Cerimónia religiosa efectuada só por homens, tem lugar à noite, durante a Quaresma, antigamente duas ou três vezes por semana, hoje apenas às sextas-feiras, percorrendo o cortejo algumas das ruas da aldeia de São Miguel de Acha (Beira Baixa), com pequenas paragens nos nichos e cruzeiros para serem rezados os «mistérios» de Cristo.
Leitura dos «Mistérios», junto de um dos nichos
Nesses locais (exterior da Capela da Senhora do Miradoiro, Largo de Santo António, Cruz do Vaz, Forno da Capela, Cruz do Largo do Rossio, adro da igreja Matriz de São Miguel Arcanjo e praça), além do «Terço Cantado», procede-se ainda, nos domingos (apenas os homens), ao culto religioso dos «oito passos» – estações da Via-Sacra resumidas e cantadas, relatando passagens bíblicas da caminhada de Cristo para o Calvário.
Também só por homens, eram cantadas em todas as sextas-feiras da Quaresma as «ladainhas das rogações» (oração dos santos), ritual que deixou de se efectuar há cerca de cinco anos.
Capela de Nossa Senhora do Miradoiro
O «Terço Cantado» ou «Terço pelas Ruas», começa na Capela de Nossa Senhora do Miradoiro, com o «leilão das alfaias»: a Cruz de Cristo, duas lanternas e uma cana comprida. Esta, actualmente apenas um elemento figurativo, servia, outrora, «para manter a ordem», uma vez que os homens levavam consigo os filhos, sempre desinquietos. Ainda hoje o rapazio mais pequeno acompanha os pais, embora «já sem necessidade de se utilizar a cana comprida».
«Terço Cantado», 1º grupo de homens
A cerimónia tem início pelas vinte e uma horas, anunciada meia hora antes, quando na torre da igreja matriz toca a sineta a lembrar o «leilão», sinal para que os homens comecem a concentrar-se no largo da capela.
Os objectos a «leilão», sempre disputados pelos presentes, para determinar quem irá ter o privilégio de os transportar, vão parar, obviamente, à mão daqueles que mais alto fizerem a licitação. O dinheiro obtido reverte para velas, restauro das alfaias e benefícios a efectuar na capela e na igreja.
«Terço Cantado», 2º grupo de homens
Após o «leilão das alfaias», os homens (antigamente descalços) dividem-se em dois grupos, distanciados um do outro por um espaço de quinze a vinte metros. Enquanto o primeiro grupo canta a primeira parte do Pai-Nosso e da Ave-Maria, o segundo entoa a parte restante das orações. Ambos os grupos são acompanhados por dois «mestres-de-cerimónia» ou «regradores», aos quais cabe orientar todo o ritual. O homem que transporta a Cruz e os que levam as lanternas vestem uma opa negra com capuz.
Final do «Terço Cantado», à porta da Capela de Nossa Senhora do Miradoiro
O cortejo termina onde começou: no exterior da Capela da Senhora do Miradoiro, ainda há pouco tempo com um cântico de louvor a Nossa Senhora, que deixou de se realizar devido à dificuldade «em encontrar quem o cante bem, por ser bastante difícil de entoar».
Enquanto decorre o «Terço Cantado», verifica-se a ausência das mulheres, que se recolhem em casa, obrigatoriamente, durante todo o cerimonial, «sendo considerado mau presságio, caso alguma seja vista na rua».
Quando os homens regressam a casa, após a celebração dos actos religiosos, era costume sair um grupo de mulheres, quatro ou cinco, não mais, para subir à torre sineira da igreja e proceder aos cânticos da «encomendação das almas», ritual que passou a ter lugar nos domingos à noite, durante toda a Quaresma. No final, uma delas toca três vezes os sinos, em simultâneo, num toque dobrado, igual ao que se ouve quando morre alguém na aldeia.
Também só às mulheres cabe, na Quinta-Feira Santa, depois da Procissão do Encontro, entoar, cerca da meia-noite, igualmente na torre sineira da Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo os «martírios» – canto religioso que descreve os martírios de Cristo até ao Calvário. São ainda as mulheres que se encarregam de enfeitar com velas, flores e colchas os nichos e cruzeiros e colocar à entrada das portas e nas janelas luminárias ou velas, enquanto decorre a celebração do «Terço Cantado».
Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo
No Sábado Santo, no final da Vigília Pascal, são cantadas as «alvíssaras» (cânticos de alegria em louvor da Ressurreição de Cristo), à porta da Igreja Matriz de São Miguel Arcanjo. Em seguida, conforme a tradição, o povo dirige-se a casa do padre, onde repete o canto, recebendo em troca vinho e bolos oferecidos pelo pároco.
Interior da Igreja Matriz
Estes rituais estiveram interrompidos cerca de quarenta anos, à excepção da «encomendação das almas», para voltarem a ser recuperados na década de noventa.
Soledade Martinho Costa
Do livro «Festas e Tradições Portuguesas», Vol.III
Ed. Círculo de Leitores