Quando cheguei ao Bom Velho de Cima, disposta a recuperar a casa em ruínas que adquiri, fui instalar-me numa outra, pertencente a uma amiga, pagando, por insistência minha, uma renda simbólica. A espaços, por lá permaneci longos meses. Além da sala de entrada, a casa tinha dois quartos a darem para um terraço com uma vista magnífica. Dali, podia o nosso olhar percorrer, como numa tela, os vales, os pinhais e o denso arvoredo que circundam a aldeia.
Enquanto punha a casa a meu jeito, ia fazendo visitas diárias aos pedreiros e carpinteiros que avançavam na minha obra. Espécie de fiscal atento, para meu bem e aprendizagem de quem para mim trabalhava – fiscalização mais no sentido estético do que técnico, diga-se a verdade. Essa ficava para quem, melhor do que eu, sabia tratar do assunto. Ninguém se melindrava e as minhas correcções e sugestões eram aceites e cumpridas, servindo de diversão. «Lá vem o fiscal da obra!», ouvi várias vezes e achava graça.
Pouco depois de instalada na casa da minha amiga, comecei a ver do terraço, aos longe, dois gatos amarelos sentados ou deitados sobre os muros de pedras sobrepostas, que separam terrenos e courelas. Não se mexiam, parecendo duas estátuas de pêlo amarelo, mas de olhar fixo na direcção da casa. Via-os diariamente e comecei a chamá-los, sem que os bichanos se mostrassem interessados. Na posição em que estavam, assim ficavam.
Perguntei na aldeia a quem pertenciam os dois gatos: «São do tio Leopoldino, está velhote e foi morar com o filho. Deixou a casa e os gatos. Mas não são dois, são três. Um deles, não sai do quinteiro. Os outros, andam por aí…» – Disseram-me.
Um dia em que o tio Leopoldino veio de manhã, muito cedo, como era seu costume, fazer a visita semanal à casa que deixara, aproveitando para dar uma espreitadela à adega e à vinha, meti conversa: «Como é que os seus gatos se alimentam, senhor Leopoldino?» – Pergunta ingénua, a minha. «Ora, minha senhora, de ratos e de pássaros! São bons caçadores. Aquele, ali – e apontou o terceiro gato, para mim até então desconhecido, embora uma réplica dos outros – ia sempre comigo como se fosse um cão. Às vezes, andávamos quilómetros. Os outros, não.». Foi a resposta do tio Leopoldino.
O tempo passava e comecei a reparar que os dois gatos encurtavam cada vez mais a distância entre os muros e a casa. Um dia dei com eles no terraço que ficava à entrada da porta. Pensei: «Saltaram o portão e instalaram-se!» À minha aproximação, assustadiços, voltaram a saltar o portão e sumiram-se por entre o tojo. Nesse dia não voltei a vê-los. Insisti, chamei, mas sem resultado. No dia seguinte, coloquei um prato com leite no terraço e aguardei. Quando espreitei, lá estavam os dois. Do leite, nem vestígios.
E foi assim que os dois bichanos começaram a fazer parte da casa e do meu quotidiano, sempre que me encontrava no Bom Velho de Cima. Um deles, uma gata, era um bicho grande, bonito, robusto. O outro, tão magro e enfezado que se lhe notavam os ossos sob o pêlo. Comiam e dormiam no terraço e dali não arredavam pata. Sempre que me ausentava da aldeia, notava-lhes a tristeza no olhar, ao dizer-lhes adeus, já dentro do carro. Quando regressava, era uma festa. Na minha ausência, soube depois, os animais não deixavam o terraço – naturalmente, à espera de me verem chegar. Comigo, vinham os mimos e novas ementas, que de ratos e pássaros deviam andar fartos.
Numa outra vez, voltei a encontrar o tio Leopoldino: «Então, os meus gatos agora são da senhora! Já sei que se mudaram para casa da Isabelinha (a minha amiga). Ora, não, bom trato, barriga cheia…Bem fazem eles!» Nessa altura fiquei a saber o nome dos tarecos: Badaneca, a gata-mãe, Badanico, o gato-filho – que o tio Leopoldino também me esclareceu qual o parentesco entre os dois.
Analisando o comportamento dos bichanos, até batia certo. A Badaneca, mais «sisuda», sonolenta, comilona. O Badanico, por vezes a brincar com ela e a levar uma sapatada, mas tão magrinho e tão «piqueiro» (como se diz na aldeia), que na comida mal tocava. Badaneca, essa, comia a parte dela e acabava por comer a que o filho deixava.
Um dia, para meu desgosto, o Badanico, sem que nada o fizesse prever, apareceu morto no terraço. Nos últimos dias tinha reparado que se agravara a sua magreza, que mal tocava na comida. Mas não imaginei um desfecho assim. Sempre ouvi dizer que «os gatos têm sete foles». Julguei que o ditado fosse verdadeiro.
Badaneca, continuou impávida, a fazer as suas sestas no terraço, aninhada no banco corrido, de madeira, seu poiso favorito, e a comer por dois, não parecendo dar pela falta do Badanico.
Ainda assim, semanas depois, notei que a Badaneca não estava bem. Sintomas? Falta de apetite, coisa que nela não augurava nada de bom. Ao lembrar-me do Badanico, chamei o veterinário. Um jovem médico que diagnosticou uma pneumonia. Provavelmente, disse, o mesmo que vitimara o Badanico – agravado pelo facto da sua debilidade crónica. Tratamento? Antibióticos em comprimidos, dissolvidos no leite (por vezes, desfeitos e introduzidos à força na boca da Badaneca), e em injecções. Logo nesse dia levou a primeira. O veterinário ficou de voltar até terminar o tratamento.
Quando souberam do sucedido, foi um espanto na aldeia. Um médico para um bichano vadio?! Pagar uma consulta, remédios e a vinda do clínico para aplicar as injecções?! Sacrilégio! O veterinário só era chamado quando adoecia uma vaca, um porco, uma ovelha ou uma cabra. Isso, sim! Principalmente, quando os animais estavam para parir e o parto se apresentava complicado.
Casos que fui conhecendo bem, por ter presenciado alguns, coisa que me afligia bastante, de nada me servindo apelar para que lhes fosse prestada assistência urgente. Acontecia, por vezes, os animais estarem para dar à luz, sofrendo dias a fio, sendo o veterinário chamado já em último recurso, com o animal em agonia. Se calhava, salvavam-se os dois, se não calhava, morriam os dois ou salvava-se apenas o filho, raramente a mãe. A vida nas aldeias é assim e cada qual sabe da sua. São princípios ancestrais. O trabalho rural é duro, e as pessoas, talvez por isso, não podem dar-se ao luxo de se deixarem emocionar – ou ser piegas.
Passados dias, a Badaneca estava «como nova». Voltou-lhe o apetite, por conseguinte, a saúde. Assim tivesse acontecido com o Badanico. Mas aprendi a lição.
Entretanto, mudei para a casa nova. A Badaneca não se atrevia a aparecer por causa dos cães, de vigia à aldeia, sempre a rondarem a minha porta e o portão do jardim. Ia regularmente mudar-lhe a água e levar-lhe comida ao quinteiro do tio Leopoldino, para onde a Badaneca voltou. Como a adivinhar que de nada lhe servia agora esperar por mim no terraço da outra casa – onde tinha sido uma gata feliz, assim como o seu filho Badanico. Isto, diria a Badaneca se porventura falasse. Tenho a certeza.
Soledade Martinho Costa