do baptismo, ou seja da iniciação e da purificação, será mais fácil reconhecer a sua importância e significado.
Prática precessora de outras mais remotas, com origem nos cultos pagãos em louvor das ninfas e outras divindades pré-romanas das águas, há quem a relacione com o culto a Ártemis, deusa grega das florestas, das montanhas e dos animais selvagens (a Diana dos Romanos), que gostava de banhar-se nas águas dos rios e das fontes e cujos templos ficavam sempre junto dos charcos e dos lameiros, ou ainda a Neptuno, deus do mar (na Grécia Posídon).
O banho santo mantido e difundido pela devoção popular e aceite pelo cristianismo (conquanto sujeito a várias perseguições, pelo menos desde o século IV e que prosseguiram pela Idade Média), continua a usufruir de toda a devoção de uma sociedade, ontem predominantemente rural, hoje a incluir uma vertente cada vez mais urbana. Muitas festas, romarias ou simplesmente datas cíclicas do calendário circunscritas apenas à consumação de práticas rituais, incluem banhos considerados purificadores e profilácticos, tanto em fontes, como nos rios ou no mar, de pessoas e animais, principalmente rebanhos de cabras e de ovelhas levados pelos seus pastores.
Se bem que as sociedades modernas tenham adoptado e aplicado os banhos santos a outras datas igualmente festivas, que não aquelas remotamente estabelecidas pela tradição – supostamente, no sentido de os recriar ou de os recuperar – em particular na noite da passagem do ano, com os banhos purificadores tomados à meia-noite ou de madrugada (por exemplo em Lisboa, nas praias da costa do Estoril, e noutras praias onde o costume se enraizou).
Tradicionalmente, as datas são três: no dia de São João (24 de Junho), no dia de São Bartolomeu (24 de Agosto) e no dia da degolação de São João (29 de Agosto). De acordo com a tradição, os banhos devem ser tomados na véspera à meia-noite, ou de madrugada, em jejum, antes de nascer o Sol, altura em que a água, segundo a crença do povo, «é considerada benta». A circunstância de duas das datas coincidirem, uma com o nascimento de São João e a outra com a sua morte, poderá estar associada ao facto bíblico de São João Baptista ter baptizado Jesus Cristo nas águas do rio Jordão.
No Algarve, o banho continua a ter lugar, preferencialmente, no dia 29 de Agosto, valendo «por nove e curando o reumatismo» (costume que se supõe, herdado dos Árabes, que tomavam o banho profiláctico de mar nesta mesma data).
Na praia da Manta Rota (Vila Real de Santo António), o «banho da degola» (recuperado nos últimos anos) é tomado de manhã, antes de nascer o Sol, com os grupos de participantes vestidos como os antigos banhistas da região: elas em combinação, eles de ceroulas até ao joelho, a deslocarem-se, alguns deles, montados em burros e munidos de merendas destinadas ao piquenique que terá lugar logo depois. Em Lagos a tradição repete-se nos mesmos moldes (recuperada também ela há poucos anos), com o banho tomado no dia 29.
Na serra algarvia de Monchique os banhos santos têm lugar não a 29 de Agosto, mas de 28 para 29 de Setembro. A razão da mudança de data vamos apenas encontrá-la na seguinte informação dos mais velhos: “desde que se lembram, sempre assim foi”. Por isso, no final do dia 28, descem da serra até à praia as crianças das escolas, acompanhadas de grupos de adultos, para o «banho do 29», vestidas, por vezes, com fatos de banho a imitar os modelos antigos, sendo o banho tomado à meia-noite em ponto. Ainda aqui, sem esquecer a merenda…
O «famoso banho do 29» não se limitava apenas ao Algarve. Também em certas localidades da Beira Baixa e mesmo no Minho se verificava, no dia 29 de Agosto, o banho santo de pessoas e animais.
Para além das habituais comemorações litúrgicas desta data, continua a ser no Algarve que a tradição mais se faz cumprir. Não já nos moldes de outrora, mas com as celebrações populares a perdurarem ainda com alguma animação. Por isso, em Aljezur, o feriado municipal recai no dia 29 de Agosto – assinalando assim, condignamente, em terras algarvias, o «São João da Degola».
Soledade Martinho Costa
Do livro "Festas e Tradições Portuguesas", Vol. VI
Ed. Círculo de Leitores.
Vivo junto de um rio. O meu sonho, desde o tempo de escola, concretizou-se.
Na Selecta de Português, li, muitas vezes, o seguinte, escrito por um grande poeta: “É um regalo na vida/ à beira de água morar/ quem tem sede vai beber/ quem tem calor vai nadar”.
O poeta tinha razão. Por isso, aqui estou eu, agora, usufruindo, diariamente, dessa verdade. Isto é, a morar, a olhar e a ouvir o rio Cávado -lamentando não poder nele tomar banho nem beber da sua água, por imprópria.
Continuando a ouvir a voz dos poetas, principalmente os que amam o Cávado, sinto, penosamente, o texto de Ruy Belo “ A Morte da Água”:
“ Um dos passeios que mais gosto de dar é ir a esposende ver desaguar o cávado. Existe lá um bar apropriado para isso. Um rio é a infância da água. As margens, o leito, tudo o protege. Na foz é que há a aventura do mar largo.
Acabou-se qualquer possível árvore genealógica, visível no anel do dedo. Acabou-se mesmo qualquer passado. É o convívio com a distância, com o incomensurável. É o anonimato. E a todo o momento há água que se lança nessa aventura. Adeus margens verdejantes, adeus pontes, adeus peixes conhecidos. Agora é o mar salgado, a aventura sem retorno, nem mesmo na maré-cheia. E é em esposende que eu gosto de assistir, durante horas, a troco de uma imperial, à morte de um rio que envelheceu a romper pedras e plantas, que lutou, que torneou obstáculos. Impossível voltar atrás. Agora é a morte. Ou a vida”.
Digo para mim: que fazer?
Hoje, véspera da morte de São João Baptista (o São João da Degola), vou pedir ao rio Cávado que, na sua origem, na sua nascente, lá, na serra do Larouco, comece nova infância. Que a partir deste dia se sinta de novo protegido pelas suas margens verdejantes, pelo seu leito. Que se revitalize, que se revigore. Que ame as pedras, as plantas, os peixes, as pontes. Que se embeleze e perfume na Barca do Lago, tornando-se, assim, o doce “Celanus” de outrora. E, deste modo, amorosamente, se prepare para os seus esplendorosos esponsais com o rico e fecundo mar. Lá, na aventurada foz de Esposende.
Sei que vai atender o meu pedido e eu o celebro: parabéns rio Cávado! Feliz casamento – para a Vida!
Maria Júlia Pinheiro
Serra da Peneda
O rosto sem idade
O trajo sem mudança
O lenço atado à nuca
O ar cansado
A mão que se moldou
Afeita à luta
Que lhe travou o cabo da enxada.
A manta onde se aquece
Feita de trapo
A arca onde guarda
O pão do tempo.
O chão feito de terra
Aonde acende
O fogo que lhe queima
O pensamento.
A bilha negra de barro
Que às vezes mata
A sede que vem da alma
Nas tardes quentes
Quem sabe que se estilhaça
Nas noites frias?
E a teima dos sonhos mortos
Que lhe renascem
Nos campos
Onde a fadiga cria raízes
Quem sabe que os amortalha
Todos os dias?
Soledade Martinho Costa
Do livro “A Palavra Nua”
(Ed. Vela Branca)