Quinta-feira, 8 de Abril de 2010

SEGREDOS - BADANICO E BADANECA

                                            

              
 
            
 
Quando cheguei ao Bom Velho de Cima, disposta a recuperar a casa em ruínas que adquiri, fui instalar-me numa outra, pertencente a uma amiga, pagando, por insistência minha, uma renda simbólica. A espaços, por lá permaneci longos meses. Além da sala de entrada, a casa tinha dois quartos a darem para um terraço com uma vista magnífica. Dali, podia o nosso olhar percorrer, como numa tela, os vales, os pinhais e o denso arvoredo que circundam a aldeia.
  
Enquanto punha a casa a meu jeito, ia fazendo visitas diárias aos pedreiros e carpinteiros que avançavam na minha obra. Espécie de fiscal atento, para meu bem e aprendizagem de quem para mim trabalhava – fiscalização mais no sentido estético do que técnico, diga-se a verdade. Essa ficava para quem, melhor do que eu, sabia tratar do assunto. Ninguém se melindrava e as minhas correcções e sugestões eram aceites e cumpridas, servindo de diversão. «Lá vem o fiscal da obra!», ouvi várias vezes e achava graça.
 
Pouco depois de instalada na casa da minha amiga, comecei a ver do terraço, aos longe, dois gatos amarelos sentados ou deitados sobre os muros de pedras sobrepostas, que separam terrenos e courelas. Não se mexiam, parecendo duas estátuas de pêlo amarelo, mas de olhar fixo na direcção da casa. Via-os diariamente e comecei a chamá-los, sem que os bichanos se mostrassem interessados. Na posição em que estavam, assim ficavam.
 
Perguntei na aldeia a quem pertenciam os dois gatos: «São do tio Leopoldino, está velhote e foi morar com o filho. Deixou a casa e os gatos. Mas não são dois, são três. Um deles, não sai do quinteiro. Os outros, andam por aí…» – Disseram-me.
 
Um dia em que o tio Leopoldino veio de manhã, muito cedo, como era seu costume, fazer a visita semanal à casa que deixara, aproveitando para dar uma espreitadela à adega e à vinha, meti conversa: «Como é que os seus gatos se alimentam, senhor Leopoldino?» – Pergunta ingénua, a minha. «Ora, minha senhora, de ratos e de pássaros! São bons caçadores. Aquele, ali – e apontou o terceiro gato, para mim até então desconhecido, embora uma réplica dos outros – ia sempre comigo como se fosse um cão. Às vezes, andávamos quilómetros. Os outros, não.». Foi a resposta do tio Leopoldino.
 
O tempo passava e comecei a reparar que os dois gatos encurtavam cada vez mais a distância entre os muros e a casa. Um dia dei com eles no terraço que ficava à entrada da porta. Pensei: «Saltaram o portão e instalaram-se!» À minha aproximação, assustadiços, voltaram a saltar o portão e sumiram-se por entre o tojo. Nesse dia não voltei a vê-los. Insisti, chamei, mas sem resultado. No dia seguinte, coloquei um prato com leite no terraço e aguardei. Quando espreitei, lá estavam os dois. Do leite, nem vestígios.
 
E foi assim que os dois bichanos começaram a fazer parte da casa e do meu quotidiano, sempre que me encontrava no Bom Velho de Cima. Um deles, uma gata, era um bicho grande, bonito, robusto. O outro, tão magro e enfezado que se lhe notavam os ossos sob o pêlo. Comiam e dormiam no terraço e dali não arredavam pata. Sempre que me ausentava da aldeia, notava-lhes a tristeza no olhar, ao dizer-lhes adeus, já dentro do carro. Quando regressava, era uma festa. Na minha ausência, soube depois, os animais não deixavam o terraço – naturalmente, à espera de me verem chegar. Comigo, vinham os mimos e novas ementas, que de ratos e pássaros deviam andar fartos.
 
Numa outra vez, voltei a encontrar o tio Leopoldino: «Então, os meus gatos agora são da senhora! Já sei que se mudaram para casa da Isabelinha (a minha amiga). Ora, não, bom trato, barriga cheia…Bem fazem eles!» Nessa altura fiquei  a saber o nome dos tarecos: Badaneca, a gata-mãe, Badanico, o gato-filho – que o tio Leopoldino também me esclareceu qual o parentesco entre os dois.
 
Analisando o comportamento dos bichanos, até batia certo. A Badaneca, mais «sisuda», sonolenta, comilona. O Badanico, por vezes a brincar com ela e a levar uma sapatada, mas tão magrinho e tão «piqueiro» (como se diz na aldeia), que na comida mal tocava. Badaneca, essa, comia a parte dela e acabava por comer a que o filho deixava.
 
Um dia, para meu desgosto, o Badanico, sem que nada o fizesse prever, apareceu morto no terraço. Nos últimos dias tinha reparado que se agravara a sua magreza, que mal tocava na comida. Mas não imaginei um desfecho assim. Sempre ouvi dizer que «os gatos têm sete foles». Julguei que o ditado fosse verdadeiro.
 
Badaneca, continuou impávida, a fazer as suas sestas no terraço, aninhada no banco corrido, de madeira, seu poiso favorito, e a comer por dois, não parecendo dar pela falta do Badanico.
  
Ainda assim, semanas depois, notei que a Badaneca não estava bem. Sintomas? Falta de apetite, coisa que nela não augurava nada de bom. Ao lembrar-me do Badanico, chamei o veterinário. Um jovem médico que diagnosticou uma pneumonia. Provavelmente, disse, o mesmo que vitimara o Badanico – agravado pelo facto da sua debilidade crónica. Tratamento? Antibióticos em comprimidos, dissolvidos no leite (por vezes, desfeitos e introduzidos à força na boca da Badaneca), e em injecções. Logo nesse dia levou a primeira. O veterinário ficou de voltar até terminar o tratamento.
 
Quando souberam do sucedido, foi um espanto na aldeia. Um médico para um bichano vadio?! Pagar uma consulta, remédios e a vinda do clínico para aplicar as injecções?! Sacrilégio! O veterinário só era chamado quando adoecia uma vaca, um porco, uma ovelha ou uma cabra. Isso, sim! Principalmente, quando os animais estavam para parir e o parto se apresentava complicado.
 
Casos que fui conhecendo bem, por ter presenciado alguns, coisa que me afligia bastante, de nada me servindo apelar para que lhes fosse prestada assistência urgente. Acontecia, por vezes, os animais estarem para dar à luz, sofrendo dias a fio, sendo o veterinário chamado já em último recurso, com o animal em agonia. Se calhava, salvavam-se os dois, se não calhava, morriam os dois ou salvava-se apenas o filho, raramente a mãe. A vida nas aldeias é assim e cada qual sabe da sua. São princípios ancestrais. O trabalho rural é duro, e as pessoas, talvez por isso, não podem dar-se ao luxo de se deixarem emocionar – ou ser piegas.
 
Passados dias, a Badaneca estava «como nova». Voltou-lhe o apetite, por conseguinte, a saúde. Assim tivesse acontecido com o Badanico. Mas aprendi a lição.
 
Entretanto, mudei para a casa nova. A Badaneca não se atrevia a aparecer por causa dos cães, de vigia à aldeia, sempre a rondarem a minha porta e o portão do jardim. Ia regularmente mudar-lhe a água e levar-lhe comida ao quinteiro do tio Leopoldino, para onde a Badaneca voltou. Como a adivinhar que de nada lhe servia agora esperar por mim no terraço da outra casa – onde tinha sido uma gata feliz, assim como o seu filho Badanico. Isto, diria a Badaneca se porventura falasse. Tenho a certeza.
 
Soledade Martinho Costa
 
                                                     
 
publicado por sarrabal às 00:38
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13 comentários:
De Lena a 16 de Abril de 2010 às 10:40
Olá Sol!
Pronto, este texto foi parar direitinho ao meu coração.Adivinhe porquê? Pois, tenho uma gata. É a Tweenie, preta e branca, rafeira, que ouvi miar ao nascer e desde esse dia ficou comigo. Hoje tem 8 anos, quase 9 em Julho. É mimada claro, a rainha da casa. Come, dorme, vigia, passeia no jardim nas horas das minhas refeições, atura a cadela (adquirida em Nov.2009, 1 labradora cheia de vida) e faz de bibelot vivo nos parapeitos da janela.Não aprecia estranhos,nem visitas à casa.Foge e só dá confiança se a visita voltar várias vezes. Posso dizer que é a minha Melhor Amiga :) também me segue para todo o lado. Quando viajo, opto por a deixar em casa, com amigas a tomar conta e ela agradece,pois prefere a sua casinha. Paz ao Badanico e Longa vida a Badaneca. É difícil para os pastores ou assim entenderem que se pague para tratar de cão, gato...mas eles sentem o mesmo pelos seus bichos, so que nem sempre podem cuidar deles como gostariam.

Bem, excedi-me no texto já.lol...Espero que teja tudo bem consigo. Jocas gordas
Lena


De sarrabal a 16 de Abril de 2010 às 20:51
Olá,Lena!

Também eu gosto muito de gatos. Tive o Pelé (como o nome indica, jogava lindamente à bola!) e o Bigodes. O primeiro, depois do nascimento da minha filha, foi para casa da minha mãe. Um dia fui dar com ele a dormir um belo sono no berço da Maria João, que tinha apenas uma semana - coisa que me apavorou. O outro, era um companheiro das brincadeiras dos meus filhos. Ia, mesmo, à rua com eles, levado no carrinho das bonecas. Como estava habituado a sair, um dia saiu sozinho e foi atropelado. Pode imaginar o nosso desgosto. Não voltei a ter gatos. Só os das histórias que tenho escrito para os mais pequenos - e são muitas! O nome Bigodes vem, exactamente, do livro «O Gato dos Bigodes», que conta a história de um gato que vai à loja comprar uma gravata...e nenhuma lhe agrada. É um livro divertido, com bonecos engraçados, e que já fez diversas edições.
Também tive um cão (que desapareceu; outro desgosto) e um periquito que morreu de velhinho - 10 anos! Sempre em liberdade pela casa toda. Enfim, que a Tweenie tenha muitos anos de vida para alegria da sua dona...

Beijinho, Lena!

Sol


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